— Quando voltei, um dia depois, senti muito, neh? Navio liquidado, ainda ardendo ali nos baixios — perto da praia. Navio liquidado. Reuni todos os homens do navio e toda a patrulha da praia daquela noite. Pedi a eles que fizessem relatório. Ninguém tem certeza do que aconteceu. — O rosto de Naga se ensombreceu. — Ordenei-lhes que salvassem, que trouxessem tudo o que fosse possível, compreende? Está tudo no acampamento agora. — Apontou para o planalto. — Sob guarda. Meus guardas. Depois condenei-os à morte e corri a Mishima, para relatar ao Senhor Toranaga.
— Todos eles? Todos à morte?
— Sim. Eles falharam no seu dever. — O que disse o Senhor Toranaga?
— Muito zangado. Toda a razão de estar zangado, neh? Ofereci seppuku. O Senhor Toranaga recusou permissão. Iiiiiih! O Senhor Toranaga furioso, Anjin-san. — Naga fez um gesto nervoso, abrangendo a praia. — O regimento inteiro em desgraça, Anjin-san. Todo mundo. Todos os oficiais chefes aqui em desgraça, Anjin-san. Mandados para Mishima. Cinqüenta e oito seppukus já.
Blackthorne pensara naquele número e tivera vontade de berrar: cinco mil ou cinqüenta mil não podem reparar a perda do meu navio! — Mau — disse a sua boca. — Sim, muito mau.
— Sim. Melhor ir para Yedo. Hoje. Guerra hoje, amanhã, depois de amanhã. Sinto muito.
Depois Naga falara com veemência a Yabu alguns momentos, e Blackthorne, apalermado, odiando as palavras de som abominável, odiando Naga e Yabu e todos eles, mal conseguira aconpanhá-lo, embora visse crescer a apreensão de Yabu. Naga com uma determinação embaraçada. Nada mais que eu pudesse fazer.
Naga voltara-se para ele de novo.
— Sinto muito, Anjin-san. Honto, neh?
Blackthorne se forçara a assentir.
— Honto. Domo, Naga-san.Shikata ga nai. — Pedira licença e os deixara para caminhar at¢o seu navio, para ficar sozinho, já não confiando em si mesmo paia conter a fúria insana, sabendo que não havia nada que pudesse fazer, que jamais saberia mais nada sobre a verdade, que os padres de algum modo haviam conseguido pagar, adular ou ameaçar alguém para cometer aquela profanação infame. Escapara de Yabu e Naga, caminhando lentamente e ereto, mas antes que pudesse deixar o ancoradouro Vinck correra atrás dele e implorara para não ser deixado para trás. Vendo o medo abjeto e servil do homem, concordara e lhe permitira acompanhá-lo. Mas fechara a mente a ele.
Então, de repente, seguindo pela praia, haviam topado com horríveis restos de cabeças. Mais de cem, escondidas do ancoradouro pelas dunas e espetadas em lanças. Aves marinhas ergue ram-se numa nuvem branca e guinchante quando eles se aproximaram, e pousaram para continuar pilhando e disputando depois de eles terem passado depressa.
Agora, estudando o casco do seu navio, um pensamento o obcecava: Mariko vira a verdade e a sussurrara a Kiyama ou aos padres: "Sem o navio, o Anjin-san fica indefeso contra a Igreja. Peço-lhes que o deixem vivo, matem-lhe apenas o navio... "
Podia ouvi-Ia dizendo isso. Ela tinha razão. Era uma solução muito simples para o problema dos católicos. Sim. Mas qualquer um deles poderia ter pensado a mesma coisa. E como passaram pelos quatro mil homens? A quem subornaram? Como?
Não importa quem. Ou como. Eles venceram.
Deus me ajude, sem o meu navio estou morto. Não ajudar Toranaga e a guerra o engolirá.
— Pobre navio — disse ele.
— Hein? — disse Vinck.
— Nada — disse ele. — Pobre navio, perdoe-me. Não fui eu que negociei com ela ou com qualquer pessoa. Pobre Mariko. Perdoe a ela também. Perdoe-me ...
— O que disse, piloto?
— Nada. Só estava pensando alto.
— O senhor disse alguma coisa. Eu ouvi, pelo amor de Cristo!
O corpo todo de Vinck tremia, e Blackthorne se preparou. — A culpa é sua. O senhor disse que viéssemos ao Japão, viemos, e quantos morreram vindo para cá? A culpa é sua!
— Sim. Sinto muito, você tem razão!
— Sente muito, piloto? Como vamos voltar para casa? Esse é o seu maldito trabalho, levar-nos para casa! Como vai fazer isso? Hein?
— Não sei. Outro temos que esperar outr. — Esperar? Quanto
bosta, vinte? Jesus Cristo, o senhor mesmo disse que todos esses cabeças de merda estão em guerra agora! — A mente de Vinck fragmentou-se. — Vão nos cortar a cabeça e espetá-la como aquelas ali e os pássaros nos comerão... — Um paroxismo de gargalhada insana sacudiu-o e ele enfiou a mão na camisa esfarrapada. Blackthorne viu o bocal da pistola e teria sido fácil derrubar Vinck no chão e tomar a arma, mas não fez nada para se defender. Vinck brandiu-lhe a pistola no rosto, dançando ao seu redor com uma alegria disparatada, lunática. Blackthorne aguardou sem medo, esperando a bala, depois Vinck saiu em disparada pela praia, as gaivotas alçando vôo espavoridas, saindo-lhe do caminho grasnando e gritando. Vinck correu uns cem ou mais passos desvairados, depois desabou, caindo de costas, as pernas ainda se movendo, os braços gesticulando, proferindo obscenidades mudas. Após um momento pôs-se de bruços com um último guincho, encarando Blackthorne, e se imobilizou. Houve um silêncio.
Quando Blackthorne chegou perto, a pistola estava apontada para ele, os olhos fitando-o com um antagonismo demente, os lábios repuxados sobre os dentes. Vinck estava morto.
Blackthorne fechou-lhe os olhos, pegou-o, atirou-o ao ombro e voltou. Samurais vinham correndo na sua direção, Naga e Yabu à frente:
— O que aconteceu, — Ele enlouqueceu. — Está morto?
— Sim. Primeiro enterro.
Blackthorne mandou buscar uma pá, pediu-lhes que o deixassem sozinho um instante e enterrou Vinck acima da linha d'água, numa elevação que dava para os destroços do navio. Disse uma oração e plantou uma cruz sobre a sepultura, que moldou com dois pedaços de madeira flutuante. Foi muito fácil fazer o serviço fúnebre. Já o fizera um sem-número de vezes. Apenas naquela viagem, mais de cem vezes para os seus tripulantes, desde que partiram da Holanda. Os únicos sobreviventes agora eram Baccus van Nekk e o rapaz Croocq; os outros tinham vindo de outros navios — Salamon, o mudo; Jan Roper; Sonk, o cozinheiro; Ginsel, o veleiro. Cinco navios e quatrocentos e noventa e seis homens. E agora Vinck. Todos mortos, menos nós sete. E para quê? Para circunavegar o globo? Para sermos os primeiros?
— Não sei — disse ao túmulo. — Mas isso não acontecerá agora.
Fez tudo com esmero. — Sayonara, Johann. — Depois caminhou até o mar e nadou despido até o navio para se purificar. Dissera a Naga e Yabu que aquilo era hábito da sua gente, depois de sepultar um de seus homens em terra. O capitão tinha que fazê-lo em particular, se não houvesse mais ninguém, e o mar era o purificador diante do Deus deles, que era o Deus cristão, mas não exatamente o mesmo Deus cristão dos jesuítas.
Pendurou-se a uma das costelas do navio e viu que já havia craca grudando, areia acumulando-se na quilha, três braças abaixo. Logo o mar reclamaria o navio e a embarcação desapareceria. esmo. Nada a salvar, disse a si mesmo, sem
Olhou em torno, a esperar nada. Nadou para a com roupas limpas. de volta. Perto do — Anjin-san!
Um pombo-correio, perseguido por um falcão, disparava freneticamente para a segurança do pombal na aldeia. O pombal ficava no sótão da construção mais alta dos arredores, sobre uma leve elevação. Com cem jardas a percorrer, o falcão em posição, bem acima da presa, fechou as asas e mergulhou. A queda culminou com uma explosão de penas, mas imperfeita. O pombo caiu arrulhando como se estivesse mortalmente ferido; então, perto do chão, recuperou-se e disparou para casa. Arrastou-se com dificuldade, por um buraco no viveiro, para a segurança, o falcão guinchando de raiva alguns passos atrás, e todo mundo exultou, menos Blackthorne. Nem a esperteza e a coragem do pombo o tocaram. Nada mais o tocava.
— Bom, neh? — disse um dos seus vassalos, embaraçado pela casmurrice do amo.
— Sim. -— Blackthorne voltou à galera. Yabu estava lá, com
praia. Alguns de seus vassalos o esperavam Vestiu-se, pôs as espadas no sash e caminhou atracadouro, um dos seus vassalos apontou: a Senhora Sazuko, Kiri e o capitão. Estava tudo pronto. — Yabusan. Ima Yedo ka? — pediu ele.