— Sinto muito, nada de carne. Nem mesmo peixe. Somos sérios sobre isso, Anjin-san. Além disso, sobre a mesa também haverá um pequeno braseiro com carvões queimando agradavelmente com madeiras preciosas e óleos, para que tudo tenha um cheiro suave...
Blackthorne sentiu os olhos se encherem de lágrimas.
— Quero que o meu funeral seja perto do amanhecer — dissera ela sempre, com muita serenidade. — Amo o amanhecer. E se também pudesse ser no outono ...
Minha pobre querida, pensou ele. Você sabia o tempo todo que não haveria um outono.
Sua liteira parou num lugar de honra na fila dianteira, perto do centro, e ele ficou próximo o suficiente para ver lágrimas sobre as frutas borrifadas de água. Estava tudo ali, conforme ela dissera. Em torno alinhavam-se centenas de palanquins e na praça se aglomeravam mil samurais e suas senhoras a pé, todos silenciosos e imóveis. Ele reconheceu Ishido e, ao seu lado, Ochiba. Nenhum dos dois olhou para ele. Estavam sentados em liteiras suntuosas e fitavam as paredes de linho branco que sussurravam à brisa suave. Kiyama estava do outro lado de Ochiba, Zataki perto, com Ito. A liteira fechada de Onoshi também estava lá. Todos tinham destacamentos de guardas. Os samurais de Kiyama usavam cruzes. E os de Onoshi.
Blackthorne olhou em torno, procurando Yabu, mas não conseguiu encontrá-lo em parte alguma, nem qualquer marrom ou rosto amistoso. Kiyama agora o fitava vitreamente e, quando Blackthorne viu a expressão nos olhos dele, sentiu-se contente por ter guardas. Entretanto, curvou-se polidamente. Mas o olhar de Kiyama permaneceu inalterado e não deu mostras de ter notado a polidez de Blackthorne. Dali a pouco Kiyama desviou os olhos e Blackthorne respirou com mais facilidade.
O som de tambores e sinos e metal batendo em metal rasgou o ar. Dissonante. Lancinante. Todos os olhos se dirigiram para a entrada principal do castelo, de onde surgiu um palanquim co berto e adornado, carregado por oito sacerdotes xintoístas, um sumo sacerdote sentado como um Buda grave. Outros sacerdotes batiam em tambores de metal à frente e atrás da liteira, e depois vinham duzentos sacerdotes budistas usando hábito laranja, mais sacerdotes xintoístas vestidos de branco, e depois o esquife.
Era rico, coberto, todo branco. Ela estava vestida de branco e sentada, a cabeça ligeiramente para a frente, o rosto maquilado, o penteado meticuloso. Dez marrons carregavam o andor. Diante do esquife dais noviços atiravam minúsculas pétalas de rosas de papel, que o vento levava e espalhava, significando que a vida era efêmera como uma flor; atrás deles dois sacerdotes arrastavam duas lanças com a ponta para baixo, indicando que ela era samurai e o dever, forte como as lâminas de aço. Depois deles vinham quatro sacerdotes com archotes apagados. Saruji, o filho, vinha em seguida, o rosto tão branco quanto o quimono. Depois Kiritsubo e a Senhora Sazuko, ambas de branco, o cabelo solto mas coberto de gaze verde. O cabelo da garota caía-lhe abaixo da cintura, o de Kiri era mais longo. Depois havia um espaço, e por último vinha o restante da guarnição de Toranaga. Alguns marrons estavam feridos e muitos mancavam.
Blackthorne via apenas a ela. Parecia estar em oração e não apresentava marca alguma. Ele se mantinha rígido, sabendo que honra aquela cerimônia pública, com Ishido e Ochiba como tes temunhas principais, representava para ela. Mas isso não lhe aliviava o sofrimento.
Por mais de uma hora, o sumo sacerdote entoou encantamentos e os tambores soaram. Depois, num silêncio repentino, Saruji deu um passo à frente, pegou um archote apagado e foi a cada um dos quatro portões, leste, norte, oeste e sul, para se certificar de que não estavam obstruídos.
Blackthorne viu que o menino tremia e que estava de olhos baixos quando voltou para junto do esquife. Então ergueu a corda branca atada a ele e guiou os carregadores pelo portão sul. A liteira toda foi cuidadosamente colocada sobre a madeira. Outro encantamento solene, depois Saruji encostou o archote encharcado de óleo nas brasas do braseiro. Ardeu imediatamente. Ele hesitou, depois voltou novamente pelo portão sul, sozinho, e atirou o archote na pira. A madeira impregnada de óleo pegou fogo. Rapidamente se tornou uma fornalha. Logo as chamas estavam com dez pés de altura. Saruji foi forçado a recuar pelo calor, depois pegou madeiras e óleos perfumados e atirou-os ao fogo. Agora toda a área do poço era uma massa devastadora, pirogênica — redemoinhando, crepitando, ávida.
Os pilares do telhado ruíram. Um suspiro percorreu os assistentes. Sacerdotes avançaram e puseram mais madeira na pira, e as chamas se ergueram mais alto, a fumaça em grandes rolos. Agora restavam apenas os quatro pequenos portões. Blackthorne viu o calor chamuscá-los. Depois também arderam nas chamas. Então lshido, a principal testemunha, saiu do seu palanquim, avançou e fez a oferenda ritual de madeira preciosa. Curvou-se formalmente e se sentou de novo na sua liteira. A uma ordem sua, os carregadores o ergueram e ele voltou ao castelo. Ochiba seguiu-o. Outros começaram a partir.
Saruji curvou-se para as chamas uma última vez., Voltou-se e caminhou até Blackthorne. Parou à sua frente e curvou-se. — Obrigado, Anjin-san — disse. Depois se afastou com Kiri e a Senhora Sazuko.
— Tudo acabado, Anjin-san — disse o capitão dos cinzentos com um sorriso. — Os kamis seguros agora. Vamos ao castelo. — Espere. Por favor.
— Sinto muito, ordens, neh? — disse o capitão, preocupado, os outros guardas aproximando-se.
— Por favor, espere.
Sem se preocupar com a ansiedade deles, Blackthorne desceu da liteira, a dor quase o cegando. Os samurais se espalharam, dando-lhe cobertura. Ele caminhõu até a mesa, pegou alguns pe dacinhos de madeira de cânfora e atirou-os na fornalha. Não conseguia ver nada através da cortina de chamas.
— In nomine Patris et Filii et Spiritui Sancti — murmurou ele numa bênção, e fez um pequeno sinal-da-cruz. Depois se voltou e se afastou do fogo.
Quando despertou, a cabeça estava muito melhor mas ele se sentia esgotado, a dor surda ainda latejando atrás das têmporas e na testa.
— Como se sente, Anjin-san? — disse o médico com o seu sorriso dentuço, a voz ainda tênue. — Dormiu muito tempo. Blackthorne ergueu-se sobre um cotovelo e fitou sonolentamente as sombras do sol. Devem ser quase cinco horas da tarde agora, pensou. Dormi mais de seis horas. — Dormi o dia todo, neh?
O médico sorriu. — Ontem o dia todo, a noite e a maior parte de hoje. Compreende?
— Compreendo. Sim. — Blackthorne deitou-se, um brilho de transpiração na pele. Bom, pensou. A melhor coisa que eu poderia ter feito, não admira que me sinta melhor.
A sua cama de acolchoados macios estava rodeada por três lados agora de requintados tabiques móveis, com pinturas de paisagens campestres e marítimas, emolduradas com marfim. A claridade vinha pelas janelas opostas e moscas enxameavam, o quarto imenso, agradável e silencioso. Fora havia os sons do castelo, agora misturados ao trote de cavalos passando, rédeas retinindo, os cascos desferrados. A brisa leve trazia o aroma de fumaça. Não sei se gostaria de ser queimado, pensou ele. Mas espere um minuto, não é melhor do que ser colocado numa caixa, depois enterrado e depois os vermes... Pare com isso, ordenou a si mesmo, sentindo-se ir à deriva numa espiral descendente. Não há nada com que se preocupar, karma é karma, e quando você estiver morto, estará morto, e não saberá de mais nadae qualquer coisa é melhor do que afogamento, a água enchendo você, o seu corpo se tornando enlameado e pútrido, os caranguejos... Pare com isso!
— Beba, por favor. — O médico deu-lhe mais daquela beberagem repugnante. Ele teve ânsia de vômito, mas reteve-a no estômago.
— Chá, por favor. — A criada serviu e ele agradeceu. Era uma mulher de meia-idade e rosto redondo, fendas no lugar de olhos e um fixo sorriso vazio. Depois de três xícaras sua boca ficou suportável.
— Por favor, Anjin-san, como está ouvindo?
— A mesma coisa. Ainda longe... distância, compreende? Muito distante.