Claro que eu não posso gastar esse dinheiro, e são as dez pratas que minha mãe me deu, mas, no espírito de fazer novas amizades, entrego o dinheiro, e Josh e Marcus pulam fora como cachorros na praia, deixando-me sozinho para fazer mais uma dessas amizades que vão durar a vida toda. Decido que, de modo geral, nesse primeiro estágio da noite, é melhor dar uma de vigário, não de biscate.
A caminho do bar improvisado, numa mesa de armar, estão vendendo Red Stripe pelo preço bem razoável de 50 pence a lata. Estampo minha expressão por favor, fale comigo, com um sorriso ingênuo de boca fechada e tentativas de acenos de cabeça e olhares esperançosos. Um hippie magricela com o mesmo sorriso idiota e interiorano que eu e, surpreendentemente, com um aspecto ainda pior, está esperando para ser servido. Dá uma olhada ao redor e diz, com um forte sotaque de Brummie:
— Muito loooouco, não é?
— Insano! — respondo, e nós dois reviramos os olhos como quem diz Tsc, essas crianças de hoje!. O nome dele é Chris, e logo fico sabendo que ele também vai cursar Letras.
— Sincronicidade! — exclama Chris, e começa a me contar tudo sobre as notas altas que tirou no exame de admissão, o conteúdo preciso do seu formulário da UCCA e a trama de cada livro que já leu em toda a vida antes de embarcar na descrição de seu verão viajando pela Índia, em tempo real, e passo pelos dias e noites que se seguem acenando com a cabeça enquanto tomo três latas de Red Stripe, imaginando se a pele dele é mesmo pior do que a minha, quando, de repente, percebo que ele está dizendo...
— …e quer saber? Eu não usei papel higiênico nem uma vez enquanto estive lá.
— Sério?
— Nem uma. E acho que nunca mais vou usar. É muito mais fresco e muito melhor para o meio ambiente.
— Mas como você faz...?
— Ah, só a mão e um balde de água. Essa aqui! — e enfia a mão embaixo do meu nariz. — Vá por mim. É muito mais higiênico.
— Mas você não disse que teve muita disenteria?
— Bem, sim, mas isso é diferente. Todo mundo tem disenteria.
Decido não insistir na questão e digo:
— Ótimo! Tudo bem... — e lá vamos nós viajar de novo em bancos de madeira de ônibus caindo aos pedaços de Hyderabad a Bangalore, até que, em algum lugar nas Colinas de Erramala, a Red Stripe faz seu trabalho e percebo, com alegria, que minha bexiga está cheia e que, sinto muito, mas preciso ir ao banheiro.
— Não vá embora, eu já volto, fique bem aqui onde você está. — Quando me viro, ele agarra meu ombro, põe a mão esquerda bem na frente da minha cara e diz, num tom evangelizador:
— Não se esqueça! Não precisa de papel higiênico! — Sorrio e sigo meu caminho.
Quando retorno, percebo, com alívio, que o cara foi embora, e resolvo sentar na beira do palco de madeira ao lado de uma garota elegante, que não está vestida nem de biscate nem de vigário, mas como um membro da Ala Juvenil da KGB, com um casaco preto pesado, meia-calça preta, camisa jeans curta e um quepe escuro estilo soviético empurrado para trás de um tufo de cabelos pretos e oleosos. Abro meu sorriso será que posso sentar aqui e ela me responde com um sorriso sim, pode ir embora, que é quase um pequeno espasmo, e vejo um lampejo de dentes brancos pequenos e pontudos, todos do mesmo tamanho, atrás de um incongruente borrão de batom vermelho. Eu deveria ir embora, mas a cerveja me deixou destemido e muito sociável e sento ao lado dela assim mesmo. Apesar da batida do baixo de Two Tribes, deu para ouvir os músculos do rosto dela se contraindo.
Depois de um tempo, eu me viro e olho para ela. Está extraindo pequenas e nervosas baforadas de um cigarro de enrolar e olhando a pista de dança de maneira obstinada. Tenho duas alternativas: conversar ou ir embora. Talvez eu tente conversar.
— O mais irônico é que eu sou vigário mesmo.
Sem resposta.
— Não vejo tantas prostitutas assim desde o meu aniversário de 16 anos!
Sem resposta. Talvez ela não tenha me escutado. Ofereço um gole da minha lata de Red Stripe.
— Você é muito gentil. Mas eu vou passar... obrigada — pega a latinha ao lado e balança na minha frente. A voz combina direitinho com o rosto; dura e afiada, escocesa, sotaque de Glasgow, acho.
— Então, você veio de quê? — pergunto mais animado, apontando as roupas dela com a cabeça.
— Eu vim como uma pessoa normal — responde ela, sem sorrir.
— Você podia ter se esforçado um pouco! Era só colocar uma coleira de cachorro ou algo assim!
— Talvez. Só que eu sou judia — diz, tomando um gole de cerveja. — É engraçado, mas se fantasiar nunca chegou a pegar na comunidade judaica.
— Às vezes, queria ser judeu, sabe — digo.
Percebo que foi um estratagema muito ousado para um início de conversa, e nem sei bem por que disse isso. Em parte, é por achar importante ser honesto sobre questões raciais, de gênero e identidade, mas também porque já estou meio bêbado.
Ela estreita os olhos e olha para mim por um momento. Parece a cena de um filme de faroeste italiano. A garota dá uma tragada e, decidindo se vai ou não ficar ofendida, diz em voz baixa: — É mesmo?
— Desculpe... Não estou sendo racista nem nada. Só quis dizer que muitos dos meus heróis são judeus. Só isso...
— Bem, fico feliz de o meu povo ter a sua aprovação. E quem são esses heróis?
— Ah, tipo Einstein, Freud, Marx...
— Karl ou Groucho?
— Os dois. Arthur Miller, Lenny Bruce, Woody Allen, Dustin Hoffman, Philip Roth...
— Jesus, claro...
— ...Stanley Kubrick, Freud, J. D. Salinger…
— Estritamente falando, Salinger não é judeu.
— É, sim.
— Vá por mim: não é.
— Tem certeza?
— Nós sabemos... temos um sexto sentido especial.
— Mas o nome é judeu.
— O pai era judeu, mas a mãe era católica. Então, tecnicamente, ele não é judeu. O judaísmo se transmite pela linhagem feminina.
— Eu não sabia disso.
— Bem, sua educação universitária está começando — e volta a encarar a pista de dança, agora lotada de biscates balançando no ritmo da música. É uma visão bem sombria, como um círculo do inferno recém-descoberto, e a garota observa com um desprezo convicto, como que esperando a explosão da bomba que plantou. — Meu Deus, olha só essa gente — ela fala devagar, cansada, e Two Tribes dá lugar a Relax com Frankie cantando alguma coisa que eu não entendo. — Decido que a melhor atitude a tomar é adotar um cinismo cansado do mundo. Então, rio alto da situação e ela se vira para mim quase sorrindo. — Sabe qual é a grande conquista dos colégios internos ingleses? Gerações de garotos de cabelos escorridos que sabem direitinho como ajustar uma cinta-liga. É incrível como a maioria de vocês já chega na faculdade com roupas de mulher na mala.
Nós?
— Na verdade, estudei em colégio público — explico.
— OK, ponto para você. Sabe que você é a sexta pessoa a me dizer isso essa noite? Será algum tipo de cantada esquisita de esquerda? O que deve me impressionar mais? O nosso sistema de escolas estatais? Ou suas heroicas conquistas acadêmicas?
Se existe uma coisa que sei reconhecer é quando fui derrotado, então, pego minha latinha quase cheia e chacoalho no ar como se estivesse vazia.
— Vou até o bar. Você quer alguma coisa, hum...?
— Rebecca.
— ...Rebecca?
— Não, obrigada.
— OK. Bem... A gente se vê por aí. A propósito, meu nome é Brian.
— Boa noite, Brian.
— Tchau, Rebecca.