— Digo-lhe que estará! — E se não estiver?
— Como o Senhor Toranaga poderia fazer isso? — perguntou a Senhora Ochiba.
— Não sei. Mas se o Exaltado quisesse que sua visita fosse adiada por um mês... não há nada que possamos fazer. O senhor Toranaga não é um mestre na subversão? Eu não o considero incapaz de nada — nem de influenciar o Filho do Céu.
Houve silêncio mortal na sala. A enormidade daquele pensamento, e suas repercussões, envolveu-os.
— Por favor, desculpem-me, mas... mas qual é a resposta? — disse Ochiba, por todos eles.
— Guerra! — disse Kiyama. — Mobilizamo-nos hoje, secretamente. Esperamos até que a visita seja adiada, como será. Esse será o nosso sinal de que Toranaga influenciou o Altíssimo. No mesmo dia marchamos contra o Kwanto, durante a estação das chuvas.
Repentinamente o chão começou a tremer.
Primeiro o terremoto foi leve e durou apenas alguns momentos, mas fez as vigas estalarem.
Depois houve outro tremor. Mais forte. Uma fenda rasgou uma parede de pedra e parou. Poeira desprendeu-se do teto. Colunas, traves e telhas guincharam e telhas se soltaram de um telhado e se lançaram no adro lá embaixo.
Ochiba sentiu-se tonta e nauseada, e se perguntou se era o seu karma ser soterrada por entulho naquele dia. Agarrou-se ao soalho tremendo e esperou, assim como todo mundo no castelo, e a cidade e os navios na enseada, que o verdadeiro abalo começasse.
Mas não começou. O terremoto terminara. A vida recomeçou. A alegria de viver invadiu-os de novo, e seu riso ecoou pelo castelo. Todos pareciam saber que desta vez — aquela hora, aquele dia — o holocausto passara perto deles.
— Shikata ga nai — disse Ishido, ainda convulsionado. — Neh?
— Sim — disse Ochiba gloriosamente.
— Vamos votar — disse Ishido, saboreando a própria existência. — Voto pela guerra!
— Eu também! — Eu também! — Eu também! — Eu também!
Quando Blackthorne recuperou a consciência, soube que Mariko estava morta, e soube como ela morrera e por que morrera. Estava deitado sobre futons, cinzentos guardando-o, um teto de vigas no alto, a ofuscante luz do sol ferindo-lhe os olhos, o silêncio estranho. O primeiro dos seus grandes temores se esvaneceu. Posso ver.
O médico sorriu e disse alguma coisa, mas Blackthorne não conseguiu ouvir. Começou a se levantar, mas uma dor ofuscante disparou um ressoar violento nos seus ouvidos. O acre gosto de pólvora ainda lhe estava na boca e o seu corpo inteiro doía.
Por um momento perdeu a consciência de novo, depois sentiu mãos gentis erguer-lhe a cabeça, encostar-lhe uma xícara aos lábios, e o agridoce sabor do chá com cheiro de jasmim eliminou o gosto de pólvora. Forçou os olhos a se abrirem. Novamente o médico disse alguma coisa, novamente não conseguiu ouvir, e novamente o terror começou a brotar, mas ele o deteve, sua mente lembrando-se da explosão, de vê-Ia morta e, antes de ela morrer, de dar-lhe uma absolvição que não era qualificado para dar. Deliberadamente afastou a lembrança e se concentrou na outra explosão — a vez em que fora atirado ao mar depois de o velho Alban Caradoc ter perdido as pernas. Daquela vez também tivera o mesmo ressoar nos ouvidos, a mesma dor, a mesma ausência de som, mas sua audição voltara alguns dias depois.
Não há motivo para se preocupar, disse a si mesmo. Ainda não.
Podia ver a extensão das sombras do sol e a cor da luz. Amanheceu há pouco tempo, pensou, e novamente bendisse a Deus por sua visão estar incólume.
Viu os lábios do médico moverem-se, mas nenhum som atravessou a turbulência ressoante.
Cuidadosamente apalpou o rosto, a boca e os maxilares. Não havia dor ali, nem ferimentos. Depois o pescoço, braços e peito. Nada de ferimentos. Depois desceu mais as mãos, sobre os rins, a sua masculinidade. Mas não estava mutilado, como Alban Caradoc fora, e agradeceu a Deus por não ter sido ferido ali e deixado vivo para saber, como o pobre Alban Caradoc soubera.
Descansou um momento, a cabeça doendo de modo abominável. Depois apalpou as pernas e os pés. Tudo parecia em ordem. Cautelosamente pousou as mãos sobre as orelhas e fez pressão, depois abriu parcialmente a boca, engoliu e meio que bocejou, para tentar clarear os ouvidos. Mas isso só aumentou a dor.
Você esperará um dia e meio, ordenou a si mesmo, e dez vezes esse tempo se for necessário, até lá você não terá medo. O médico tocou-o, seus lábios movendo-se.
— Não consigo ouvir, sinto muito — disse Blackthorne calmamente, ouvindo as palavras apenas no cérebro.
O médico assentiu e falou novamente. Desta vez Blackthorne leu nos lábios do homem: "Compreendo. Por favor, durma agora".
Mas Blackthorne sabia que não dormiria. Tinha que planejar. Tinha que se levantar e deixar Osaka e ir a Nagasaki — arranjar atiradores e marujos para tomar o Navio Negro. Não havia mais nada em que pensar, mais nada de que se lembrar. Não havia mais razão para brincar de ser samurai ou japonês. Agora estava livre, todas as dívidas e amizades canceladas. Porque ela se fora.
Novamente levantou a cabeça e novamente sentiu a dor cegante. Dominou-a e se sentou. O quarto girou e ele vagamente se lembrou de que em seus sonhos estivera de volta a Anjiro, durante o terremoto, quando a terra se fendera e ele pulara lá dentro para salvá-la e a Toranaga de serem tragados. Ainda podia sentir a fria e pegajosa umidade, e aspirar o mau cheiro da morte que vinha da fenda, Toranaga imenso, monstruoso e rindo no seu sonho.
Forçou os olhos a verem. O quarto parou de girar e a náusea passou. — Chá, dozo — disse, o gosto de pólvora na boca de novo. Mãos ajudaram-no a beber, depois ele estendeu os braços e elas o ajudaram a se erguer. Sem elas teria caído. Seu corpo era um grande ferimento, mas agora tinha certeza de que nada se quebrara internamente, nem externamente, exceto os seus ouvidos, e que descanso, massagem e o tempo o curariam. Agradeceu novamente a Deus por não ter sobrevivido cego ou mutilado. Os cinzentos ajudaram-no a se sentar de novo e ele se deitou um momento. Não notou que o sol se moveu um quadrante do momento em que se deitou até o momento em que abriu os olhos.
Curioso, pensou, avaliando a sombra do sol, sem perceber que dormira. Eu poderia ter jurado que amanhecera há pouco. Meus olhos estão me pregando peças. Está perto do fim do turno da manhã agora. Isso fê-lo lembrar-se de Alban Caradoc e suas mãos se moveram pelo corpo mais uma vez, para certificá-lo de que não sonhara que estava ileso.
Alguém tocou-o e ele levantou os olhos. Yabu estava a observá-lo e falando.
— Sinto muito — disse Blackthorne lentamente. — Ainda não consigo ouvir, Yabu-san. Logo estarei bem. Ouvidos doem, compreende?
Viu Yabu assentir e franzir o cenho. Yabu e o médico conversaram e depois, com sinais, Yabu fez Blackthorne compreender que logo voltaria e que Blackthorne descansasse até que ele o fizesse. E saiu.
— Banho, por favor, e massagem — disse Blackthorne. Mãos ergueram-no e levaram-no até lá. Ele dormiu sob os dedos calmantes, o corpo mergulhado no êxtase do calor, a maciez e o aroma doce dos óleos que lhe foram esfregados na carne. E o tempo todo sua mente planejou. Enquanto dormiu, os cinzentos vieram, ergueram-lhe a maca e carregaram-na aos aposentos internos do torreão, mas ele não despertou, drogado pela fadiga e pela poção curativa e sonífera.
— Ele estará seguro agora, senhora — disse Ishido. — Contra Kiyama? — perguntou Ochiba.
— Contra todos os cristãos. — Ishido fez sinal aos guardas para o corredor, que estivessem muito alerta e saiu do quarto depois para o jardim inundado de sol.
— Foi por isso que a Senhora Achiko foi morta? Porque era cristã?
Ishido ordenara isso para o caso de ela ser uma assassina introduzida lá pelo avô Kiyama, a fim de matar Blackthorne. — Não tenho idéia — disse.
— Eles se agarram uns aos outros, como abelhas numa colmeia. Como é que alguém pode acreditar no absurdo religioso deles?