— Veja o que aquela usurária está cobrando a você.
— Cobrando a você, é o que quer dizer — disse Struan. Leu o total. — Deus todopoderoso!
A conta se elevava a quatrocentos e dezesseis libras, quatro xelins e quatro penies e um quarto de pêni. Sete libras e seis penies por dia, com alojamento e comida. Cento e sete libras de tintas, pincéis, telas. O restante tinha o cabeçalho: “Contas variadas”.
— Que diabo quer dizer isso? Quance cerrou os lábios.
— Puxa vida, foi o que tentei fazer aquela gata velha me explicar.
Struan foi até à porta e berrou, para baixo:— Sra. Fortheringill!
— Chamou-me, Tai-Pan? — ela perguntou, com doçura, do fundo do poço das escadas.
— Sim. Quer fazer o favor de vir até cá?
— Queria que eu viesse? — ela perguntou, com doçura ainda maior, ao entrar no quarto.
— Que diabo é isso? — Struan apunhalava rancorosamente a conta, com um dedo.
— “Variadas... quase trezentas e vinte libras?
— Ah — ela respondeu, brejeiramente. — Transações, Tai-Pan.
— Hein?
— O Sr. Quance gosta de companhia todas as horas, e esse é o volume de suas transações, desde que se encontra sob nossos cuidados. — Ela fungou, com desdém. — Mantemos os livros em ordem, aqui. Tudo correto, nos menores detalhes.
— Mentira! — uivou Quance. — Ela falsificou os livros, Tai-Pan. É chantagem.
— Chantagem? — gritou a Sra. Fortheringill. — Ora, seu... seu... e aqui estou eu, com as minhas damas, a salvá-lo de algo pior do que a morte, e pela segunda vez consecutiva!
— Porém, mais de trezentas libras? — disse Struan.
— Absolutamente correto, por Deus. Ele gosta de pintá-las e também de... meu guarda-livros é o melhor da Ásia. Tem de ser!
— É impossível — insistiu Struan.
Quance ficou em pé na cama e colocou uma mão sobre o coração e com a outra apontou para a mulher.
— Recuso a conta toda, em seu nome, Tai-Pan! — Estava inchado como um pavão.
— É usura!
— Ah, é? Bom, eu lhe digo já, seu velho de merda, e bem na sua cara... dê o fora daqui! E vou mandar um recado para aquela mulher esta noite. — A mulherzinha deu uma volta e gritou: — Senhoras!
— Ora, Sra. Fortheringill, também não precisa aborrecer-se assim — disse Quance, amavelmente. As moças vieram correndo. Oito, ao todo.
— Levem tudo para fora e ponham no meu quarto — ela ordenou, fazendo um aceno em direção às tintas, pincéis e quadros. — Não haverá mais crédito, e essas coisas são minhas, até a conta ser paga, sem faltar um centavo! — E saiu, abespinhada.
— Quance engatinhou para fora da cama, com sua camisola de dormir tufada.
— Senhoras! Não vão tocar em nada, por Deus!
— Ora, comporte-se como um bom menino — disse Nelly, calmamente. — Se a Madame disse que é para irem, elas vão, nem que o próprio Senhor Deus fique na frente!
— Ah, sim, meu engraçadinho — disse outra. — A nossa Nelly explicou direitinho.
— Só um minuto, senhoras — disse Struan. — O Sr. Quance recebeu uma conta. Esta é a razão de todo o problema. Srta. Nelly, ah... a senhorita, bom, passou tempo com ele?
Nelly olhou para Struan.
— Falou em tempo, Tai-Pan? Nosso querido Sr. Quance tem um apetite pelo tempo que não tem igual, nem mesmo na Bíblia.— Ah, sim, Tai-Pan — disse outra, com uma risadinha. — Algumas vezes ele quer duas juntas. Ah, ele é uma graça!
— Para pintar, por Deus! — gritou Quance.
— Ah, deixe disso, Sr. Quance — disse Nelly. — Somos todos amigos.
— Durante algum tempo, ele nos retrata — disse outra, amavelmente.
— Quando? — outra perguntou. — Eu não fui retratada.
— Mentiras, por Deus! — Quance protestou para Struan, e, quando viu a expressão do Tai-Pan, piscou e voltou a se encolher na cama. — Vamos, Tai-Pan — implorou. — Não precisa precipitar-se. A gente não pode evitar... ser popular.
— Se acha que vou pagar por seu “quentão”, está completamente louco!
— “Quentão”, isso é jeito de falar! — exclamou Nelly indignada. — Somos senhoras respeitáveis, ora essa. Somos gente fina e não gostamos de palavras grosseiras!
— É uma palavra latina que significa “tempo”, querida Srta. Nelly — disse Quance, com voz rouca.
— Ah — disse ela, e fez uma mesura. — Perdão, Tai-Pan! Quance pôs a mão no peito e revirou os olhos.
— Tai-Pan, se você me abandonar, estou liquidado. Prisão por dívidas! Eu lhe suplico — ele escorregou para fora da cama e se ajoelhou, com atitude suplicante: — Não vire as costas para um velho amigo!
— Vou pagar essa conta e levar todas as suas pinturas, para cobrir o empréstimo. Mas é o último vintém. Entende, Aristotle? Não pagarei mais nada!
— Deus o abençoe, Tai-Pan. Você é um príncipe!
— Ah, sim — disse Nelly, e avançou furtivamente para Struan. — Vamos, amor. Pague a conta da Madame e isso vai por conta da casa.
— E eu? — outra perguntou. — Claro que Nelly sabe mais truques.
Todas fizeram acenos amáveis com a cabeça e esperaram.
— Eu recomendaria — começou Quance, mas o olhar de Struan fez com que se interrompesse. — Todas as vezes em que olha para mim assim, Tai-Pan, eu me sinto perto da morte. Desamparado. Perdido. Abandonado.
Apesar de sua irritação, Struan riu.
— Que o diabo o leve! — E caminhou em direção à porta. Mas um repentino pensamento fez com que parasse. — Por que este quarto é chamado Quarto Azul? Nelly se inclinou e pegou o urinol embaixo da cama. Era azul.
— Madame começou uma moda nova, Tai-Pan. Cada quarto tem uma cor diferente. O meu é verde. — O meu é aquele dourado, velho e rachado — disse outra, com uma fungadela. —
Não é fino, de maneira nenhuma! Struan abanou a cabeça, desamparadamente, e desapareceu.
— Agora, senhoras — disse Quance, com um sussurro exultante, e houve um silêncio cheio de expectativa. — Como será tudo pago, proponho uma modesta comemoração, depois do desjejum.
— Ah, ótimo — disseram elas, e se reuniram em torno da cama.
CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO
À meia-noite, a lorcha avançou para a praia, em Aberdeen, e Struan pulou para o banco de areia, tendo Fong a seu lado. Antes, ele mandara seus homens desembarcarem, secretamente, a oeste, e se postarem em torno do poço. Caminhou pela praia e se aproximou do poço e da encruzilhada. Fong carregava uma lanterna e estava muito nervoso.
A lua achava-se escondida pelas nuvens baixas, mas vestígios de seu clarão se filtravam através das sombras. O ar estava carregado com o mau cheiro da maré baixa, e as centenas de sampanas no estreito braço de mar pareciam percevejos amontoados. Nenhuma lanterna, com exceção da que Fong levava, rompia a escuridão. Não havia som algum, a não ser o provocado pela inevitável voracidade dos cães.
A aparência da vila era igualmente agourenta.
Quando Struan chegou à encruzilhada, observou a noite. Sentia muitos olhos a espiá-lo das sampanas.
Afrouxou as pistolas no cinto e evitou cuidadosamente a luz da lanterna que Fong colocara à beira do poço.
O silêncio se intensificou. De repente, Fong se enrijeceu e apontou, tremendo, para alguma coisa. Logo além da encruzilhada, bem no meio do caminho, estava um saco. Parecia um saco de arroz. Com as pistolas prontas, Struan fez sinal a Fong para avançar, pois não confiava nele. Fong avançou, tomado pelo pânico.Ao chegarem ao saco, Struan atirou um punhal para Fong, com o cabo voltado para ele.
— Abra. Fong ajoelhou-se e cortou a aniagem. Deixou escapar um gemido aterrorizado e recuou.
Scragger estava no saco. Não tinha pernas e nem braços, olhos ou língua, e os tocos de seus membros estavam cauterizados com alcatrão.
— Boa-noite, camarada! — a maligna risada de Wu Kwok ecoou sepucralmente, dentro da noite, e Struan ficou em pé de um salto. A risada parecia vir das sampanas.