- Não. - Blackthorne não gostava que ninguém ficasse tão perto, mas Baccus era um amigo e quase cego, por isso não se afastou.
- Só água quente com ervas.
- Eles simplesmente não vão compreender o que é grogue. Nada para beber além de água quente e ervas. Que o bom Deus nos ajude! Imagine se não houver álcool no país todo! - Suas sobrancelhas se ergueram. - Faça-me um enorme favor, piloto, peça alguma bebida, sim?
Blackthorne encontrara a casa que lhes fora designada na extremidade oriental da aldeia. O guarda samurai o deixara passar, mas seus homens confirmaram que não podiam sair além do portão do jardim. A casa tinha muitos cômodos, como a sua, mas era maior e equipada com muitos criados de idades variadas, tanto homens quanto mulheres.
Onze de seus homens estavam vivos. Os mortos tinham sido levados pelos japoneses. Generosas porções de verduras frescas haviam começado a afugentar o escorbuto, e todos eles, exceto dois, estavam sarando rapidamente. Aqueles dois tinham sangue nos intestinos e hemorragias nas vísceras. Vinck lhes fizera uma sangria, mas isso não ajudara. Esperava que morressem ao anoitecer. O capitão-mor, em outro quarto, ainda estava muito doente.
Sonk, o cozinheiro, um homenzinho atarracado, estava dizendo com uma risada:
- É bom aqui, como diz Johann, piloto, com exceção da comida e de não haver grogue. Está tudo bem com os nativos desde que não se ande de sapatos na casa deles. Esses bastardinhos amarelos ficam loucos se a gente não tira o sapato.
- Ouçam - disse Blackthorne -, há um padre aqui. Um jesuíta.
- Jesus Cristo! - As pilhérias desapareceram completamente quando ele lhes falou sobre o padre e sobre a decapitação.
- Por que ele cortou a cabeça do homem, piloto?
- Não sei.
- É melhor voltarmos para bordo. Se os papistas nos pegam em terra...
Havia um medo intenso na sala agora. Salamon, o mudo, observava Blackthorne. Mexia a boca, uma bolha de catarro aparecendo nos cantos.
- Não, Salamon, não há engano algum - disse Blackthorne gentilmente, respondendo à pergunta silenciosa. - Ele disse que era jesuíta.
- Cristo, jesuíta, dominicano, ou seja, que diabo for, não faz a mínima diferença - disse Vinck. - É melhor voltarmos para bordo. Piloto, você pede àquele samurai, hein?
- Estamos nas mãos de Deus - disse Jan Roper. Era um dos mercadores aventureiros, um homem jovem, de olhos apertados, com uma testa alta e um nariz fino. - Ele nos protegerá contra os adoradores de Satã.
Vinck olhou para Blackthorne.
- E quanto aos portugueses, piloto? Viu algum por aí?
- Não. Não há sinal algum deles na aldeia.
- Vão todos se aglomerar aqui assim que souberem de nós. - Maetsukker disse isso por todos e o jovem Croocq deixou escapar um gemido.
- Sim, e se há um padre, tem que haver outros. - Ginsel lambeu os lábios secos. - E depois, os amaldiçoados conquistadores deles nunca estão muito longe.
- Tem razão - acrescentou Vinck, inquieto. - Eles são como piolhos.
- Jesus Cristo! Papistas! - resmungou alguém. - E conquistadores!
- Mas estamos no Japão, piloto? - perguntou Van Nekk.
- Ele lhe disse isso?
- Sim. Por quê?
Van Nekk aproximou-se e baixou a voz.
- Se os padres estão aqui e alguns nativos são católicos, talvez a outra parte seja verdade, a que fala de riquezas, ouro, prata e pedras preciosas. - Um silêncio se abateu sobre eles. - Viu alguma coisa, piloto? Algum ouro? Alguma gema nos nativos, ou ouro?
- Não. Nada. - Blackthorne pensou um instante. - Não lembro de ter visto. Nenhum colar, pérola ou bracelete. Ouçam, há mais uma coisa a dizer-lhes. Fui a bordo do Erasmus, mas ele está lacrado. - Relatou o que acontecera e a ansiedade deles aumentou.
- Jesus, se não podemos voltar para bordo e há padres em terra e papistas... Temos que dar o fora daqui. - A voz de Maetsukker começou a tremer. - Piloto, o que vamos fazer? Vão nos queimar! Conquistadores... esses bastardos vão saber como usar as espadas.
- Estamos nas mãos de Deus - lembrou Jan Roper confiantemente. - Ele nos protegerá do Anticristo. Foi essa a promessa dele. Não há nada a temer.
- O modo como o samurai Omi-san gritou com o padre... tenho certeza de que o odeia - disse Blackthorne. - Isso é bom, hein? O que eu gostaria de saber é por que o padre não estava usando os trajes normais. Por que o manto alaranjado? Nunca vi isso antes.
- Sim, é curioso - disse Van Nekk.
Blackthorne encarou-o:
- Talvez a posição deles aqui não seja forte. Isso poderia nos ajudar enormemente.
- O que devemos fazer, piloto? - perguntou Ginsel.
- Ter paciência e esperar até que o chefe deles, o daimio, chegue. Ele nos deixará partir. Por que não? Não lhe fizemos mal algum. Temos mercadorias para comerciar. Não somos piratas. Não temos nada a temer.
- Absolutamente certo, e não se esqueçam de que o piloto disse que os selvagens não são todos papistas - disse Van Nekk, mais para encorajar a si mesmo do que aos outros. - Sim. É bom que os samurais odeiem o padre. E são os samurais que estão armados. Não é tão mau assim, hein? Simplesmente estar atentos aos samurais e recuperar nossas armas, é essa a idéia. Estaremos a bordo antes que vocês se dêem conta.
- O que acontecerá se o daimio for papista? - perguntou Jan Roper.
Ninguém lhe respondeu. Depois Ginsel disse:
- Piloto, o homem com a espada? Ele cortou o outro em pedaços, depois de lhe arrancar a cabeça?
- Sim.
- Cristo! São bárbaros! Lunáticos! - Ginsel era um jovem alto, de boa aparência, braços curtos e pernas muito arqueadas. - O escorbuto lhe levara todos os dentes. - Depois que lhe arrancou a cabeça fora, os outros simplesmente se afastaram? Sem dizer nada?
- Sim.
- Jesus Cristo, um homem desarmado, assassinado assim? Por que ele fez isso? Por que o matou?
- Não sei, Ginsel. Mas você nunca viu tamanha rapidez. Num momento a espada estava embainhada, no momento seguinte a cabeça do homem estava rolando.
- Deus nos proteja!
- Meu amado Senhor Jesus - murmurou Van Nekk -, se não pudermos voltar ao navio... Deus amaldiçoe aquela tempestade, sinto-me tão indefeso sem os óculos!
- Quantos samurais estavam a bordo, piloto? — perguntou Ginsel.
- Vinte e dois no convés. Mas havia mais na praia.
- A ira do Senhor recairá sobre os pagãos e pecadores, e eles arderão no inferno por toda a eternidade.
- Gostaria de ter certeza disso, Jan Roper - disse Blackthorne, um nervosismo na voz, como se sentisse o medo de que a vingança de Deus se derramasse pela sala. Estava muito cansado e queria dormir.
- Pode ter certeza, piloto. Oh, sim, eu tenho. Rezo para que seus olhos se abram para a verdade de Deus. Para que você venha a entender que estamos aqui apenas por sua causa, o que restou de nós.
- O quê? - disse Blackthorne perigosamente.
- Por que foi, realmente, que você convenceu o capitão-mor a tentar encontrar o Japão? Não fazia parte das nossas ordens. Devíamos pilhar o Novo Mundo, levar a guerra para dentro das fronteiras do inimigo, depois ir para casa.
- Havia navios espanhóis ao sul e ao norte, e lugar algum para onde fugir. Perdeu a memória junto com os miolos?
Tivemos que navegar para oeste, era a nossa única chance.
- Em momento algum eu vi inimigos, piloto. Nenhum de nós viu.
- Ora, vamos, Jan - disse Van Nekk, cansado. - O piloto fez o que julgou melhor. Claro que os espanhóis estavam lá.
- Sim, essa é a verdade, e estávamos a milhares de léguas de quaisquer amigos e em águas inimigas, por Deus! - falou Vinck rapidamente. - Essa é a verdade de Deus, e a verdade de Deus foi que pusemos a coisa em votação. Nós todos dissemos sim.