— Um médico bárbaro, um demônio feiticeiro — Ah Sam respondeu, também num sussurro. — Ele é um monge. Um desses padres de saias compridas que adoram o Deushomem nu, que eles prenderam numa cruz.
— Ah! — Yin-hsi estremeceu. — Ouvi falar deles. Como foi terrível fazerem uma coisa dessas! São realmente uns demônios! Por que não traz um pouco de chá para Papai? É sempre bom para a ansiedade.
— Lim Din está pegando o chá, Segunda Mãe — sussurrou Ah Sam, jurando que nada a faria se mover dali, pois assim poderia perder algo de grande importância. — Eu gostaria de poder entender a língua terrível que eles falam.
O monge colocou o pulso de May-may sobre a coberta da cama e ergueu os olhos para Struan.
— Sua Eminência disse que a malária provocou um aborto. Preciso examiná-la.
— Pode examinar.
Quando o monge afastou os cobertores e lençóis, May-may tentou impedi-lo e Yin-hsi e Ah Sam, ansiosamente, correram para ajudá-la.
— Não — gritou Struan. — Fiquem lá! — Ele se sentou ao lado de May-may e segurou-lhe as mãos. — Está tudo bem, garota. Vamos — disse ao padre.
Padre Sebastião examinou May-may e, depois, instalou-a confortavelmente outra vez.
— A hemorragia quase já parou. Isso é muito bom. Colocou seus longos dedos na base do crânio dela e apalpou cuidadosamente.
May-may sentiu que os dedos suavizavam um pouco de sua dor. Mas o gelo se formava nela outra vez, e seus dentes começaram a bater.
— Tai-Pan. Sinto tanto frio. Posso mandar colocar uma garrafa quente nos cobertores? Por favor. Sinto tanto frio.
— Sim, garota. Espere só um pouquinho. — Havia uma garrafa quente às suas costas. Ela estava deitada debaixo de quatro cobertores acolchoados.
— Tem um relógio, Sr. Struan? — perguntou Padre Sebastião.
— Sim.
— Por favor, vá para a cozinha. Logo que a água ferver, anote a hora. Quando tiver fervido uma hora... — Os olhos do Padre Sebastião espelharam seu terrível desespero. — Duas? Meia hora? Quanto tempo? Ah, Deus, por favor, ajudai-me neste momento de necessidade.— Uma hora — disse firmemente a Struan, com confiança. — Marcaremos a mesma quantidade para ferver por duas horas. Se a primeira não fizer efeito, tentaremos a segunda.
— Sim. Sim.
Struan examinou seu relógio à luz da lanterna, na cozinha. Tirou a infusão do braseiro e colocou-a num balde de água, para esfriar. A segunda panela já fervia.
— Como vai ela? — perguntou, quando o padre entrou, tendo logo atrás Ah Sam e Yin-hsi.
— Os calafrios estão fortes. O coração se encontra muito fraco. Pode lembrar-se por quanto tempo ela tremeu, antes de começar a febre?
— Quatro horas, talvez cinco. Não sei. — Struan despejou um pouco do líquido quente dentro de uma pequena xícara de chá e o provou. — Pelo sangue de Cristo, é terrivelmente amargo!
O padre tomou um gole e também fez uma careta.
— Bom. Vamos começar. Só espero que ela possa mantê-lo no estômago. Uma xícara de hora em hora. — Ele escolheu uma xícara ao acaso, numa prateleira manchada de fumaça, e pegou um trapo sujo na mesa.
— Para que é isso? — perguntou Struan.
— Terei de coar a casca, separando-a do chá. Este pano está bom. A mistura é bastante grossa.
— Eu vou fazer isso — disse Struan. Pegou o coador de chá de prata que já tinha pronto e poliu-o outra vez, com um lenço limpo.
— Por que está fazendo isso?
— Os chineses têm sempre muito cuidado em manter o bule e as xícaras limpos. Dizem que isso torna o chá mais saudável. — Começou a despejar o chá malcheiroso numa imaculada xícara de porcelana. Queria que a força da bebida estivesse certa.
— Por que não a mesma coisa com a próxima dose, hein?
Levou o bule e a xícara para o quarto de dormir. May-may vomitou a primeira xícara. E a segunda. Apesar de suas súplicas patéticas, Struan forçou-a a beber outra vez. May-may não vomitou — faria tudo para não ter de engolir outra vez. Ainda assim, nada aconteceu. A não ser que seus calafrios se tornaram mais fortes. Uma hora mais tarde, Struan fez com que ela bebesse outra vez. Ela não vomitou,
mas os calafrios continuaram a piorar.
— Vamos dar duas xícaras — disse Struan, lutando contra o pânico. E ele a forçou a consumir a dose dupla.
Hora após hora, o processo foi repetido. Agora amanhecia.Struan olhou para seu relógio. Seis horas. Nenhuma melhora. Os tremores faziam May-may se agitar como um raminho ao vento do outono.
— Pelo amor de Deus — explodiu Struan — precisa funcionar!
— Com o amor de Deus, está funcionando, Sr. Struan — disse Padre Sebastião.
Segurava o pulso de May-may. — O calor da febre deveria começar há duas horas. Se não começou, ela tem uma chance. Seu pulso se acha imperceptível, sim, mas a cinchona está funcionando.
— Agüente firme, garota — disse Struan, agarrando a mão de May-may. — Mais algumas horas. Agüente.
Mais tarde, houve uma batida no portão do muro do jardim. Struan saiu de casa, meio tonto, e destrancou a porta.
— Olá, Horatio. Venha cá, Lo Chum.
— Ela está morta?
— Não, rapaz. Acho que está curada, com a graça de Deus!
— Você conseguiu a cinchona?
— Sim.
— Masterson se encontra no junco. Está na hora de Gorth chegar. Vou pedir a eles, os seus padrinhos, para adiarem o duelo até amanhã. Você não está em condições de lutar com ninguém.
— Você não precisa se preocupar. Há outras maneiras de matar uma serpente além de arrancar sua cabeça com uma pisadela. Estarei lá dentro de uma hora.
— Está bem, Tai-Pan. — Horatio saiu às pressas, levando Lo Chum.Struan trancou a porta e voltou para May-may.
Ela estava deitada na cama, completamente imóvel. Padre Sebastião lhe tomava o pulso. O rosto dele estava enrijecido pela ansiedade. Curvou-se e auscultou-lhe as batidas do coração. Passaram-se segundos. Ele ergueu a cabeça e olhou inquisitivamente para Struan.
— Por um momento, pensei... mas ela está bem. As batidas de seu coração estão terrivelmente lentas, mas ela é jovem. Com a graça de Deus... a febre passou, Sr. Struan. A cinchona peruana curará a febre do Vale Feliz. Com são maravilhosos os desígnios de Deus!
Struan sentia-se estranhamente distanciado.
— Será que a febre voltará? — perguntou.
— Talvez. Ocasionalmente. Porém, mais cinchona a deterá... não há nada mais com que se preocupar, agora. Esta febre está morta. Não entende? Ela se curou da malária.
— Será que viverá? Diz que seu coração está muito fraco. Será que viverá?— Se Deus quiser, a chance é boa. Muito boa. Mas ainda não tenho certeza.
— Preciso ir, agora — disse Struan, levantando-se. — Quer fazer o favor de ficar aqui até eu voltar?
— Sim. — Padre Sebastião ia fazer o sinal-da-cruz sobre ele, mas se decidiu contra.
— Não posso abençoar sua partida, Sr. Struan. Vai para uma matança, não é?
— O homem nasceu para morrer, Padre. Apenas tento proteger a mim mesmo e aos meus o melhor que posso, e também escolher a ocasião de minha morte, apenas isso. Pegou o chicote de ferro e amarrou-o ao pulso, depois saiu da casa. Enquanto caminhava pelas ruas, sentiu olhos que o observavam, mas não prestou atenção. Ele tirava força da manhã e do sol, e da vista e do odor do mar. Está um belo dia para matar uma cobra, pensou. Mas quem vai morrer é você. Não tem força para enfrentar Gorth com um chicote de ferro. Hoje, não.
CAPÍTULO TRINTA E NOVE
Havia uma grande multidão perto do junco. Comerciantes, um destacamento de soldados portugueses comandado por um jovem oficial, marinheiros. O junco estava ancorado num desembarcadouro ao largo da praia. Quando Struan apareceu, os que haviam apostado nele ficaram desalentados. E os que haviam apostado em Gorth, exultantes.
O oficial português, cortesmente, interceptou Struan.