- O que vamos fazer com ele? - perguntara Van Nekk.
- Não sei. Parece tão assustado quanto nós — dissera
Blackthorne, o coração latejando.
- É melhor que ele não comece nada, por Deus.
- Oh, Senhor Jesus, tirem-me daqui... - começou a voz de Croocq num crescendo. - Socooooooorro!
Van Nekk, que estava perto dele, sacudiu-o e acalmou-o.
- Está tudo bem, mocinho. Estamos nas mãos de Deus. Ele está zelando por nós.
- Olhem o meu braço - gemeu Maetsukker. O ferimento já havia supurado. Blackthorne levantou-se tremulamente. - Estaremos todos delirando como loucos dentro de um ou dois dias se não sairmos daqui - disse, a ninguém em particular.
- A água quase acabou - disse Van Nekk.
- Vamos racionar a que há. Um pouco agora, mais um pouco ao meio-dia. Com sorte haverá o suficiente para três turnos. Deus amaldiçoe todas as moscas!
Então encontrara a xícara e lhes dera uma ração, e agora estava sorvendo a sua, tentando fazê-la durar.
- E quanto a ele, o japonês? - disse Spillbergen. O capitão-mor passara melhor do que nunca durante a noite porque tapara os ouvidos aos gritos com um pouco de lama e, como estava ao lado do barril de água, cuidadosamente saciara a sede.
- O que vamos fazer com ele?
- Ele deveria receber um pouco de água - disse Van Nekk.
- Pois sim! - disse Sonk. - Digo que não deve receber coisa nenhuma.
Todos votaram e concordou-se em que o samurai não tomaria água.
- Não concordo - disse Blackthorne.
- Você não concorda com nada que a gente diga - disse Jan Roper.
- Ele é o inimigo. É um diabo pagão e quase nos matou.
- Você também quase me matou. Meia dúzia de vezes. Se o seu mosquete tivesse disparado em Santa Magdellana, você teria me estourado os miolos.
- Eu não estava mirando você. Estava mirando satanistas fedorentos.
- Eram sacerdotes desarmados. E havia tempo de sobra.
- Eu não estava mirando você.
- Você quase me matou meia dúzia de vezes, com a sua maldita raiva, sua maldita beatice e sua maldita estupidez!
- Blasfêmia é pecado mortal. Proferir o nome dele em vão é pecado. Estamos nas mãos dele, não nas suas. Você não é um rei e isto não é um navio. Não é nosso...
- Mas vai fazer o que eu disser!
Jan Roper olhou em torno da cela, inutilmente em busca de apoio.
- Faça o que quiser - disse sombriamente.
- Eu farei.
O samurai estava tão sedento quanto eles, mas meneou a cabeça à xícara que lhe foi oferecida. Blackthorne hesitou, colocou-a junto dos lábios inchados do samurai, mas o homem afastou-a com um golpe, entornando a água, e disse alguma coisa asperamente. Blackthorne preparou-se para aparar o golpe seguinte. Mas ele não veio nunca. O homem não tornou a se mover, simplesmente mergulhou o olhar no vazio.
- Ele está louco. São todos loucos - disse Spilibergen.
- Sobra mais água para nós. Bom - disse Jan Roper. - Deixem-no ir para o inferno, que é o que merece.
- Qual é o seu nome? Nami? - perguntou Blackthorne.
Repetiu de maneiras diferentes, mas o samurai parecia não ouvir. Deixaram-no em paz. Mas observavam-no como se fosse um escorpião. Ele não os olhava. Blackthorne tinha certeza de que o homem estava tentando tomar alguma decisão, mas não tinha idéia do que pudesse ser.
Que será que ele tem na cabeça? perguntou Blackthorne a si mesmo. Por que recusou a água? Por que foi deixado aqui? Será que foi um engano de Omi? Não é provável. Será que foi um plano? Não é provável. Poderíamos usá-lo para sair daqui? Não é provável. O mundo inteiro é improvável, só é provável que vamos ficar aqui até que nos deixem sair... se deixarem. E se deixarem, o que virá a seguir? O que aconteceu a Pieterzoon?
As moscas enxameavam com o calor do dia.
Oh, Deus, como gostaria de me deitar, como gostaria de tomar aquele banho, não teriam que me carregar desta vez. Nunca tinha percebido como um banho é importante. Aquele velho cego com os dedos de aço! Eu poderia usá-lo por uma ou duas horas.
Que desperdício! Todos os nossos navios, homens e esforço para isto. Um fracasso total. Bem, quase. Alguns ainda estamos vivos.
- Piloto! - Van Nekk o estava sacudindo. - Você adormeceu. Ele... ele está se curvando para você há um minuto ou mais. - Fez um gesto para o samurai, que estava ajoelhado e de cabeça inclinada à sua frente.
Blackthorne esfregou a exaustão dos olhos. Fez um esforço e retribuiu a reverência.
- Hai? - disse bruscamente, lembrando-se da palavra japonesa para "sim".
O samurai segurou a faixa do seu quimono rasgado e enrolou-a em torno do pescoço. Ainda ajoelhado, deu uma ponta a Blackthorne e a outra a Sonk, baixou a cabeça e fez-lhes sinal para que a puxassem com força.
- Está com medo de que o estrangulemos - disse Sonk.
- Jesus Cristo, acho que isso é o que ele quer que façamos.
Blackthorne deixou cair o cinto e sacudiu a cabeça.
- Kinjiru - disse, pensando em como essa palavra era inútil. Como você diz a um homem que não fala a sua língua que é contra o seu código cometer assassínio, matar um homem desarmado, que você não é um executor, que o suicídio é condenado por Deus?
O samurai pediu de novo, claramente implorando-lhe, mas Blackthorne sacudiu a cabeça novamente.
- Kinjiru. - O homem olhou em torno ansiosamente. De repente se pôs em pé e mergulhou a cabeça bem fundo na latrina, tentando se afogar. Jan Roper e Sonk imediatamente puxaram-no para trás, sufocado e debatendo-se.
- Deixem-no - ordenou Blackthorne. Obedeceram. Ele apontou para a latrina.
- Samurai, se é isso o que você quer, vá em frente!
O homem estava com ânsias de vômitos, mas compreendeu.
Olhou para a tina repugnante e soube que não teria forças para manter a cabeça lá o tempo suficiente. Na mais profunda infelicidade, voltou a seu lugar junto da parede.
- Jesus - murmurou alguém.
Blackthorne raspou meia xícara de água no barril, levantou-se, sentindo as juntas rijas, aproximou-se do japonês e ofereceu-lhe a água. Ele olhou para além da xícara.
- Pergunto a mim mesmo quanto tempo ele consegue agüentar - disse Blackthorne.
- Para sempre - disse Jan Roper. - São animais. Não são humanos.
- Pelo amor de Cristo, quanto tempo mais vão nos manter aqui? - perguntou Ginsel.
- O tempo que quiserem.
- Teremos que fazer qualquer coisa que eles queiram - disse Van Nekk. - Teremos que fazer, se quisermos continuar vivos e sair deste buraco do inferno. Não teremos, piloto?
- Sim. - Blackthorne avaliou, agradecido, as sombras do sol. - É pleno meio-dia, o turno muda.
Spillbergen, Maetsukker e Sonk começaram a se queixar, mas ele os fez levantar-se com imprecações e quando haviam todos se redistribuído, deitou-se agradavelmente. A lama era repelente e as moscas piores que nunca, mas o prazer de poder estirar-se por inteiro foi enorme.
O que fizeram com Pieterzoon? - perguntou a si mesmo, sentindo a fadiga tragá-lo. Oh, Deus nos ajude a sair daqui. Estou com tanto medo!
Ouviram passos lá em cima. O alçapão se abriu. O padre apareceu, ladeado de samurais.
- Piloto. Você deve subir. Deve subir sozinho - disse ele.
CAPÍTULO 6
Todos os olhos no poço se dirigiram para Blackthorne.
- O que querem comigo?
- Não sei - disse o Padre Sebastio gravemente. - Mas você deve subir imediatamente.
Blackthorne sabia que não tinha escolha, mas não queria se afastar da parede protetora, tentando reunir mais força.
- O que aconteceu com Pieterzoon?
O padre contou. Blackthorne traduziu para os outros que não falavam português.
- O Senhor tenha piedade dele - sussurrou Van Nekk por sobre o silêncio horrorizado. - Pobre homem. Pobre homem.