Para seu assombro, Blackthorne viu que o velho, à exceção de uma tanga estreita, mínima, que mal e mal lhe cobria o sexo, estava nu.
- Dia - disse ele, sem saber o que dizer.
Eles permaneceram imóveis, ainda curvados.
Confuso, ele os observou, depois, desajeitadamente, curvou-se também. Todos se endireitaram e lhe sorriram. O velho inclinou-se mais uma vez e voltou a seu trabalho no jardim. As crianças olharam-no atentamente e, rindo, saíram correndo. As velhas desapareceram no interior da casa. Mas ele podia sentir-lhes os olhos pregados nele.
Viu as botas ao pé da escada. Mas antes que pudesse pegá-las, a mulher de meia-idade já estava de joelhos, para seu constrangimento, ajudando-o a calçá-las.
- Obrigado - disse ele. Pensou um instante e depois apontou para si mesmo: - Blackthorne - disse vagarosamente - Blackthorne. - Em seguida apontou para ela: - Qual é o seu nome?
Ela o olhava sem compreender.
- Black-thorne - repetiu ele com cuidado, apontando-se, e depois apontando para ela: - Qual é o seu nome?
Ela franziu o cenho e depois, num transbordamento de compreensão, apontou para si mesma e disse: - Onna! Onna!
- Onna! - repetiu ele, ambos orgulhosos de si mesmos.
- Onna.
Ela assentiu, feliz:
- Onna!
O jardim não se parecia com nada que ele tivesse visto antes: uma pequena cascata, um riacho, uma pontezinha, caminhos de seixos, cuidados com esmero, rochas, flores e arbustos. É tão limpo, pensou ele. Tão caprichoso.
- Incrível! - disse.
- Nquerrrriv? — repetiu ela, solícita.
- Nada - disse ele. Depois, sem saber o que mais podia fazer, afastou-a com um gesto. Obediente, ela curvou-se polidamente e deixou-o.
Blackthorne sentou-se ao sol cálido, encostado a um mourão.
Sentindo-se muito fraco, ficou observando o velho arrancar ervas daninhas de um jardim já completamente sem ervas daninhas.
Gostaria de saber onde estão os outros. Será que o capitão-mor ainda está vivo? Quantos dias será que eu dormi? Lembro que acordei, comi e dormi de novo, uma comida tão desagradável quanto os sonhos.
As crianças passaram alvoroçadas, correndo umas atrás das outras, e a nudez do jardineiro fez com que Blackthorne se sentisse embaraçado por elas, pois quando o homem se dobrava ou se abaixava podia-se ver tudo, e ele estava pasmo de que as crianças parecessem não notar. Por cima do muro viu os telhados de telhas e de colmo de outras construções e, bem a distância, altas montanhas. Um vento fresco varria o céu, fazendo avançar os cúmulos. Havia abelhas à procura de alimento e fazia um dia de primavera adorável. Seu corpo implorava por mais sono, mas ele se obrigou a levantar e dirigiu-se para o portão do jardim. O jardineiro sorriu, curvou-se, correu a abrir o portão, curvou-se e fechou-o atrás dele.
A aldeia erguia-se em torno da enseada em forma de crescente, voltada para leste, umas duzentas casas talvez, diferentes de todas as que já vira, aninhadas ao pé da montanha que se estendia até a praia. Acima havia campos dispostos em plataformas e estradas de cascalho, rumando para o norte e para o sul.
Abaixo, o lado que dava para o mar era pavimentado com pedras arredondadas, e havia uma rampa de lançamento, também de pedra, indo da praia até o mar. uma enseada boa e segura, um quebra-mar de pedra, homens e mulheres limpando peixe e tecendo redes, um barco de projeto inigualável sendo construído no lado norte. A leste e ao sul, ao largo, havia ilhas. Os recifes deviam estar ali, ou além do horizonte.
Na enseada havia muitos outros barcos de formas esquisitas, na maioria embarcações de pesca, alguns com uma vela grande, vários a remo — os remadores mantinham-se em pé e empurravam a água, ao invés de estarem sentados e puxando a água, como ele teria feito. Alguns dos barcos dirigiam-se para mar aberto, outros apontavam para o embarcadouro de madeira, e o Erasmus fora ancorado com habilidade, a cinqüenta jardas da praia, em boa profundidade, com três cabos na proa. Quem fez isso? perguntou Blackthorne a si mesmo. Havia barcos dos lados do navio, e ele podia ver nativos a bordo. Mas nenhum dos seus companheiros. Onde poderiam estar?
Olhou em torno na aldeia e tomou consciência das muitas pessoas que o observavam. Quando viram que ele as havia notado, todas se curvaram e, ainda pouco â vontade, ele curvou-se em retribuição. Reiniciou-se uma atividade feliz e eles passaram de um lado para o outro, parando, regateando, curvando-se uns para os outros, aparentemente esquecidos dele, como muitas borboletas multicores. Mas ele sentiu olhos a estudá-lo de cada janela e desvão de porta enquanto caminhava para a praia.
O que há com eles que parece tão esquisito? perguntou a si mesmo. Não é só a roupa e o comportamento. É... eles não têm armas, pensou, atônito. Nada de espadas ou pistolas! Por que será?
Lojas abertas, repletas de mercadorias estranhas e fardos, alinhavam-se na ruazinha. O soalho das lojas era elevado e os vendedores e compradores ajoelhavam-se ou acocoravam-se nos limpos soalhos de madeira. Ele viu que a maioria usava tamancos ou sandálias de junco, alguns as mesmas meias brancas com sola grossa, cortadas entre o artelho grosso e o artelho seguinte para segurar as correias, mas todos deixavam os tamancos e as sandálias do lado de fora. Os que estavam descalços limpavam os pés e deslizavam em sandálias limpas, de uso interno, à espera deles.
Isso é muito sensato, se se pensa na coisa, disse Blackthorne a si mesmo, admirado.
Então viu o homem aproximando-se e o medo fluiu-lhe, nauseante, dos testículos para o estômago. O padre era obviamente português ou espanhol, e embora seu manto ondeante fosse alaranjado não havia dúvida alguma quanto ao rosário e ao crucifixo ao cinto, ou quanto à fria hostilidade em seu rosto. O manto estava sujo da viagem e as botas em estilo europeu manchadas de lama. Olhava a enseada, para o Erasmus, e Blackthorne sabia que ele devia reconhecer o navio como holandês ou inglês, novo para a maioria dos mares, mais delgado e veloz, um navio mercante de combate, copiado e melhorado a partir dos navios piratas ingleses que haviam causado tanta devastação ao Spanish Main.
Com o padre estavam dez nativos, de cabelos e olhos pretos, um vestido como ele, exceto por ter chinelos de tiras. Os outros usavam mantos multicoloridos ou calças folgadas ou simplesmente tangas. Mas nenhum deles estava armado.
Blackthorne quis correr enquanto havia tempo, mas sabia que não tinha forças para isso e não havia lugar algum onde se esconder. Sua altura, o tamanho e a cor dos cabelos o tornavam discrepante naquele mundo. Pôs-se de costas contra o muro.
- Quem é você? - disse o padre em português. Era um homem magro, moreno, bem nutrido, com seus vinte e cinco anos, e uma longa barba.
- Quem é você? - disse Blackthorne, sustentando-lhe o olhar.
- Aquele é um navio pirata neerlandês. Você é um herege holandês. São piratas. Deus tenha piedade de vocês!
- Não somos piratas. Somos pacíficos mercadores, exceto para os nossos inimigos. Sou o piloto daquele navio. Quem é você?
- Padre Sebastio. Como foi que chegou aqui? Como?
- Fomos atirados na praia. Que lugar é este? O Japão?
- Sim, o Japão, Nippon - disse o padre com impaciência.
Voltou-se para um dos homens, mais velho do que os demais, pequeno e magro, com braços fortes e mãos calejadas, o alto da cabeça raspado e o resto do cabelo puxado para cima num rabo fininho, tão grisalho quanto suas sobrancelhas. O padre falou-lhe num japonês vacilante, apontando para Blackthorne. Ficaram todos chocados e um deles fez o sinal-da-cruz, protegendo-se.
- Holandeses são hereges, rebeldes e piratas. Qual é o seu nome?
- Este povoado é português?