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O médico falou-lhe de novo. O ressoar ainda lhe estava nos ouvidos e a voz tênue, mas não havia erro agora. Podia ouvir de novo. Involuntariamente suas mãos foram para os ouvidos e apertaram. Imediatamente a dor explodiu-lhe na cabeça e disparou faixas e luzes coloridas e um latejar violento.

— Desculpe — murmurou ele, esperando que o sofrimento diminuísse, querendo que diminuísse. — Desculpe, ouvidos doem, neh? Mas eu ouço agora — compreende, doutor-san? Ouço agora — um pouco. Desculpe, o que disse? — Prestou atenção aos lábios do homem para se ajudar a ouvir.

— A Senhora Ochiba e Kiritsubo-sama querem saber como o senhor está.

— Ah! — Blackthorne olhou para elas. Notou que estavam vestidas formalmente. Kiritsubo toda de branco, exceto por uma fita verde no cabelo, o quimono de Ochiba verde-escuro, sem estampado ou adornos, o longo xale branco de gaze. — Melhor, obrigado. — Depois observou a claridade lá fora e percebeu que era quase amanhecer e não crepúsculo. — Doutor-san, por favor, dormi um dia e uma noite?

— Sim, Anjin-san. Um dia e uma noite. Deite-se de novo, por favor. — O médico pegou o pulso de Blackthorne com seus longos dedos e pressionou, ouvindo com as pontas dos dedos as nove pulsações, três na superfície, três no meio e três profundas, conforme a medicina chinesa ensinava desde tempos imemoriais. Todos na sala esperavam pelo diagnóstico. O médico assentiu, satisfeito. — Parece tudo em ordem, Anjin-san. Nenhum ferimento sério, compreende? Muita dor de cabeça, neh? — Voltou-se e explicou com mais detalhes à Senhora Ochiba e a Kiritsubo.

— Anjin-san — disse Ochiba —, hoje é o funeral de Mariko-sama. Compreende "funeral"'?

— Sim, senhora.

— Bom. O funeral será pouco depois do amanhecer. É privilégio seu ir se quiser. Compreende?

— Sim. Acho que sim. Sim, por favor, também vou.

— Muito bem. — Ochiba falou com o médico, dizendo-lhe que tratasse do paciente com todo o cuidado. Depois, com uma polida reverência a Kiritsubo e um sorriso a Blackthorne, saiu.

Kiri esperou até que ela tivesse ido embora. — Está bem, Anjin-san?

— Ouço mal, senhora. Sinto muito.

— Por favor, desculpe-me. Eu queria lhe dizer obrigada. Compreende?

— Dever. Apenas dever. Falhei. Mariko-sama morta, neh? Kiri curvou-se para ele em homenagem. — Não falhou. Oh, não, não falhou. Obrigada, Anjin-san. Por ela, por mim e pelas outras. Mais tarde falo mais. Obrigada. — E também foi embora. Blackthorne apoiou-se e se pôs em pé. A dor de cabeça era monstruosa, fazendo-o querer gritar. Forçou os lábios numa linha apertada, o peito doendo muito, o estômago contorcendo-se. Num instante a náusea passou, mas deixou um gosto repugnante na boca. Moveu os pés para a frente e caminhou até a janela, apoiou-se ao peitoril, esforçando-se para não vomitar. Esperou, depois caminhou de um lado para o outro, mas isso não lhe eliminou a dor de cabeça nem a náusea.

— Eu bem, obrigado — disse, e sentou-se de novo.

— Tome, beba isto. Faz melhorar. Acomoda a hara. — O médico tinha um sorriso bondoso. Blackthorne bebeu e teve ânsias. A beberagem cheirava a esterco envelhecido de aves e a algas, misturados com folhas fermentando num dia quente de verão. O gosto era pior ainda.

— Beba. Logo estará melhor, sinto muito.

Blackthorne teve ânsias de novo, mas forçou o líquido a descer.

— Logo estará melhor, sinto muito.

Algumas criadas se aproximaram, pentearam-no e prenderam-lhe o cabelo. Um barbeiro barbeou-o. Trouxeram toalhas quentes para o rosto e mãos, e ele se sentiu muito melhor. Mas a dor de cabeça permanecia. Outras criadas ajudaram-no a vestir o quimono formal e o manto com asas. Havia uma espada curta nova. — Presente, amo. Presente de Kiritsubo-sama — disse uma criada.

Blackthorne aceitou-a e enfiou-a ao cinto, junto com a espada mortífera, a que Toranaga lhe dera, o cabo lascado e quase quebrado no ponto onde ele golpeara o ferrolho. Lembrou-se de Mariko em pé, de costas para a porta, depois de mais nada até o momento em que ele se ajoelhara ao lado dela e a vira morrer. Depois nada até agora.

— Desculpe, este é o torreão, neh? — perguntou ao capitão dos cinzentos.

— Sim, Anjin-san. — O capitão curvou-se respeitosamente, corpulento como um gorila, e igualmente perigoso.

— Por que estou aqui, por favor?

O capitão sorriu e respondeu polidamente: — O senhor general ordenou.

— Mas por que aqui?

— Foram ordens do senhor general — disse o samurai. — Por favor, desculpe, compreende?

— Sim, obrigado — disse Blackthorne, cansado.

Quando finalmente ficou pronto, sentiu-se péssimo. Um pouco de chá ajudou-o um momento, depois o enjôo subiu num turbilhão e ele vomitou na tigela que uma criada segurou, o peito e a cabeça trespassados por agulhas quentes e vermelhas a cada espasmo.

— Sinto muito — disse o médico com paciência. — Tome, por favor, beba.

Ele tomou mais da beberagem, mas não adiantou.

O amanhecer agora estava se espalhando pelo céu. Criadas o chamaram com um sinal e o ajudaram a sair do amplo aposento, seus guardas na frente, os demais atrás. Desceram a escada e saíram para o adro. Havia um palanquim à espera, com mais guardas. Ele se acomodou, agradecido. A uma ordem do seu capitão de cinzentos, os carregadores pegaram as hastes e, rodeados de guardas protetores, juntaram-se à procissão de liteiras e de samurais e senhoras a pé que coleava através do labirinto para fora do castelo. Estavam todos vestidos com esmero. Algumas mulheres usavam quimonos escuros com fitas pretas no cabelo, outras estavam todas de branco, exceto por uma fita de cor.

Blackthorne tinha consciência de estar sendo observado. Fingiu não notar isso e tentou manter as costas eretas e o rosto despido de emoção, e orou para o enjôo não voltar e envergonhá-lo. A dor aumentou.

O cortejo se insinuou por entre as muralhas do castelo, passou por milhares de samurais alinhados em filas silenciosas. Ninguém foi detido, nenhum documento solicitado. Sem parar, o cortejo fúnebre atravessou posto de controle após posto de controle, sob rastrilhos e através dos cinco fossos. Uma vez do outro lado do portão principal, fora das fortificações principais, ele notou que os seus cinzentos se tornaram mais cautelosos, os olhos vigiando todo mundo por perto, mantendo-se perto dele, protegendo-o muito cuidadosamente. Isso lhe diminuiu a ansiedade. A procissão cruzou uma área desimpedida, atravessou uma ponte, depois fez alto na praça ao lado da margem do rio.

Esse espaço tinha trezentos passos por quinhentos. No centro havia um poço de quinze passos quadrados e cinco de profundidade, cheio de madeira. Sobre o poço havia um alto telhado de esteiras, enfeitado com seda branca e rodeado de paredes de tela de linho branco, pendendo de bambus, que apontavam exatamente para leste, norte, oeste e sul, um pequeno portão de madeira no meio de cada parede.

— Os portões são para que a alma os atravesse, Anjin-san, no seu vôo para o paraíso — dissera-lhe Mariko em Hakoné. — Vamos nadar ou conversar sobre outras coisas. Coisas felizes.

— Sim, claro, mas primeiro me deixe concluir, porque isto é uma coisa muito feliz. O nosso funeral é muitíssimo importante para nós, por isso você deve aprender a respeito dele, Anjin-san, neh? Por favor?

— Está bem. Mas por que quatro portões? Por que não apenas um?

— A alma deve ter uma escolha. Isso é sábio — oh, somos muito sábios, neh? Eu já lhe disse hoje que o amo? — dissera ela em latim. — Somos uma nação muito sábia em oferecer uma escolha à alma. A maioria das almas escolhe o portão sul, Anjin-san. É o portão importante, onde há mesas com figos secos, romãs frescas e outras frutas, rabanetes e outros vegetais, e folhas de arroz, se a estação for correta. E sempre uma tigela de arroz fresco cozido, Anjin-san, isso é muito importante. Você entende, a alma pode querer comer antes de partir.

— Se for eu, ponha um faisão assado ou...