— Compreendo. Comer, Anjin-san?
Uma pequena bandeja the foi servida com arroz, sopa e peixe grelhado. O seu estômago estava nauseado, mas lembrou-se de que praticamente não comia há dois dias, por isso se sentou e se forçou a ingerir um pouco de arroz e a tomar a sopa de peixe. Isso acomodou-lhe o estômago, então comeu mais e deu cabo de tudo, usando os pauzinhos agora como extensões dos próprios dedos, sem esforço consciente. — Obrigado. Faminto.
— Sim — disse o médico. Colocou uma bolsa de linho com ervas sobre a mesa baixa ao lado da cama. — Faça chá com isto, Anjin-san. Uma vez por dia até sarar. Compreende?
— Sim. Obrigado.
— Foi uma honra servi-lo. — O velho fez sinal à criada, que levou embora a bandeja vazia, e depois de outra mesura seguiu-a e saiu pela mesma porta interna. Blackthorne ficou sozinho. Deitou-se sobre os futons sentindo-se muito melhor.
— Eu só estava com fome — disse alto. Estava usando apenas uma tanga. Suas roupas formais estavam numa pilha desarrumada onde ele as deixara, e isso o surpreendeu, embora hou vesse um quimono marrom limpo ao lado das suas espadas. Deixou-se devanear, depois de repente sentiu uma presença estranha. Inquieto, sentou-se e correu os olhos ao redor. Depois pôs-se de joelhos e olhou por sobre os biombos e antes de se dar conta estava em pé, a cabeça se fendendo com o repentino movimento de pânico ao ver o jesuíta japonês tonsurado fitando-o, ajoelhado imóvel ao lado da porta principal, um crucifixo e um rosário nas mãos.
— Quem é você? — perguntou Blackthorne através da sua dor.
— Sou o
carvão não piscavam. Blackthorne afastou-se das divisórias e se dirigiu para as suas espadas. — O que quer comigo?
— Mandaram-me perguntar como o senhor está Miguel calmamente, num português claro, embora com — Quem o mandou?
— O Senhor Kiyama.
Subitamente Blackthorne percebeu que sozinhos. — Onde estão os meus guardas? — O senhor não tem guardas.
— Claro que tenho! Tenho vinte meus cinzentos?— Não havia nenhum quando cheguei, senhor. Sinto muito. O senhor ainda estava dormindo. — Miguel apontou gravemente para fora. — Talvez devesse perguntar àqueles samurais.
Blackthorne pegou a espada. — Por favor, saia de junto da porta.
— Não estou armado, Anjin-san.
— Ainda assim, não se aproxime de mim. Padres me deixam nervoso.
Obedientemente, Miguel pôs-se de pé e se afastou com a mesma calma enervante. Do lado de fora dois cinzentos encostavam-se insolentes à balaustrada do patamar.
— Boa tarde — disse Blackthorne polidamente, nhecer nenhum dos dois.
Ambos se curvaram. — Boa tarde, Anjin-san — retrucou um. — Por favor, onde estão os meus guardas?
— Todos os guardas foram levados embora na hora da Lebre esta manhã. Compreende "hora da Lebre"? Não somos os seus guardas, Anjin-san. Este é o nosso posto habitual.
Blackthorne sentiu o suor gelado escorrer-lhe pelas costas.
— Onde estão os guardas?
— Levados embora — disse com sotaque.
— Quem ordenou?
Os dois samurais riram. O alto disse:
— Aqui, dentro do torreão, Anjin-san,o senhor general dá ordens
O samurai mais alto chamou. Em poucos momentos um oficial saiu de uma sala com quatro samurais. Era jovem e teso. Quando viu Blackthorne seus olhos se iluminaram. — Ah, Anjin-san. Como se sente?
— Melhor, obrigado. Por favor, desculpe-me, mas onde estão os meus guardas?
— Recebi ordem de lhe dizer, quando acordasse, que o senhor deve voltar ao seu navio. Aqui está o seu passe. — O capitão tirou o papel da manga e deu-o a ele, apontando com desdém para Miguel. — Esse sujeito será o seu guia.
Blackthorne tentou pôr a cabeça a funcionar, o cérebro gritando perigo. — Sim. Obrigado. Mas primeiro, por favor, devo ver o Senhor Ishido. Muito importante.
— Sinto muito. Suas ordens são para voltar ao navio assim que despertar. Compreende?
— Sim. Por favor, desculpe-me, mas é muito importante eu ver o Senhor Ishido. Por favor, diga ao seu capitão. Agora. Devo ver o Senhor Ishido antes de partir. Muito importante, sinto muito.
O samurai coçou as marcas de varíola no queixo. — Vou perguntar. Por favor, vista-se. — Afastou-se a passos largos e com ar de importância, para alívio de Blackthorne. Os quatro samurais ficaram. Blackthorne voltou e se vestiu rapidamente. Eles o observavam. O padre esperava no corredor.
Seja paciente, disse-se ele. Não pense e não se preocupe. É um engano. Nada mudou. Você continua tendo o poder que sempre teve.
Colocou as duas espadas no sash e tomou o resto do chá. Então viu o passe. O papel estava selado e coberto de caracteres. Não há engano quanto a isto, pensou, o quimono limpo já a lhe colar no corpo.
— Ei, Anjin-san — disse um dos samurais -, ouvi dizer que o senhor matou cinco ninjas. Muito, muito bom, neh?
— Sinto muito, apenas dois. Talvez três. — Blackthórne moveu a cabeça de um lado para o outro para aliviar a dor e a vertigem.
— Ouvi dizer que foram mortos cinqüenta e sete ninjas e cento e dezesseis marrons. É verdade?
— Não sei. Sinto muito.
O capitão voltou ao quarto. — Suas ordens são para o senhor ir para o seu navio, Anjin-san. O padre é o seu guia.
— Sim. Obrigado. Mas primeiro, desculpe, devo ver a Senhora Ochiba. Muito, muito importante. Por favor, pergunte ao seu...
O capitão virou-se para Miguel e falou guturalmente e muito depressa. — Neh? — Miguel curvou-se, impassível, e voltou-se para Blackthorne. — Sinto muito, senhor. Ele diz que o seu su perior está perguntando ao superior, mas enquanto isso o senhor deve partir imediatamente e seguir-me — para a galera.
— Ima! — acrescentou o capitão, com ênfase.
Blackthorne sabia que era um homem morto. Ouviu-se dizer: — Obrigado, capitão. Onde estão os meus guardas, por favor? — O senhor não tem guardas.
— Por favor, mande buscar no meu navio. Por favor traga meus vassalos do ...
— Ordem ir navio agora! Compreende, neh? — As palavras foram descorteses e muito conclusivas. — Ir ao navio! — acrescentou o capitão com um sorriso falso, esperando que Blackthorne se curvasse primeiro.
Blackthorne notou isso e tudo se transformou em pesadelo, tudo retardado e enevoado. Desesperado, sentiu vontade de enxugar o suor do rosto e curvar-se, mas teve certeza de que dificil mente o capitão retribuiria a mesura, talvez nem sequer polidamente e jamais como igual, e ele estaria envergonhado diante de todos eles. Estava claro que fora traído e vendido ao inimigo cristão, que Kiyama, Ishido e os padres faziam parte da traição, e, fosse pela razão ou o preço que fosse, não havia nada agora que ele pudesse fazer senão enxugar o suor, curvar-se e partir, e eles estariam à sua espera.
Então sentiu Mariko ao seu lado e se lembrou do terror dela, de tudo o que quisera dizer, tudo o que fizera, e tudo o que lhe ensinara. Forçou a mão sobre o punho quebrado da espada e truculentamente separou os pés, sabendo que o seu destino estava decidido, seu karrnn fixado, e que, se tinha que morrer, preferia morrer agora, com orgulho, a morrer mais tarde.
— Sou John Blackthorne, Anjin-san — disse, sua decisão absoluta emprestando-lhe um poder estranho e uma rudeza perfeita. — General do navio do Senhor Toranaga. De todos os navios. Samurai e hatamoto! Quem é o senhor?
O capitão corou. — Saigo Massakatsu de Kaga, capitão da guarnição do Senhor Ishido.
— Sou hatamoto. O senhor é hatamoto? — perguntou Blackthorne, ainda mais rudemente, sem sequer tomar conhecimento do nome do adversário, apenas vendo-o com uma clareza enorme, irreal — vendo cada poro, cada pêlo da barba curta, cada salpico de cor nos hostis olhos castanhos, cada pêlo nas costas da mão do homem que agarrava o punho da espada.
— Não, não hatamoto.
— O senhor é samurai... ou ronin? — A última palavra sibilou e Blackthorne sentiu homens atrás de si, mas não se preocupou. Estava apenas observando o capitão, esperando pelo golpe súbito e mortal que reuniria toda a hara-gei, toda a fonte interna de energia, e preparou-se para retribuir o golpe com a mesma força cegante, numa morte mútua e honrosa, e assim derrotar o inimigo.