— Por Nossa Senhora... — Ferreira parou. Não tinha medo por si mesmo, mas agora o seu Navio Negro estava em risco e ele sabia que a maior parte da sua tripulação o desertaria se não obedecesse. Por um momento contemplou a possibilidade de atirar no padre, mas isso não suprimiria a maldição. Por isso cedeu. — Muito bem... de volta a bordo, todos vocês!
Obedientemente os homens se dispersaram, contentes por se afastarem da cólera do padre. Blackthorne continuava desnorteado, perguntando-se se a sua cabeça não lhe estaria pregando uma peça. Então, em meio ao tumulto, o ódio de Pesaro explodiu. Fez pontaria. Dell'Aqua viu o movimento dissimulado e saltou para a frente a fim de proteger Blackthorne com o próprio corpo. Pesaro puxou o gatilho, mas nesse momento foi varado de setas, a pistola disparou inofensivamente, e ele desabou gritando.
Blackthorne girou sobre os calcanhares e viu seis arqueiros de Kiyama, com outras setas prontas nos arcos. Junto deles, Miguel. O oficial falou asperamente. Pesaro soltou um último guincho, os membros contorcidos, e morreu.
Miguel tremia ao romper o silêncio. — O oficial diz que sente muito, mas temeu pela vida do padre-inspetor. — Miguel estava implorando a Deus que o perdoasse por ter dado o sinal de ataque. Mas Pesaro tinha sido advertido, pensou ele. E é meu dever providenciar para que as ordens do padre-inspetor sejam obedecidas, que sua vida seja protegida, que assassinos sejam destruídos e ninguém seja excomungado.
Dell'Aqua estava de joelhos ao lado do cadáver de Pesaro. Fez o sinal-da-cruz e disse as palavras sagradas. Os portugueses ao seu redor observavam os samurais, ansiando pela ordem de matar os assassinos. O restante dos homens de Kiyama vinha correndo do portão da missão, onde haviam ficado, e uma quantidade de cinzentos afluía da área da galera a fim de investigar. Apesar da sua raiva quase cegante, Ferreira sabia que não poderia enfrentar um combate ali, agora. — Todos de volta a bordo!
Tragam o corpo de Pesaro! — Carrancudo, o grupo começou a obedecer.
Blackthorne baixou a espada, mas não a embainhou. Esperava, estupidificado, na expectativa de um truque, de ser capturado e arrastado para bordo.
No tombadilho Rodrigues disse calmamente: — Alerta para repelir abordadores, mas com cuidado, por Deus! — Imediatamente homens deslizaram para posições de ação. — Protejam o capitão-mor! Preparem a chalupa ...
Dell'Aqua levantou-se e voltou-se para Ferreira, que se erguia arrogante no passadiço, preparado para defender o seu navio. — O senhor é responsável pela morte deste homem! — sibilou o padre-inspetor. — A sua ambição fanática e vingativa e ...
— Antes que o senhor diga publicamente alguma coisa de que possa se arrepender, Eminência, é melhor pensar com cuidado — interrompeu-o Ferreira. -— Curvei-me à sua ordem, mesmo sabendo, diante de Deus, que o senhor estava cometendo um erro terrível. O senhor me ouviu ordenar a meus homens que voltassem a bordo! Pesaro desobedeceu-lhe, não eu, e a verdade é que, se alguém é responsável, é o senhor. O senhor impediu a ele e a nós de cumprirmos o nosso dever. Esse Inglês é o inimigo! Foi uma decisão militar, por Deus! Informarei Lisboa. — Seus olhos certificaram-se da prontidão de combate do seu navio e dos samurais que se aproximavam.
Rodrigues movera-se para a ponte do convés principal. — Capitão-mor, não posso zarpar com esse vento e essa maré.
— Prepare uma chalupa para nos rebocar se for necessário. — Isso está sendo feito.
Ferreira gritou aos homens que carregavam Pesaro, dizendolhes que se apressassem. Logo estavam todos de volta a bordo. Os canhões foram equipados, embora discretamente, e todo mun do tinha dois mosquetes por perto. À esquerda e à direita, samurais se aglomeravam no ancoradouro, mas não fizeram qualquer movimento declarado para interferir.
Ainda no cais, Ferreira disse peremptoriamente a Migueclass="underline" — Diga-lhes que se dispersem! Não há problema aqui, não há nada para eles fazerem. Houve um engano, um engano grave, mas eles tiveram razão em atirar no contramestre. Diga-lhes que se dispersem. — Odiou dizer isso e queria matá-los a todos, mas quase podia farejar o perigo no ancoradouro, e não tinha alternativa agora senão recuar.
Miguel fez o que lhe foi ordenado. Os oficiais não se moveram.
— É melhor ir embora, Eminência — disse Ferreira asperamente. — Mas isto não encerrou a questão. O senhor vai se arrepender de tê-lo salvado!
Dell'Aqua também sentia a tensão prestes a explodir que os rodeava. Mas isso não o afetava. Fez o sinal-da-cruz e disse uma pequena bênção, depois deu as costas. — Vamos, piloto.
— Por que está me deixando ir? — perguntou Blackthorne, a dor de cabeça atormentando-o, ainda não se atrevendo a acreditar.
— Vamos, piloto!
— Mas por que está me deixando ir? Não compreendo.
— Nem eu — disse Ferreira. — Eu também gostaria de saber a verdadeira razão, Eminência. Ele não continua sendo uma ameaça para nós e para a Igreja?
Dell'Aqua encarou-o. Sim, queria dizer, para apagar a arrogância daquele rosto casquilho à sua frente. Mas a ameaça é a guerra imediata e como ganhar tempo para você e cinqüenta anos de Navio Negro, e a quem escolher: Toranaga ou Ishido. Você não entende nada dos nossos problemas, Ferreira, ou dos riscos envolvidos, ou a delicadeza da nossa posição aqui, ou os perigos.
— Por favor, Senhor Kiyama, reconsidere. Sugiro que o senhor escolha o Senhor Toranaga — dissera ele ao daimio na véspera, usando Miguel como intérprete, não confiando no seu próprio japonês, que era apenas razoável.
— Isso é uma imperdoável interferência nos negócios japoneses e está fora da sua jurisdição. Além disso, o bárbaro deve morrer.
Dell'Aqua usara toda a sua habilidade diplomática, mas Kiyama fora irredutível e se recusara a se comprometer ou a mudar a sua posição. Então, naquela manhã, quando se dirigira a Kiyama para lhe dizer que, graças à vontade de Deus, o Inglês fora neutralizado, houvera um lampejo de esperança.
— Considerei o que o senhor disse — dissera-lhe Kiyama. — Não vou me aliar a Toranaga. Deste momento até a batalha, observarei os dois contendores com todo o cuidado. No momento correto, escolherei. E agora consinto que o bárbaro se vá... não por causa do que o senhor me disse, mas por causa da Senhora Mariko, para honrá-la ... e por que o Anjin-san é samurai...
Ferreira ainda o olhava fixamente. — O Inglês não continua sendo uma ameaça?
— Faça uma viagem segura, capitão-mor, e adeus. Piloto, vou leva-lo à sua galera... O senhor está bem?
— É que... a minha cabeça está... Acho que a explosão... O senhor realmente vai me deixar ir? Por quê?
— Porque a Senhora Maria, a Senhora Mariko, pediu-nos que o protegêssemos. — Dell'Aqua pôs-se em marcha.
— Mas isso não é razão! O senhor não faria isso só porque ela pediu!
— Concordo — disse Ferreira. Depois exclamou: — Eminência, por que não lhe diz a verdade toda?
Dell'Aqua não parou. Blackthorne começou a segui-lo, mas não deu as costas ao navio, sempre aguardando traição. — Isso não faz sentido. O senhor sabe que vou destruí-lo. Tomarei o seu Navio Negro.
Ferreira riu com escárnio: — Com quê, Inglês? Você não tem nenhum navio!
— O que quer dizer?
— Você não tem navio. Ele está destruido. Se não estivesse, eu nunca o deixaria ir, fosse qual fosse a ameaça de Sua Eminência.
— Não é verdade...
Através da névoa da cabeça, Blackthorne ouviu Ferreira repetir e rir mais alto, e acrescentar alguma coisa sobre um acidente e a mão de Deus e: o seu navio queimou até a medula, portanto você nunca prejudicará o meu navio agora, embora ainda seja herege e inimigo, e ainda seja uma ameaça à fé. Então viu Rodrigues nitidamente, piedade no rosto, e os lábios soletraram: sim, é verdade, Inglês.