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— Não é verdade, não pode ser verdade.

Então o padre inquisidor estava dizendo, de um milhão de léguas de distância: — Recebi uma mensagem esta manhã do Padre Alvito. Parece que um terremoto causou um macaréu, a onda...

Mas Blackthorne não estava ouvindo. Sua mente estava grítando: o seu navio está destruido, você o abandonou, seu navio está destruído, você não tem navio, não tem navio, não tem navio...

— Não é verdade! Estão mentindo, o meu navio está numa enseada segura protegido por quatro mil homens. Está a salvo! Alguém disse: — Mas não a salvo de Deus! — e depois o inquisidor estava falando de novo: — O macaréu fez o seu navio adernar. Dizem que as lâmpadas a óleo no convés viraram e o fogo se alastrou. O seu navio foi arrasado...

— Mentiras! E o vigia de convés? Sempre há um vigia de convés! É impossível — gritou ele, mas sabia que de algum modo o preço da sua vida fora o navio.

— Você está encalhado, Inglês — espicaçava-o Ferreira. — Está perdido. Vai ficar aqui para sempre, nunca conseguirá passagem num dos nossos navios. Você está encalhado para sempre...

Aquilo continuou, continuou, ele se sentia afogando-se, então seus olhos clarearam. Ouviu o grito das gaivotas, sentiu o mau cheiro da praia e viu Ferreira, viu o inimigo e soube que era tudo uma mentira para enlouquecê-lo. Soube com certeza, e que os padres faziam parte da trama. — Deus os leve para o inferno! — gritou, e investiu contra Ferreira, a espada em riste. Mas foi uma investida apenas no seu sonho. Mãos agarraram-no com facilidade, tiraram-lhe as espadas e puseram-no a caminhar entre dois cinzentos, por entre todos os outros, até ele estar no passadiço da galera, onde lhe devolveram as espadas e o soltaram. Era-lhe difícil ver ou ouvir, o cérebro quase não funcionando agora devido à dor, mas tinha certeza de que era tudo um truque para enlouquecê-lo, e que conseguiriam se ele não fizesse um grande esforço. Ajude-me, rezou ele, alguém me ajude, depois Yabu estava ao seu lado, e Vinck, e seus vassalos, e ele não conseguia distinguir as línguas. Guiaram-no para bordo, Kiri lá em algum lugar e Sazuko, uma criança chorando nos braços de uma criada, o remanescente da guarnição marrom aglomerada no convés, remadores e marujos.

Cheiro de suor, suor de medo. Yabu falava com ele. E Vinck. Levou muito tempo para se concentrar. — Piloto, por que, em nome de Cristo, eles o deixaram ir?

— Eu... eles... — Não conseguia dizer as palavras. Então de algum modo encontrou-se no tombadilho e Yabu estava ordenando ao capitão-mor que zarpasse antes que Ishido mudasse de idéia quanto a deixa-los partir, e antes que os cinzentos no atracadouro mudassem de idéia quanto a permitir que a galera partisse, dizendo ao capitão que rumasse a toda velocidade para Nagasaki. Kiri dizendo, sinto muito, Yabu-sama, por favor, primeiro Yedo, devemos ir a Yedo ...

Os remos da embarcação impeliram-na para longe do ancoradouro, contra a maré e contra o vento, e saiu para a correnteza, gaivotas grasnando na sua esteira, e Blackthorne arrancando-se

de algum modo do seu estupor para dizer de modo coerente: — Não. Sinto muito. Ir Yokohama. Deve ir Yokohama.

— Primeiro conseguimos homens em Nagasaki, Anjin-san, compreende? Importante. Primeiro os homens. Primeiro os homens! Tenho plano — disse Yabu.

— Não. Ir Yokohama. Meu navio... meu navio perigo.

— Que perigo? — perguntou Yabu.

— Cristãos dizem ... dizem fogo!

— O quê!?

— Pelo amor de Cristo, piloto, qual é o problema? — gritou Vinck.

Blackthorne apontou tremulamente para a lorcha.

— Eles me disseram que o Erasmus está perdido, Johann. Nosso navio está perdido... incendiado. — Depois explodiu.

— Ó Deus, que seja tudo mentira!

LIVRO SEIS

CAPÍTULO 60

Em pé, no raso, Blackthorne olhou para o esqueleto crestado do seu navio, encalhado e adernado, à flor da leve arrebentação, setenta jardas mar adentro, sem mastros, sem conveses, sem nada, exceto a quilha e as costelas da caverna que se salientavam para o céu.

— Os macacos tentaram abicá-lo — disse Vinck, sombrio. — Não. A maré o trouxe para cá.

— Pelo amor de Cristo, por que dizer isso, piloto? Se se tem um maldito incêndio e se se está perto de uma maldita praia, abica-se o navio para combater o fogo! Jesus, até esses bastardos de mijo sabem disso! — Vinck cuspiu na areia. — Macacos! O senhor nunca deveria tê-lo deixado com eles! O que vamos fazer agora? Como vamos voltar para casa? O senhor deveria tê-lo deixado em Yedo, a salvo, e a nós a salvo, com os nossos "eters".

A lamúria na voz de Vinck irritou Blackthorne. Tudo em Vinck o irritava agora. Três vezes na semana anterior ele quase dissera a seus vassalos que apunhalassem Vinck e o atirassem ao mar, para se livrar da tortura quando os lamentos, queixumes e acusações se tornaram excessivos. Mas conseguira sempre se conter e subira ao convés ou descera à cabina para procurar Yabu. Perto de Yabu, Vinck não emitia som algum, ficava petrificado, e com razão. A bordo fora fácil se conter. Ali, envergonhado ante a nudez do seu navio, não era fácil.

— Talvez o tenham abicado, Johann — disse ele, com um cansaço de morte.

— Pode apostar como esses bastardos comedores de esterco o abicaram! Mas não apagaram o fogo, Deus os amaldiçoe a todos com o inferno! Não deveria ter deixado japonas nele, esses macacos fedorentos...

Blackthorne cerrou os ouvidos e se concentrou na galera.

Estava atracada a sotavento em relação ao embarcadouro, a algumas centenas de passos dele, perto da aldeia de Yokohama. As cabanas do Regimento de Mosquetes ainda estavam dispersas pela praia e pelos contrafortes das montanhas, homens treinando, correndo, uma mortalha de ansiedade sobre todos eles. O dia estava quente e ensolarado, com um vento bom soprando. O nariz de Blackthorne captou um rastro de perfume de mimosas. Podia ver Kiri e a Senhora Sazuko conversando sob sombrinhas alaranjadas na popa, e perguntou-se se o perfume viria de lá. Depois observou Yabu e Naga caminhando de um lado para o outro sobre o ancoradouro, Naga falando e Yabu ouvindo, ambos muito tensos. Viu-os olhar para ele. Sentiu-lhes o desassossego.

Quando a galera contornara o promontório duas horas antes, Yabu dissera: — Por que olhar de mais perto, Anjin-san? O navio está liquidado, neh? Tudo acabado. Vamos a Yedo! Preparar para a guerra. Não há tempo agora.

— Sinto muito, parar aqui. Tenho olhar de perto. Por favor. — Vamos a Yedo! Navio destruído — liquidado. Neh?

— O senhor quer, o senhor vai. Eu nado. — Espere. Navio destruído, neh?

— Sinto muito, por favor, pare. Pouco tempo. Depois Yedo. Finalmente Yabu concordara, eles atracaram e Naga foralhes ao encontro. — Sinto muito, Anjin-san. Neh? — dissera Naga, os olhos turvos pela falta de sono.

— Sim, sinto muito. Por favor, o que aconteceu?

— Desculpe, não sei. Não honto. Eu não estava aqui, compreende? Recebi ordem de ir a Mishima por alguns dias. Quando voltei, os homens disseram do terremoto durante a noite — tudo aconteceu à noite, compreende? Compreende "terremoto", Anjin-san?

— Compreendo. Sim. Por favor, continue.

— Um pequeno terremoto. Durante a noite. Alguns homens dizem que foi o macaréu, outros dizem que não, que foi apenas um vagalhão, um vagalhão de tempestade. Houve urna tempes tade naquela noite, neh? Um pequeno tal-fun. Compreende "taifun"?

— Sim.

— Ah, sinto muito. Noite muito escura. Dizem que o vagalhão veio. Dizem que as lâmpadas a óleo no convés se quebraram. O navio pegou fogo, neh? Tudo queimou, depressa, muito...

— Mas os guardas, Naga-san? Onde os homens de convés?

— Muito escuro. Fogo muito rápido, compreende? Sinto muito. Shikata ga nai, neh? — acrescentou, esperançoso.

— Onde os homens de convés, Naga-san? Deixei guarda. Neh?