Do outro lado dos portões do jardim era como um mundo diferente, verdejante e sereno, o sol batendo no topo das árvores, pássaros chilreando e insetos à cata de alimento, o córrego caindo suavemente no tanque de lírios. Mas ele não conseguiu dissipar a própria tristeza.
Chimmoko parou e apontou para a pequena casa de chatio-yu. Ele avançou sozinho. Descalçou as sandálias e subiu os três degraus. Teve que se dobrar, pondo-se quase de joelhos, para passar pela minúscula porta.
— Você — disse ela em latim. — Você — respondeu ele.
Ela estava ajoelhada, encarando a porta, maquilada de pouco, lábios carmesins, um penteado imaculado, um quimono azul-claro barrado de verde, com um obi mais claro e uma fina fita verde no cabelo.
— Você está linda.
— E você. — Um esboço de sorriso. — Sinto muito que tenha sido necessário que você presenciasse.
— Era meu dever.
— Dever, não — disse ela. — Eu não esperava, nem planejei, tantas mortes.
— Karma. — Blackthorne arrancou-se do transe em que se encontrava e parou de falar em latim. — Você vinha planejando tudo isto há muito tempo — o seu suicídio. Neh?
— Minha vida nunca foi minha, Anjin-san. Sempre pertenceu ao meu suserano e, depois dele, ao meu amo. Essa é a nossa lei.
— É uma péssima lei.
— Sim. E não. — Ela levantou os olhos das esteiras. — Você vai discutir sobre coisas que não podem ser alteradas?
— Não. Por favor, desculpe-me.
— Eu o amo — disse ela, em latim.
— Sim. Sei disso agora. E eu a amo. Mas a morte é o seu objetivo, Mariko-san.
— Engana-se, meu querido. A vida do meu amo é o meu objetivo. E a sua vida. E sinceramente, Nossa Senhora me perdoe ou me abençoe por isso, há momentos em que a sua vida é mais importante.
— Não há escapatória agora. Para mais ninguém. — Seja paciente. O sol ainda não se pôs.
— Não confio nesse sol, Mariko-san. — Ele estendeu a mão e tocou-a. — Gomen nasai.
— Prometi-lhe que esta noite seria como na Hospedaria das Flores. Seja paciente. Conheço Ishido, Ochiba e os outros.
— Que vá com os outros — disse ele em português, seu ânimo se alterando. — Você quer dizer que está se arriscando porque Toranaga sabe o que está fazendo. Neh?
— Que vá com o seu mau humor — retrucou ela gentilmente. — Este dia é curto demais.
— Desculpe. Você tem razão novamente. Hoje não há tempo para maus humores. — Olhou-a. O rosto dela estava raiado com a sombra lançada pelo sol através das ripas de bambu. As sombras subiram e desapareceram quando o sol mergulhou atrás de uma ameia. — O que posso fazer para ajudá-la?
— Acredite que existe um amanhã.
Por um momento ele apreendeu um lampejo do terror dela. Seus braços a rodearam e a espera deixou de ser terrível. Passos se aproximaram.
— Sim, Chimmoko? — É hora, ama.
— Está tudo pronto? — Sim, ama.
— Espere-me junto do tanque de lírios. — Os passos se afastaram, Mariko voltou-se para Blackthorne e beijou-o suavemente.
— Eu o amo — disse. — Eu a amo.
Curvou-se para ele e atravessou a porta. Ele a seguiu. Mariko parou ao lado do tanque de lírios, desatou o obi e deixou-o cair.
Chimmoko ajudou-a a tirar o quimono azul. Por baixo Mariko usava o quimono e o obi do branco mais brilhante que Blackthorne jamais vira. Era um quimono de morte formal. Ela desatou a fita verde do cabelo e colocou-a de lado. Depois, completamente de branco, pôs-se em movimento e não olhou pára Blackthorne.
Do outro lado do jardim, todos os marrons estavam postados num quadro formal de três lados em torno dos oito tatamis que tinham sido estendidos no centro da entrada principal. Yabu, Kiri e o restante das senhoras estavam sentados numa linha no lugar de honra, voltados para o sul. Na avenida os cinzentos também estavam postados cerimoniosamente, e, misturados a eles, outros samurais e mulheres samurais. A um sinal de Sumiyori, todos se curvaram. Ela retribuiu-lhes a mesura. Quatro samurais deram um passo à frente e estenderam uma manta carmesim sobre os tatamis.
Mariko dirigiu-se a Kiritsubo e a saudou, assim como a Sazuko e a todas as senhoras. Elas lhe retribuíram a reverência e pronunciaram as saudações mais formais. Blackthorne esperava junto aos portões. Viu-a se afastar das senhoras, ir para o quadro carmesim e se ajoelhar no centro, diante de uma minúscula almofada branca. Sua mão direita sacou o estilete do obi branco e colocou-o sobre a almofada à sua frente. Chimmoko avançou e, ajoelhando-se também, ofereceu-lhe uma manta pequena e de um branco puro, e um cordão. Mariko arrumou as saias do quimono com perfeição, a criada ajudando-a, depois amarrou a manta em torno da cintura com o cordão. Blackthorne sabia que aquilo era para impedir suas saias de serem manchadas de sangue e desarrumadas pelos espasmos da morte.
Depois, serena e preparada, Mariko levantou os olhos para o torreão do castelo. O sol ainda iluminava o último andar, reluzindo nas telhas douradas. Rapidamente a luz flamejante subia pelo cone. E desapareceu.
Ela parecia minúscula, sentada ali imóvel, um salpico de branco sobre o quadro carmesim.
A avenida já estava escura e criados acendiam archotes. Quando acabaram, desapareceram tão rápida e silenciosamente quanto haviam chegado.
Ela se inclinou para a frente, tocou a faca e endireitou-a. Depois olhou fixamente mais uma vez através do portão para a extremidade da avenida, que continuava tão imóvel e vazia quanto sempre estivera. Olhou novamente para a faca.
— Kasigi Yabu-sama! — Sim, Toda-sama?
— Parece que o Senhor Kiyama recusou-se a me assistir. Por favor, eu ficaria honrada se o senhor fosse o meu assistente. — A honra é minha — disse Yabu. Curvou-se, pôs-se de pé e parou ao lado dela, à esquerda. Sua espada cantou ao deslizar para fora da bainha. Firmou os pés e levantou a espada com as duas mãos. — Estou pronto, senhora — disse.
— Por favor, espere até que eu tenha feito o segundo corte. Os olhos dela estavam na faca. Com a mão direita, fez o sinal-da-cruz sobre o peito, depois se inclinou para a frente, pegou a faca sem tremer e tocou-a com os lábios como que para testar o aço polido. Depois mudou a posição da faca na mão e segurou-a firmemente sob o lado esquerdo do pescoço. Nesse momento archotes contornaram a extremidade da avenida. Um cortejo se aproximou. Ishido vinha à frente.
Ela não moveu a faca.
Yabu ainda estava como uma mola enrolada, concentrado no alvo. — Senhora — disse —, espera ou continua? Quero ser perfeito para a senhora.
Mariko forçou-se a voltar da beira do abismo. — Eu... nós esperamos... nós... eu... — Sua mão baixou a faca. Estava tremendo agora. De modo igualmente lento, Yabu descontraiu-se. Sua espada sibilou de volta para dentro da bainha e ele enxugou as mãos nos flancos.
Ishido surgiu ao portão. — Ainda não é o crepúsculo, senhora. O sol ainda está no horizonte. Está tão ansiosa por morrer? — Não, senhor general. Apenas para obedecer ao meu senhor... — Apertou uma mão contra a outra para fazê-las parar de tremer.
Um rolar surdo de cólera percorreu os marrons ante a arrogante rudeza de Ishido e Yabu preparou-se para pular em cima dele, mas parou quando Ishido disse sonoramente: — A Senhora Ochiba implorou aos regentes, em nome do herdeiro, que abrissem uma exceção no seu caso. Concedemos a sua solicitação. Aqui estão as licenças para a senhora partir ao amanhecer de amanhã — disse Ishido, empurrando-as para as mãos de Sumiyori, que estava próximo.
— Senhor? — disse Mariko, não compreendendo, sua voz um fio.
— Está livre para partir. Ao amanhecer.
— E... e Kiritsubo-san e a Senhora Sazuko?
— Isso também não faz parte do seu "dever"? As licenças delas estão aí também.