— Também tem o seu lado positivo. Aqueles miseráveis agitadores deveriam ter sido enforcados ou deportados, não apenas colocados na prisão.
— Não aprova a Carta? — Culum ficou repentinamente em guarda. A Carta do Povo fora escrita há menos de três anos e agora se tornara o símbolo da luta pela liberdade, para todos os descontentes da Grã-Bretanha. A Carta pedia que todo homem tivesse o direito de votar, a abolição da qualificação à propriedade para os membros do Parlamento, distritos eleitorais equitativos, votação em pleito secreto, Parlamentos anuais e salários para os membros do Parlamento.
— Aprovo como um documento com reivindicações justas, mas não aprovo os cartistas e seus líderes. A Carta é como uma porção de boas idéias... que caem nas mãos dos líderes errados.
— Não é errado agitar para defender reformas. O Parlamento precisa fazer mudanças.
— Agitar, sim. Conversar, discutir, escrever petições, mas não incitar a violência e comandar revoluções. O Governo estava certo ao sufocar as rebeliões em Gales e Midlands. A insurreição não é uma solução, por Deus. Há histórias no sentido de que os cartistas ainda não aprenderam sua lição e estão comprando armas e mantendo reuniões secretas. Deveriam ser postos a correr, por Deus.
— Não se pode pôr a Carta a correr. Muitos a desejam e estão preparados para morrer por ela.
— Então haverá uma porção de mortes, rapaz. Se os cartistas não se encherem de paciência.
— Você não sabe o que são agora as Ilhas Britânicas, papai. Você ficou aqui muito tempo. É difícil ter paciência com a barriga vazia.
— A mesma coisa acontece na China. É igual no mundo inteiro. Mas a revolta e a insurreição não estão de acordo com a natureza britânica.
Logo estarão, pensou Culum, sombriamente, se não forem feitas reformas. Ele lamentava agora ter partido de Glasgow para o Oriente. Glasgow era o centro dos cartistas escoceses, e ele era líder dos estudantes que, em segredo, comprometeram-se a trabalhar e suar — morrer, se necessário — para a causa cartista.
A porta da cabina se abriu outra vez e a sentinela enrijeceu-se. O almirante, um homem corpulento, saiu com o rosto tenso e zangado, e se dirigiu para o passadiço, seguido por seus capitães. A maioria dos capitães era jovem, mas uns poucos tinham cabelos grisalhos. Todos estavam vestidos com uniforme naval, usavam chapéus de três bicos e suas espadas batiam ruidosamente.
O Capitão Glessing foi o último. Parou diante de Struan.
— Posso apresentar-lhe meus pêsames, Sr. Struan? Foi uma grande falta de sorte.
— Sim. — Foi só falta de sorte, pensou Struan, perder uma linda mulher e três lindos filhos? Ou será que Deus, ou o Diabo, meterem a mão no pagode? Ou são eles, Deus, o Diabo, sorte, pagode, apenas nomes diferentes para a mesma coisa?
— Teve toda razão de matar aquele maldito fuzileiro — disse Glessing.
— Eu não o toquei.— Ah, é? Supus que tivesse tocado. Não pude ver o que aconteceu do ponto em que me encontrava. Não tem importância.
— Sepultou-o em terra?
— Não. Não valia a pena conspurcar a ilha com aquele tipo de doença. Será que o nome Ramsey significa alguma coisa para o senhor, Sr. Struan? — Glessing perguntou, encerrando as amenidades.
— Ramsey é um nome bastante comum. — Struan ficou em guarda.
— É verdade. Mas os escoceses mantêm-se unidos. Não é esta uma chave para o sucesso dos empreendimentos dominados por escoceses?
— É difícil encontrar pessoas de confiança, sim — disse Struan. — O nome Ramsey significa alguma coisa para o senhor?
— É o nome de um desertor do meu navio — disse Glessing com dureza. — Ele é primo de seu mestre, o Mestre McKay, eu acho.
— E então?
— Nada, só estou passando adiante a informação. Como sabe, naturalmente qualquer navio mercante que abrigar desertores, armado ou não, pode ser tomado como presa pela Marinha Real. — Glessing sorriu. — É uma estupidez desertar. Para onde pode ele ir, a não ser para outro navio?
— Para lugar nenhum. — Struan se sentiu preso numa armadilha. Tinha certeza de que Ramsey estava a bordo de um de seus navios e a convicção de que Brock tinha a ver com isso, e talvez Glessing também.
— Estamos fazendo uma busca na esquadra, hoje. Não tem nenhuma objeção, claro?
— Claro. Tomamos muito cuidado com a tripulação dos nossos navios.
— É muito sensato. O almirante achou que a Casa Nobre deveria ter prioridade, e então seus navios serão revistados imediatamente.
Nesse caso, pensou Struan, não há nada que eu possa fazer. Então tirou o problema da cabeça.
— Capitão, gostaria que conhecesse meu filho mais velho... meu filho Culum. Culum, este é nosso famoso Capitão Glessing, que ganhou para nós a batalha de Chuenpi.
— Bom-dia para você. — Glessing deu um aperto de mão, polidamente. A mão de Culum era macia e tinha dedos longos, com um leve toque feminino. Meio dândi, pensou Glessing. Casaco de marinheiro cintado, gravata azul-clara e colarinho alto. Deve ser um estudante. É curioso apertar a mão de alguém que teve a peste de Bengala e sobreviveu. Fico imaginando se eu sobreviveria. — Não foi uma batalha.
— Duas fragatas pequenas contra trinta juncos de guerra e trinta ou mais navios armados? Isto não é uma batalha?
— Uma escaramuça, Sr. Struan. Poderia ter sido uma batalha... — Se não fosse aquele maldito covarde Longstaff e você, seu maldito pirata, ele teve vontade de dizer.
— Nós negociantes achamos, Culum, que foi uma batalha — disse Struan, ironicamente. — Não compreendemos a diferença entre uma escaramuça e uma batalha. Somos apenas pacíficos mercadores. Mas a primeira vez em que as armas da Inglaterra foram contra as armas da China merece o título de “batalha”. Foi exatamente há um ano. Nós disparamos primeiro.
— E o que teria feito, Sr. Struan? Foi a decisão tática correta.
— Claro.
— O Capitão-Superintendente do Comércio concordou plenamente com minhas ações.
— Claro. Ele praticamente não poderia ter feito outra coisa.
— Travando velhos combates, Capitão Glessing? — Longstaff perguntou. Ele se achava à porta da cabina e estivera escutando, sem ser observado.
— Não, Excelência, apenas dando nova feição a uma antiga escaramuça. O Sr. Struan e eu jamais vimos Chuenpi com os mesmos olhos, como sabe.
— E por que deveriam? Se o Sr. Struan estivesse no comando, sua decisão poderia ter sido a mesma. Se estivesse no lugar do Sr. Struan, então poderia ter tido a certeza de que eles não atacariam, e arriscaria. — Longstaff bocejou e brincou com seu relógio de bolso.” — O que teria feito, Culum?
— Não sei, senhor. Ignoro as complicações que existiam.
— Muito bem dito. “Complicações” é uma boa palavra. — Longstaff deu uma risadinha. — Gostaria de se unir a nós, Capitão? Um copo de vinho?
— Obrigado, senhor, mas é melhor eu voltar para meu navio. — Glessing fez uma elegante continência e se afastou.
Longstaff levou os Struans para o salão de conferências que, atualmente, servia como quartel-general particular para o Capitão-Superintendente do Comércio. Era espartano e funcional, e as fundas poltronas de couro, mesas com mapas, cômodas e uma pesada mesa de carvalho estavam todas fortemente amarradas ao convés. A escrivaninha de carvalho, elaboradamente entalhada, tinha atrás o semicírculo das escotilhas da proa. A cabina cheirava a alcatrão, fumo velho, mar, e, inevitavelmente, a pólvora.
— Camaroteiro! — chamou Longstaff. Imediatamente, a porta da cabina se abriu.
— Sim, senhorrr.
Longstaff virou-se para Struan.
— Vinho? Conhaque? Porto?