— Eu não a deixaria ler o dossiê, e nem mesmo lhe diria o que contém. Afinal de contas, ela é uma mulher. As mulheres tendem a fazer coisas imprevisíveis. Ela pode apaixonar-se por Zergeyev. Então jogará no lixo os Estados Unidos da América porque a lógica da fêmea diz que ela precisa proteger seu companheiro, sem levar em conta pátria, ou seja lá o que for. Seria desastroso, se Zergeyev soubesse que estamos a par do conteúdo do dossiê.
— Gostaria de pensar a respeito de tudo isso — disse Cooper Amarrou a pasta e devolveu-a. — Soa um tanto pomposo, Tai-Pan, mas meu país saberá lhe agradecer.
— Não quero agradecimentos, Jeff. Talvez ajudasse, se o Senhor Tillman e outros diplomatas começassem a ridicularizar os ridículos equívocos de Lord Cunnington em nossa área.
— Sim. Pode considerar como feito. A propósito, você me deve vinte guinéus.
— A troco de quê?
— Não se lembra de nossa aposta? Sobre quem seria a mulher que posava nua? No primeiro dia, Dirk. A pintura de Aristotle mostrando a cessão da ilha fazia parte da aposta, não se lembra?
— Sim. Quem era ela? — perguntou Struan. Vinte guinéus não são muito contra a honra de uma dama, pensou. Sim, mas, diabo, eu gostava daquela pintura.
— Shevaun. Ela me disse, há dois dias... disse que ia mandar fazer uma pintura de si mesma. Como a Duquesa de Alba.
— Você vai deixar?
— Não sei. — O rosto de Cooper se enrugou num pálido sorriso e perdeu, por um momento, sua angústia habitual. — A viagem marítima impediria isso, não é?
— No caso daquela moça, não. Vou mandar a bolsa para bordo amanhã. Segundo me lembro, o perdedor deveria mandar Aristotle pintar o vencedor, também. Está feito.
— Talvez você queira aceitar a pintura. Como um presente. Vou mandar Aristotle pintar nós dois, hein?
— Bom, obrigado. Sempre gostei daquela pintura. Cooper fez um sinal em direção aos documentos.
— Vamos falar com mais calma a respeito disso, amanhã. Esta noite eu decidirei se mando ou não Shevaun. Struan pensou a respeito de amanhã. Devolveu os documentes a Cooper.
— Coloque em seu cofre. É uma questão de segurança.
— Obrigado. Obrigado por confiar em mim, Tai-Pan.
***
Struan foi para terra, dirigindo-se ao escritório provisório que mandara construir em seu novo terreno junto ao mar. Vargas esperava-o.
— As notícias ruins primeiro, Vargas.
— Há um informe de nossos agentes, senhor, em Calcutá.
Parece que o Gray Witch estava com três dias de vantagem do Blue Cloud, de acordo com as últimas informações.
— Qual a próxima?
— Os custos da construção estão imensos, senhor. Com o editorial de ontem, mandei parar todo o trabalho. Talvez devêssemos reduzir nossas perdas.
— Continue imediatamente o trabalho’ e dobre nossa força de operários, amanhã.
— Sim, senhor. As notícias da bolsa de valores da Inglaterra são ruins. O mercado está muito nervoso. O orçamento não se equilibrou ainda e estão previstos problemas financeiros.
— Isso é normal. Você não tem alguma calamidade especial para contar?
— Não, nenhuma, senhor. Claro que os roubos são incrivelmente freqüentes. Houve três casos de pirataria, desde que o senhor partiu, e uma dúzia de tentativas. Dois juncos piratas foram capturados e a tripulação publicamente enforcada. Cerca de quarenta a cinqüenta ladrões, assaltantes, e assassinos cortadores de gargantas são chicoteados, toda quarta-feira. É difícil uma noite em que uma casa não seja invadida. É uma tristeza. Ah, a propósito, o Major Trent determinou um toque de recolher para todos os chineses, ao anoitecer. Esta parece ser a única maneira de controlá-los.
— Onde está a Sra. Quance?
— Ainda no pequeno pontão, senhor. Ela cancelou sua passagem para a Inglaterra. Segundo parece, há um boato de que o Sr. Quance ainda se encontra em Hong Kong.
— E é verdade?
— Eu não gostaria de pensar que perdemos o imortal Quance, senhor.
— O que tem andado fazendo o Sr. Blore?
— Está gastando dinheiro como se as pedras de Hong Kong; fossem feitas de ouro. Claro, não é nosso dinheiro — disse Vargas, tentando não mostrar sua desaprovação — mas “fundos do Jóquei Clube”. Pelo que entendi, o clube deverá ser uma entidade-não-lucrativa, e todos os seus lucros serão empregados em corridas, cavalos e assim por diante. — Ele enxugou as mãos num lenço. O dia estava muito úmido. — Ouvi dizer que o Sr. Blore organizou uma briga de galos, sob os auspícios do Jóquei Clube. Struan animou-se.
— Ótimo. Quando será?
— Não sei, senhor.
— E Glessing, o que está fazendo?
— Cumprindo todos os deveres de um mestre do porto. Mas ouvi dizer que está furioso com Longstaff por não ter permitido que fosse a Macau. Há um boato de que será mandado de volta para a Inglaterra.
— Mauss?
— Ah, o Reverendo Mauss. Voltou de Cantão e tem quartos do hotel.
— Por que o “ah”, Vargas?
— Nada, senhor. Apenas outro boato — respondeu Vargas, aborrecido por ter dado com a língua nos dentes. — Bom, parece... claro que nós católicos não aprovamos, e sentimos tristeza porque os protestantes não têm as mesmas crenças que nós, em benefício da salvação de suas próprias almas. De qualquer maneira, ele tem um seguidor querido, um Hakka que se batizou, chamado Hung Hsiu-ch’uan.
— Será que Hung Hsiu-ch’uan tem alguma coisa a ver com a Hung Mun... os Tríades?
— Ah, não, senhor, o nome é muito comum.
— Sim, eu me lembro dele. Um homem alto, com aspecto curioso. Continue.
— Bom, não há muita coisa para contar. Só que ele começou a pregar entre os chineses de Cantão. Sem o consentimento do Reverendo Mauss, e chamando a si próprio de irmão de Jesus Cristo, afirmando que fala com seu pai, Deus, todas as noites. Que é o novo Messias, vai limpar os templos, como seu irmão fez, e uma “porção de outras tolices idolatras. Obviamente, é louco Se não fosse um sacrilégio tão grande, seria muito divertido.
Struan pensou a respeito de Mauss. Gostava dele como homem e tinha pena dele. Depois, lembrou-se outra vez das palavras de Sarah. Sim, disse a si próprio, você usou Wolfgang de diversas maneiras. Mas, em troca, deu-lhe o que ele queria — a oportunidade de converter os pagãos. Sem você, ele estaria morto há muito tempo. Sem você... deixe para lá. Mauss tem sua própria salvação com que se preocupar. Os caminhos de Deus são aparentemente estranhos.
— Quem sabe, Vargas? Talvez Hung Hsiu-ch’uan seja aquilo que ele proclama. De qualquer maneira — acrescentou, vendo Vargas se empertigar — eu concordo. Não é divertido. Falarei com Wolfgang. Obrigado por me contar.
Vargas pigarreou.
— Acha que eu poderia ter uma licença, na próxima semana? Este calor e... bom, seria agradável ver a minha família.
— Sim. Tire duas semanas, Vargas. E acho que seria bom para a comunidade portuguesa ter o seu próprio clube. Vou começar a fazer uma subscrição. Você está indicado como tesoureiro e secretário temporário. — Rabiscou num bloco de papel e arrancou uma folha. — Pode tirar isto imediatamente, em dinheiro. — Era uma ordem de pagamento à vista no valor de mil guinéus.
Vargas ficou esmagado.
— Obrigado, senhor.
— Não agradeça — disse Struan. — Sem o apoio da comunidade portuguesa, não teríamos comunidade nenhuma.
— Mas, senhor, essa notícia... esse editorial! Hong Kong está liquidada. A Coroa repudiou o tratado. Dobrar a força de trabalho? Mil guinéus? Eu não entendo.
— Hong Kong estará viva enquanto nela existir um negociante e houver uma só embarcação da Marinha no porto. Não se preocupe. Algum recado para mim?