- Mas e os piolhos no cabelo dele? - perguntara Mura.
- Por enquanto terão que ficar aí. Compreendo que todos os bárbaros os tenham. Sinto muito, mas eu aconselharia paciência.
- O senhor não acha que poderíamos ao menos lavar a cabeça dele? - dissera a esposa. - Seríamos muito cuidadosas. Tenho certeza de que a senhora supervisionaria nossos pobres esforços. Isso ajudaria o bárbaro e manteria nossa casa limpa.
- Concordo. Podem lavar a cabeça dele - dissera a mãe com determinação. - Mas eu certamente gostaria de saber qual é o tamanho dele quando ereto.
Agora Mura deu uma olhada para baixo da cintura de Blackthorne involuntariamente. Depois se lembrou do que o padre lhes dissera sobre aqueles satanistas e piratas. Deus, o Pai, nos proteja deste mal, pensou. Se soubesse que ele era tão terrível, nunca o teria trazido para a minha casa. Não, disse a si mesmo. Você é obrigado a tratá-lo como um hóspede especial até que Omi-san determine outra coisa. Mas você teve bom senso ao mandar avisar o padre e Omi-san imediatamente. Muito bom senso. Você é o chefe, você protegeu a aldeia e você, sozinho, é responsável. Sim. E Omi-san o responsabilizará pela morte desta manhã e pela impertinência do morto, e com toda a razão.
- Não seja estúpido, Tamazaki! Está pondo em risco o bom nome da aldeia, neh? - prevenira ele uma dúzia de vezes ao amigo, o pescador. — Pare com a sua intolerância. Omi-san não tem opção a não ser escarnecer dos cristãos. O nosso daimio não detesta cristãos? O que mais Omi-san pode fazer?
- Nada, concordo, Mura-san, por favor, desculpe-me. - Tamazaki sempre respondera assim formalmente. - Mas os budistas devem ter mais tolerância, neh? Os dois não são zen-budistas? - O zen-budismo era auto-disciplinador; contava fortemente com a auto-ajuda e a meditação para encontrar a Iluminação. A maioria dos samurais pertencia à seita zen-budista, já que ela convinha perfeitamente, parecia até destinada a um guerreiro orgulhoso, que buscava a morte.
- Sim, o budismo ensina a tolerância. Mas quantas vezes eu preciso lembrar-lhe que eles são samurais, e isto é Izu e não Kyushu, e mesmo que fosse Kyushu, você ainda seria o errado. Sempre. Neh?
- Sim. Por favor, desculpe-me, sei que estou errado. Mas algumas vezes sinto que não posso viver com a minha humilhação interior quando Omi-san é tão insultante para com a verdadeira fé.
E agora, Tamazaki, você está morto por sua própria escolha, porque insultou Omi-san não se curvando simplesmente porque ele disse "... este malcheiroso padre da religião estrangeira". Ainda que o padre realmente cheire e a verdadeira fé seja estrangeira. Meu pobre amigo. A verdade não vai alimentar sua família agora ou remover o estigma da minha aldeia. Oh, Madona, abençoe o meu velho amigo e dê-lhe a alegria do paraíso.
Espero muitos problemas com Omi-san, disse Mura a si mesmo. E como se isso não fosse mau o bastante, agora ainda vem o nosso daimio.
Uma ansiedade penetrante o invadia sempre que pensava no seu senhor feudal, Kasigi Yabu, daimio de Izu, tio de Omi — a crueldade e a falta de honra do homem, o modo como trapaceava com todas as aldeias quanto à parte justa de cada uma na pesca e na colheita, e o peso opressivo do seu governo. Quando a guerra chegar, perguntou Mura a si mesmo, por que lado Yabu vai se declarar, o do Senhor Ishido ou o do Senhor Toranaga? Estamos numa armadilha entre os gigantes, e empenhados com ambos.
Ao norte, Toranaga, o maior general vivo, senhor de Kwanto, as Oito Províncias, o daimio mais importante da terra, general chefe dos exércitos do leste; a oeste, os domínios de Ishido, senhor do castelo de Osaka, conquistador da Coréia, protetor do herdeiro, general-chefe dos exércitos do oeste. E ao norte, o Tokaido, a grande estrada costeira, que une Yedo, capital de Toranaga, a Osaka, capital de Ishido - trezentas milhas para oeste sobre as quais suas legiões têm que marchar.
Quem vencerá a guerra? Ninguém. Porque a guerra deles vai envolver o império novamente, as alianças se romperão, províncias lutarão contra províncias, até ser aldeia contra aldeia, como sempre foi. Exceto nos últimos dez anos. Nos últimos dez anos, inacreditavelmente, houvera uma ausência de guerra chamada paz por todo o império, pela primeira vez na história. Eu estava começando a gostar da paz, pensou Mura.
Mas o homem que fez a paz está morto. O soldado camponês que se tornou samurai e depois general e depois o maior general e finalmente o taicum, o absoluto Senhor Protetor do Japão, está morto há um ano, e seu filho de sete anos de idade é jovem demais para herdar o poder supremo. Assim, o menino, como nós, é um refém. Entre os gigantes. E a guerra é inevitável. Agora nem mesmo o taicum pode proteger seu amado filho, sua dinastia, sua herança, ou seu império.
Talvez seja como deve ser. O taicum conquistou a terra, fez a paz, forçou todos os daimios a abaixar-se como camponeses à sua frente, reorganizou feudos conforme a própria veneta - promovendo alguns, dissolvendo outros - e depois morreu. Era um gigante entre pigmeus. Mas talvez esteja certo que toda a sua obra e grandeza morressem com ele. O homem não é apenas uma flor levada pelo vento, e somente as montanhas, o mar, as estrelas e esta Terra dos Deuses são reais e duradouros?
Estamos todos numa armadilha e isso é um fato; a guerra virá logo, e isso é um fato; Yabu decidirá sozinho de que lado estamos, e isso é um fato; a aldeia será sempre uma aldeia, porque os campos macios são ricos, o mar abundante, e esse é um último fato.
Mura trouxe a mente firmemente de volta ao pirata bárbaro à sua frente. Você é um demônio, enviado para nos flagelar, pensou, e só nos causou problemas desde que chegou. Não podia ter escolhido outra aldeia?
- O capitão-san quer onna? - perguntou solicitamente. Por sugestão sua, o conselho da aldeia fizera arranjos materiais para os bárbaros, tanto por polidez quanto por ser um meio simples de mantê-los ocupados até que as autoridades chegassem. Que a aldeia se entretivesse com as histórias subseqüentes das ligações, mais do que se compensasse pelo dinheiro que tivera de ser investido.
- Onna - repetiu, naturalmente presumindo que, como o pirata estava de pé, ficaria igualmente contente de se pôr de bruços, sua Lança Sagrada calidamente envolvida antes de dormir, e de qualquer modo tinham-se feito todos os preparativos.
- Não! - Blackthorne queria apenas dormir. Mas como sabia que precisava que aquele homem estivesse do seu lado, forçou um sorriso, indicou o crucifixo.
- Você é cristão?
Mura assentiu.
- Cristão.
- Eu sou cristão.
- Padre diz não. Não cristão.
- Sou cristão. Não católico. Mas ainda sou cristão.
Mura não conseguiu compreender. E não houve como Blackthorne pudesse explicar, embora tentasse muito.
- Quer onna?
- O ... o dimio ... quando vem?
- Dimio? Não entende.
- Dimio ... ah, quero dizer, daimio.
- Ah, daimio. Hai, daimio! - Mura sacudiu os ombros. - Daimio vem quando vem. Dormir. Primeiro limpar. Por favor.
- O quê?
- Limpar. Banho, por favor.
- Não entendo.
Mura chegou mais perto e franziu o nariz com desagrado.
- Fede. Mau. Como todos os portugueis. Banho. Esta casa limpa.
- Tomo banho quando tiver vontade e não cheiro mal! - encolerizou-se Blackthorne. - Todo mundo sabe que os banhos são perigosos. Você quer que eu pegue o defluxo? Acha que sou algum maldito estúpido? Suma daqui e me deixe dormir!
- Banho! - ordenou Mura, chocado com a explosão de raiva do bárbaro, o cúmulo dos maus modos. E não era só que o bárbaro cheirasse mal, como de fato cheirava, mas, pelo que lhe constava, fazia três dias que ele não se banhava corretamente, e a cortesã com toda a razão se recusaria a deitar-se com ele, por maior que fosse a sua paga. Esses estrangeiros horríveis, pensou.