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Glessing, com irritação, tentou mover os dedos do pé dentro dos sapatos afivelados. Seus pés doíam, e ele não se sentia confortável no uniforme com galões dourados. Maldita demora! Maldita ilha, e o porto, e o desperdício de bons navios, e de bons homens. Lembrou-se de seu pai, dizendo: “Amaldiçoados civis. Tudo que pensam é em dinheiro ou poder. Não têm o menor sentido de honra, o mínimo sequer. Cuidado com a bunda, filho, quando um civil estiver no comando. E não esqueça que até Nelson teve de colocar o telescópio em seu olho cego, quando havia um idiota no comando”. Como poderia um homem como Longstaff ser tão estúpido? Ele é de boa família, bem-nascido — seu pai era diplomata na corte de Espanha. Ou fora em Portugal? E por que Struan compeliu Longstaff a parar a guerra? Com certeza conseguimos um porto onde podem fundear as armadas do mundo. Mas, o que mais? Glessing observou os navios no porto. A nave de guerra de 22 canhões de Struan, o China Cloud. E o White Witch, 22 canhões, orgulho da armada de Brock. E o brigue americano de 20 canhões de Cooper-Tillman, Princess of Alabama. Todos umas belezas. Valia a pena era combater com eles, pensou. Sei que eu poderia afundar o americano. Brock? Ele é resistente, mas eu sou melhor do que Brock. Struan?

Glessing imaginou uma batalha naval com Struan. Então percebeu que tinha medo de Struan. E, por causa de seu medo, ficava cheio de raiva e repulsa, diante da pretensão de não serem piratas todos os comerciantes da China.

Por Deus, jurou para si próprio, logo que a ordem for oficializada, eu vou comandar uma flotilha que fará todos eles sumirem da água, com uma explosão.

***

Aristotle Quance estava sentado, cheio de mau humor, diante da pintura inacabada em seu cavalete. Era um homem pequeno, com o cabelo meio grisalho. Suas roupas, com relação às quais ele se mostrava incrivelmente exigente, eram da última moda: calças cinzentas justas, meias brancas de seda e sapatos negros amarrados com um laço. Colete de cetim-pérola e casaco de lã negra. Colarinho alto, gravata com alfinete de pérola. Meio inglês, meio irlandês, ele era, aos cinqüenta e oito anos, o mais velho europeu no Oriente.

Tirou os óculos de ouro e começou a limpá-los com um imaculado lenço de renda francesa. Este dia me causa desgosto, pensou. Maldito Dirk Struan. Se não fosse por ele, não existiria nenhuma amaldiçoada Hong Kong.

Sabia que testemunhava o fim de uma era. Hong Kong destruirá Macau, pensou. Roubará todo o comércio. Todos os tai-pans ingleses e americanos vão transferir para cá seus quartéis-generais. Viverão aqui e construirão aqui. Depois, virão todos os vendedores portugueses. E todos os chineses que vivem à custa dos ocidentais e do comércio ocidental. Bom, eu jamais viverei aqui, jurou. Terei de vir aqui para trabalhar, de vez em quando, a fim de ganhar dinheiro, mas Macau será sempre meu lar.

Macau era seu lar há mais de trinta anos. Apenas ele, entre todos os europeus, pensava no Oriente como um lar. Todos os outros vinham por uns poucos anos, e depois partiam. Só aqueles que morriam ficavam. Mesmo neste caso, quando podiam se dar ao luxo, determinavam em seus testamentos que seus corpos fossem levados de navio de volta para “casa”.

Serei enterrado em Macau, graças a Deus, ele disse a si próprio. Passei tão bons tempos ali, todos passamos. Mas acabou. Maldito seja o Imperador da China! Um louco em destruir uma estrutura construída de maneira tão inteligente, há um século.

Tudo estava funcionando tão bem, pensou Quance amargamente, mas agora acabou. Agora tomamos Hong Kong. E agora que a poderosa Inglaterra está comprometida no Oriente e os negociantes provaram o poder, não se satisfarão com Hong Kong apenas.

— Bom — disse ele, involuntariamente alto — o imperador vai colher o que semeou.

— Por que está tão mal-humorado, Sr. Quance?

Quance pôs os óculos. Morley Skinner estava em pé, à beira da encosta.

— Não mal-humorado, meu jovem. Triste. Os artistas têm o direito... sim, uma obrigação, de serem tristes. — Guardou a pintura inacabada e colocou no cavalete um pedaço de papel limpo.

— Concordo plenamente, concordo plenamente. — Skinner subiu arrastadamente a encosta, com os olhos castanhos claros parecendo resíduos de cerveja velha. — Só queria pedir sua opinião a respeito deste dia solene. Vou fazer uma edição especial. E não estaria completa sem algumas palavras de nossos cidadãos mais destacados.

— Tem toda razão, Sr. Skinner. Pode colocar — “O Sr. Aristotle Quance, nosso maior artista, bon vivant e querido amigo, não quis dar uma declaração, pois estava no processo de criação de outra obra-prima”. — Tomou uma pitada de rapé e espirrou com força. Depois, com o lenço, espanou o rapé acumulado em seu casaco e os respingos do espirro do papel. — Bom-dia, senhor. — Mais uma vez se concentrou no papel. — O senhor está perturbando a imortalidade.

— Sei exatamente como se sente — disse Skinner, com um amável aceno afirmativo de cabeça. — Exatamente como se sente. Sente-se do mesmo jeito que eu, quando tenho algo importante para escrever. — Ele se afastou, arrastando-se.

Quance não confiava em Skinner. Ninguém confiava. Pelo menos ninguém com algum segredo no passado, e todos ali tinham algo que queriam esconder. Skinner gostava de fazer o passado ressuscitar.

O passado. Quance pensou em sua mulher e estremeceu. Que um raio me parta! Como posso eu ter sido tão estúpido a ponto de pensar que aquele monstro irlandês daria uma boa companheira? Graças a Deus voltou para o detestável pantanal irlandês, e não vai mais perturbar minha vida. As mulheres são a causa de todas as tribulações do homem. Bom, ele acrescentou, cautelosamente, nem todas as mulheres. Não a queridinha Maria Tang. Ah, sim, aquela é uma tremenda gatinha. E se alguém conhece um cruzamento perfeito de português com chinês é você, querido e inteligente Quance. Diabo, tive uma vida maravilhosa.

E ele percebeu que, embora estivesse testemunhando o final de uma era, também fazia parte de outra, nova. Agora tinha uma nova história para testemunhar e pintar. Uma nova cidade para perpetuar. E novas moças para namorar e novos traseiros para beliscar.

— Triste? Nunca! — ele rugiu. — Vamos trabalhar, Aristotle, seu malandro velho!

***

Aqueles que, na praia, escutaram as palavras de Quance riram uns para os outros. Ele era muito popular e sua companhia disputada. E costumava falar sozinho.

— O dia não estaria completo sem o nosso querido velho Aristotle — disse Horatio Sinclair, com um sorriso.

— Sim. — Wolfgang Mauss coçou os piolhos da barba. — Ele é tão feio que seu rosto chega a ser suave.

— O Sr. Quance é um grande artista — disse Gordon Chen. — Por isso, ele é lindo. Mauss movimentou o corpanzil e olhou para o eurasiano.

— A palavra é “simpático”, rapaz. Eu lhe ensinei durante anos e você ainda não sabe a diferença entre “simpático” e “lindo”, hein? E ele não é um grande artista. Seu estilo é excelente e ele é meu amigo, mas não tem a magia de um grande mestre.

— Eu quis dizer “lindo” num sentido artístico, senhor.

Horatio viu o momentâneo relâmpago de irritação passar através de Gordon Chen. Pobre Gordon, pensou, sentindo pena dele. Não pertencia a nenhum dos dois mundos. Tentando desesperadamente ser inglês, mas usando túnicas chinesas e um rabicho. Embora todos soubessem que era o bastardo do Tai-Pan, filho de uma prostituta chinesa, ninguém o reconhecia abertamente, nem mesmo o pai.

— Acho a pintura dele esplêndida — disse Horatio, com voz suave. — E ele também. É estranho como todos o adoram e, entretanto, meu pai o desprezava.

— Ah, seu pai — disse Mauss. — Ele era um santo entre os homens. Tinha elevados princípios cristãos, não era como nós, pobres pecadores. Que sua alma repouse em paz.