Eu pretendia enterrar a faca no coração aquela noite. Desde então meu medo da morte foi eliminado, exatamente como ela disse que seria. "Só vivendo à beira da morte o senhor pode compreender a indescritível alegria da vida." Não me lembro de Omi detendo o golpe, só de me sentir renascer quando acordei no amanhecer seguinte.
Seus olhos observaram os mortos, lá na avenida. Eu poderia ter matado aquele cinzento para ela, pensou, e talvez outro, e talvez vários, mas teria sempre havido outro e a minha morte não teria feito a balança pender nem uma fração. Não tenho medo de morrer, disse-se ele. Só estou estarrecido de que não haja nada que eu possa fazer para protegê-la.
Alguns cinzentos recolhiam corpos agora, marrons e cinzentos tratados com igual dignidade. Outros cinzentos estavam se dispersando, Kiyama e seus homens entre eles, mulheres, crianças e criadas partindo também, seus pés levantando poeira na avenida. Ele sentiu o acre e levemente fétido odor da morte, misturado à brisa salgada, a mente eclipsada por ela, a coragem dela, o indefinível calor que a sua destemida coragem lhe transmitira. Levantou os olhos para o sol e mediu-o. Seis horas para o pôr-do-sol.
Dirigiu-se às escadas que levavam para baixo. — Anjin-san? Aonde vai, por favor?
Ele se voltou, esquecido dos seus cinzentos. O capitão o fitava.
— Ah, desculpe. Vou lá! — Apontou para o adro.
O capitão dos cinzentos pensou um instante, depois relutantemente concordou. — Está bem. Por favor, siga-me.
No adro Blackthorne sentiu a hostilidade dos marrons para com os cinzentos. Yabu estava em pé junto aos portões, observando os homens voltarem. Kiri e a Senhora Sazuko abanavam-se, uma ama de leite alimentava o bebê. Estavam sentadas sobre mantas e almofadas colocadas às pressas à sombra, numa varanda. Os carregadores amontoavam-se a um lado, acocorados num grupo cerrado e assustado em torno da bagagem e dos cavalos de carga. Ele se encaminhou para o jardim mas os guardas menearam a cabeça. — Sinto muito, isto está fora de limites no momento, Anjin-san.
— Sim, claro — disse ele, voltando-se. A avenida estava se esvaziando agora, embora ainda restassem quinhentos e tantos cinzentos, acocorados ou sentados de pernas cruzadas num largo semicírculo, encarando os portões. O remanescente dos marrons encaminhou-se com gravidade de volta à arcada.
— Fechem os portões e barrem-nos — ordenou Yabu.
— Por favor, desculpe-me, Yabu-san — disse o oficial —, mas a Senhora Toda disse que deviam ser deixados abertos. Devemos guardá-los contra todos os homens, mas devem permanecer abertos.
— Tem certeza?
O oficial se empertigou. Era um homem cuidadoso, ar resoluto, por volta dos trinta anos, com um queixo saliente, bigode e barba. — Por favor, desculpe-me, mas é claro que tenho.
— Obrigado. Não tive a intenção de ofender, neh? O senhor é o oficial superior aqui?
— A Senhora Toda honrou-me com a sua confiança, sim. Naturalmente o senhor é superior a mim.
— Estou no comando, mas o senhor é o encarregado.
— Obrigado, Yabu-san, mas é a Senhora Toda quem comanda aqui. O senhor é um oficial superior. Eu ficaria honrado em ser o segundo em relação ao senhor. Se o senhor permitir.
Yabu disse, maligno: — Está permitido, capitão. Sei muito bem quem nos comanda aqui. Seu nome, por favor?
— Sumiyori Tabito.
— O primeiro cinzento também não era Sumiyori? — Sim, Yabu-san. Era meu primo.
— Quando estiver pronto, Capitão Sumiyori, por favor convoque uma reunião de todos os oficiais.
— Certamente, senhor. Com a permissão dela.
Os dois homens desviaram o olhar quando uma senhora surgiu claudicando no adro. Era idosa, samurai, e apoiava-se penosamente numa bengala. Tinha o cabelo branco mas as costas eretas. Dirigiu-se a Kiritsubo, a criada segurando uma sombrinha acima dela.
— Ah, Kiritsubo-san — disse formalmente. — Sou Maeda Etsu, mãe do Senhor Maeda, e compartilho das opiniões da Senhora Toda. Com a permissão dela, eu gostaria de ter a honra de esperar com ela.
— Por favor, sente-se, a senhora é bem-vinda — disse Kiri. Uma criada trouxe outra almofada e as duas criadas ajudaram a velha senhora a se sentar.
— Ah, assim está melhor... muito melhor — disse a Senhora Etsu, contendo um gemido de dor. — São as minhas juntas, pioram a cada dia. Ah, isso é um alívio. Obrigada.
— Aceitaria um pouco de chá?
— Primeiro chá, depois saquê, Kiritsubo-san. Muito saquê. Toda essa excitação dá sede, neh?
Outras mulheres samurais estavam se separando da multidão que partia e voltando através das fileiras de cinzentos para a sombra agradável. Algumas hesitaram, três mudaram de idéia, mas logo havia catorze senhoras na varanda, duas das quais haviam trazido crianças consigo.
— Por favor, com licença, sou Achiko, esposa de Kiyama Nagasama, e também quero ir para casa — disse timidamente uma jovem, segurando a mão do filhinho. — Quero voltar para casa, para o meu marido. Posso pedir permissão para esperar também, por favor?
— Mas o Senhor Kiyama ficará furioso, se a senhora se juntar a nós.
— Oh, desculpe, Kiritsubo-san, mas o Avô mal me conhece. Sou apenas a esposa de um neto muito secundário. Tenho certeza de que ele não se importará e não vejo meu marido há meses e também não me importo com o que digam. Nossa senhora tem razão, neh?
— Toda a razão, Achiko-san — disse a velha Senhora Etsu, firmemente assumindo o controle. — Claro que você é bemvinda, criança. Venha sentar-se ao meu lado. Qual é o nome do seu filho? Você tem um belo menino.
As senhoras concordaram em coro e outro menino, de quatro anos, balbuciou queixosamente: — Por favor, eu também sou um belo menino, neh? — Alguém riu e logo todas a imitaram. — Você é, sim — disse a Senhora Etsu, e riu de novo.
Kiri secou uma lágrima. — Pronto, assim é melhor, eu estava ficando séria demais, neh? — Soltou uma risadinha. — Ah, senhoras, fico muito honrada em saudá-las em nome dela. Devem todas estar famintas, e a senhora tem toda a razão, Senhora Etsu, tudo isto dá muita sede! — Mandou criadas buscarem comida e bebida, e apresentou as senhoras que necessitavam de apresentação, admirando um belo quimono aqui ou uma sombrinha especial ali. Logo estavam todas tagarelando e felizes, remexendo-se como muitos periquitos.
— Como um homem pode compreender as mulheres? — disse Sumiyori inexpressivamente.
— Impossível! — concordou Yabu.
— Num momento estão assustadas e em lágrimas, no momento seguinte... Quando vi a Senhora Mariko pegar a espada de Yoshinaka, pensei que eu morreria orgulhosamente.
— Sim. Uma pena que o último cinzento fosse tão bom. Eu gostaria de tê-la visto matando. Ela teria matado um homem inferior.
Sumiyori esfregou a barba no ponto onde o suor secando irritava a pele. — O que o senhor teria feito, se fosse ele?
— Eu a teria matado, depois atacado os marrons. Houve sangue demais lá. Fiz o que pude para não massacrar todos os cinzentos perto de mim no parapeito.
— É bom matar às vezes. Muito bom. Algumas vezes é muito especial, e então é melhor do que uma mulher desejosa. Houve uma gargalhada entre as senhoras, quando os dois menininhos começaram a se pavonear de um lado para o outro com ar de importância, seus quimonos escarlates dançando. — É bom ter crianças aqui novamente. Agradeço aos deuses que as minhas estejam em Yedo.
— Sim. — Yabu olhava as mulheres especulativamente.
— Eu estava me perguntando a mesma coisa — disse Sumiyori calmamente.
— Qual é a sua resposta?
— Só há uma agora. Se Ishido nos deixar partir, ótimo. Se o seppuku da Senhora Mariko for desperdiçado, então... então ajudaremos essas senhoras a ir para o Vazio e começaremos o massacre. Elas não vão querer viver.