***
Brock mandara retirar da carlinga e prender ao costado, para maior segurança, o mastro de proa quebrado do White Witch. Todas as vergas quebradas e cordame retorcido haviam sido separados e o navio tivera as escotilhas cerradas. Ele mandara lançar três âncoras e uma outra, de lona, própria para tempestades, à popa, para manter a embarcação em direção ao vento.
O dia inteiro, ele se sentiu atoleimado. Sua cabeça e o peito doíam-lhe, e sabia que teria pesadelos, aquela noite. Teria gostado de se embriagar, atordoar-se. Mas sabia que o perigo se aproximava. Deu uma última volta pelo convés encharcado de chuva, com uma lanterna, e depois desceu para ver como iam Liza e Lillibet.
— Aqui está o seu chá, amor — disse Liza. — É melhor mudar de roupa, vestir algo seco. Aqui estão. — Apontou para o beliche, onde se encontravam um casaco e calças navais, e um chapéu de marinheiro e botas.
— Obrigado, amor. — Sentou-se à mesa e bebeu o chá.
— Papai — disse Lillibet — quer jogar comigo? — E quando Brock se manteve em silêncio, pois não a escutara, ela puxou-lhe o casaco molhado. — Papai, joga comigo?
— Deixe seu pai em paz — disse Liza. — Eu jogo com você. Levou Lillibet para a cabina vizinha e agradeceu a Deus pela paz entre seu homem e Struan. Brock contou-lhe o que acontecera e ela agradeceu a Deus por atender às suas preces. O vento foi um milagre, disse a si mesma. Agora, ele precisava de paciência. Acabaria por dar sua bênção a Tess. Liza pediu a Deus para proteger Tess e Culum, e o navio, e a todos eles, e se sentou e começou a disputar uma partida do jogo-da-velha com Lillibet. Aquela tarde, o caixão de Gorth fora colocado num escaler. Liza e Brock foram até águas profundas e Brock disse o serviço fúnebre. Quando acabou, amaldiçoou o filho e lançou o esquife nas profundezas. Voltaram ao White Witch e Brock foi para sua cabina, trancando a porta em seguida, e ali chorou pelo filho e por sua filha. Chorou pela primeira vez, depois de adulto, e a alegria de viver abandonou-o.
***
A noite inteira, o vento e a chuva foram piorando aos poucos. Ao amanhecer, o aguaceiro era forte, mas não terrível, e o mar estava agitado, mas não ameaçador.
Brock dormira vestido e apareceu no convés com os olhos lacrimejantes. Examinou o barômetro. Ainda 29.8 polegadas, firme. Bateu-lhe com a junta de um dedo, mas o registro não se alterou.
— Bom-dia, senhor — disse Pennyworth.
Brock fez um aceno com a cabeça, apaticamente.— Parece que é só uma chuvarada — disse Pennyworth, perturbado com a falta de ânimo de Brock. Brock observou o mar e o céu. A capa de nuvens estava cerca de cem pés de altura e escondia as montanhas da ilha e o Cume, mas isto também não era fora do comum.
Brock forçou-se a ir adiante e examinar as amarras das âncoras. Estavam firmes: três âncoras e três amarras da grossura da coxa de um homem. O bastante para resistir a qualquer tempestade, pensou. Mas isto não lhe causou satisfação. Nada sentiu.
O China Cloud estava elegantemente fundeado nas águas do porto, com o pessoal de plantão agachado a sotavento, no tombadilho. Todos os outros navios estavam fundeados também sem problemas, com a grande nau capitania dominando o porto. Alguns poucos juncos e sampanas atrasados procuravam amarrações ao lado da vila flutuante, na praia abrigada do vento de uma pequena enseada, perto do Cabo Glessing.
Brock desceu e Pennyworth e o resto do pessoal em serviço ficaram muito aliviados ao vê-lo ir embora.
— Ele envelheceu, desde ontem — disse Pennyworth. — Parece um morto-vivo.
***
À luz do amanhecer, Struan examinava as persianas do primeiro andar. Desceu até o piso principal e examinou as outras. Observou o barômetro: 29.8, firme.
— Pelos deuses! — disse, e sua voz estrondeou pelo edifício. — Que essa maldita chuva comece a cair de uma vez, ou pare logo, e vamos acabar com isso!
— O que, Tai-Pan? — May-may gritou do patamar.
Estava minúscula e linda.
— Nada, garota. Volte para a cama — ele disse. May-may ficou escutando a chuva cair e desejou estar em Macau, onde o ruído da água sobre os telhados seria doce.
— Não gosto desta chuva — disse. — Espero que as crianças estejam bem. Sinto muita falta delas.
— Sim. Volte para a cama, seja uma boa menina. Vou sair um pouco.
Ela fez um aceno jovial.
— Tenha cuidado, hein?
Struan vestiu seu grosso casaco marítimo e saiu.
Agora, a chuva era oblíqua. Não aumentara, durante a última hora. Na verdade, pensou, parecia estar diminuindo. As nuvens estavam muito baixas. Observou a posição do China Cloud. É lindo e está em segurança, disse a si mesmo.Voltou e examinou o barômetro. Nenhuma mudança. Tomou um bom desjejum e se preparou para sair outra vez.
— Vive para cima e para baixo! Por que é tão impaciente? Onde vai agora, hein? — perguntou May-may.
— Ao escritório do chefe do porto. Quero ver se Culum está bem. De maneira alguma você deve sair, e nem abrir qualquer janela ou porta, Suprema Senhora Tai-Tai, ou não Suprema Senhora Tai-Tai.
— Sim, Marido — May-may beijou-o.
A Estrada da Rainha estava toda enlameada e quase vazia. Mas o vento e a chuva eram revigorantes e ele se sentia melhor do que trancafiado na feitoria. Parecia um aguaceiro de primavera na Inglaterra, pensou; não, nem tão forte assim. Entrou no escritório do mestre do porto e sacudiu a água da chuva. Glessing levantou-se de sua escrivaninha.
— Bom-dia. Que tempestade estranha, não? Quer um pouco de chá? — Fez sinal para uma cadeira. — Suponho que esteja procurando Culum e a Sra. Struan. Eles foram ao serviço religioso matinal.
— Hein?
— Voltarão a qualquer momento. Hoje é sábado.
— Ah, eu tinha esquecido.
Glessing despejou o chá de um grande vaso, depois tornou a colocá-lo junto ao fogareiro. O aposento era grande e cheio de mapas. Um mastro atravessava o teto de caibros e, ao lado dele, havia uma portinhola. Bandeiras de código estavam em cubículos bem divididos, mosquetes em armeiros, e a sala inteira era limpa e bem-arrumada.
— O que acha da tempestade?
— Se for um tufão, estamos bem em seu caminho. É a única resposta. Se o vento não muda de direção, então o vórtice vai passar sobre nós.
— Que Deus nos ajude, se você estiver com razão.
— Sim.
— Uma vez, fui apanhado por um tufão ao largo de Formosa. Jamais quero estar num mar como aquele, outra vez, e nós não estávamos nem mesmo perto do vórtice. Se é que isso existe.
Uma rajada de vento, carregada de chuva, bateu com força nas persianas cerradas. Observaram o indicador de vento. Ainda inexoravelmente norte. Glessing pôs a xícara sobre a mesa.
— Sou-lhe devedor, Sr. Struan. Recebi uma carta anteontem, de Mary. Ela me contou como foram gentis... o senhor e Culum. Particularmente o senhor. Parece que ela está bem melhor.
— Eu a vi pouco antes de partir. Estava, com certeza, dez vezes melhor do que a primeira vez em que a visitei.
— Ela diz que terá alta em dois meses. E que o senhor disse aos papistas que aceitaria a responsabilidade por ela. Claro, isto cabe a mim, agora.
— Como quiser. É apenas uma formalidade. — Struan ficou imaginando o que faria, quando descobrisse a verdade a respeito de Mary. Lógico que ele teria de descobrir; como poderia May-may imaginar que não?
— O médico disse qual era a doença?
— Uma perturbação estomacal.
— Foi o que ela escreveu. Mais uma vez, obrigado. — Glessing movimentou um mapa sobre sua escrivaninha e enxugou um pouco de chá que caíra na teca. — Culum contou que o senhor esteve na Marinha Real, em menino. Em Trafalgar. Espero que não se incomode com a minha pergunta, mas meu pai teve a honra de servir também, naquela oportunidade. Fiquei imaginando em que navio se encontrava o senhor. Ele era ajudante-de-ordens do Almirante Lord Collingwood no...
— No Royal Sovereign — disse Struan, tirando-lhe a palavra da boca. — Sim, eu estava a bordo.