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Não, pensou Horatio. Que sua alma arda no fogo do inferno para sempre.

O reverendo Sinclair era membro do primeiro grupo de missionários ingleses que se estabeleceu em Macau, há pouco mais de trinta anos. Ajudara a traduzir a Bíblia para o chinês e fora um dos professores na escola inglesa fundada pela missão. Toda sua vida o honraram como cidadão de destaque — menos o Tai-Pan — e, ao morrer, há sete anos, fora enterrado como um santo homem. Horatio conseguira perdoar o pai por levar sua mãe a uma morte precoce, porque seus elevados princípios lhe faziam ver a vida de uma maneira estreita e tirânica, por seu fanatismo ao adorar um Deus aterrorizador, pela coerência obsessiva de seu zelo missionário, e por todas as surras que dera no filho. Mas, mesmo depois de todo aquele tempo, não poderia jamais perdoar as surras que ele dera em Mary ou as maldições que acumulara sobre a cabeça do Tai-Pan.

Foi o Tai-Pan quem achou a pequena Mary quando, aos seis anos, ela fugiu aterrorizada. Ele a acalmara e depois levara-a para casa e, ao entregá-la ao pai, advertira-o de que, se tornasse a pôr as mãos nela, ele o arrancaria do púlpito e o chicotearia pelas ruas de Macau. Horatio, desde então, venerava o Tai-Pan. As surras pararam, mas foram impostos outros castigos. Pobre Mary.

Ao pensar em Mary, seu coração bateu mais rápido e ele olhou para a nau capitania onde estavam temporariamente instalados. Sabia que ela estaria observando a praia e, como ele, contava os dias que faltavam para chegarem em segurança a Macau. Apenas a quarenta milhas de distância, em direção ao sul, mas tão longe. Vivera todos os seus vinte e seis anos em Macau, com exceção de um período na escola, na Inglaterra. Detestava escola, tanto em seu país como em Macau. E detestara receber ensinamentos do pai; tentara desesperadamente satisfazê-lo, sem conseguir nunca. Ao contrário de Gordon Chen, o primeiro menino eurasiano aceito na escola de Macau. Gordon Chen era um aluno brilhante e sempre conseguira satisfazer o reverendo Sinclair. Mas Horatio não o invejava: Mauss fora o torturador de Gordon Chen. Por cada surra que seu pai lhe dera, Mauss havia dado três em Gordon Chen. Mauss era também um missionário; ensinava Inglês, Latim e História.

Horatio afrouxou as dragonas nos ombros. Viu que Mauss e Gordon Chen olhavam fixamente outra vez para a chalupa e ficou imaginando por que Mauss teria sido tão duro com o rapaz na escola — por que exigia tanto dele. Supôs que fora porque Wolfgang odiava o Tai-Pan. O Tai-Pan decifrava seus pensamentos e lhe oferecera dinheiro e o posto de intérprete em viagens para o contrabando de ópio, pela costa. A troco da permissão para Wolfgang distribuir bíblias chinesas e opúsculos e pregar para os pagãos, sempre que o navio parava — mas só depois de terminada a negociação do ópio. Supunha que Wolfgang desprezava a si mesmo por ser um hipócrita e estar associado a um demônio daqueles. E era forçado a fingir que o fim justificava os meios, quando sabia não ser verdade.

Você é um homem esquisito, Wolfgang, ele pensou. Lembrou-se de ter ido à Ilha de Chushan, no ano passado, enquanto estava ocupada. Com a aprovação do Tai-Pan, Longstaff indicara Mauss como magistrado temporário, para colocar em vigor a lei marcial e a justiça britânica.

Contra os costumes, ordens estritas haviam sido dadas em Chushan, proibindo o saque e a pilhagem. Mauss oferecera a todo saqueador — chinês, indiano, inglês — um julgamento justo e aberto e depois condenara cada um deles à forca, usando as mesmas palavras: “Gott im Himmel, perdoai este pobre pecador. Enforquem-no”. Logo a pilhagem acabou.

Como Mauss costumava entregar-se livremente às recordações, no tribunal, entre os enforcamentos, Horatio descobrira que ele fora casado três vezes, todas com moças inglesas; as duas primeiras morreram de corrimento e a atual não estava em boas condições. Que, embora Mauss fosse um marido dedicado, o Demônio ainda conseguia tentá-lo a ir ao prostíbulo e aos botequins de Macau. Que Mauss aprendera chinês com os pagãos em Cingapura, para onde fora enviado como jovem missionário. Que vivera vinte, de seus quarenta anos, na Ásia e jamais estivera em seu país durante todo esse tempo. Que carregava pistolas agora porque: “Nunca se sabe, Horatio, quando um dos demônios pagãos vai resolver matar a gente, ou os malditos piratas tentarão nos roubar”. Que ele considerava todos os homens pecadores — e ele próprio mais do que qualquer outro. E que seu único objetivo na vida era converter os pagãos e tornar a China uma nação cristã.

— Em que está pensando? — a frase interrompeu os pensamentos de Horatio. Ele viu Mauss a observá-lo.

— Ah, em nada — disse, depressa. — Eu estava apenas... apenas pensando. Mauss coçou a barba, pensativamente.

— Eu também. Este é um dia que faz a gente pensar, hein? A Ásia inteira vai mudar para sempre.

— Sim, creio que é verdade. Vai mudar-se de Macau para cá? Construir casa aqui?

— Sim. Será bom possuir terra, ter nosso próprio chão, longe daquele esgoto papista. Minha mulher vai gostar disso. Mas, e eu? Eu não sei. Pertenço àquele lugar — acrescentou Mauss, cheio de nostalgia, e sacudiu o grande punho em direção ao continente.

Horatio viu os olhos de Mauss carregarem-se, quando ele olhou para a distância. Por que a China é tão fascinante? Perguntou a si mesmo.

Esquadrinhou cansadamente a praia, com o olhar, sabendo que não havia nenhuma resposta. Queria ser rico. Não tão rico quanto o Tai-Pan, ou Brock. Mas rico o bastante para construir uma bela casa e receber todos os negociantes e levar Mary para uma luxuosa viagem à Inglaterra, percorrendo a Europa.

Gostava de ser intérprete e secretário particular de Sua Excelência, mas precisava de mais dinheiro. A pessoa é obrigada a ter dinheiro, neste mundo. Mary devia possuir vestidos de baile e diamantes. Sim. Mas, mesmo assim, estava satisfeito de não ter de ganhar seu pão de cada dia como os negociantes. Os negociantes precisavam ser implacáveis, implacáveis em excesso, e seu ganho era demasiado precário. Muitos que hoje se acreditavam ricos, dentro de um mês estariam arruinados. Bastaria perder um navio e poderiam estar liquidados. Até A Casa Nobre era ocasionalmente prejudicada. Seu navio Scarlet Cloud já estava um mês atrasado, talvez reduzido a um casco castigado, virado e sob reparos, em alguma ilha fora do mapa, entre o ponto onde se encontravam e a Terra Van Diemen, duas milhas fora do curso. Ou, mais provavelmente, no fundo do mar, com ópio no valor de meio milhão de guinéus no bojo.

E as coisas que um negociante precisava fazer aos homens em geral e aos amigos, a fim de sobreviver, quanto mais para prosperar! Terrível.

Viu o olhar fixo de Gordon Chen para a chalupa e ficou imaginando em que pensaria ele. Devia ser terrível a condição de mestiço, pensou. Suponho que, se a verdade viesse à tona, verificaríamos que também odeia o Tai-Pan, embora finja que não. Eu apostaria...

***

A mente de Gordon Chen estava voltada para o ópio e ele o abençoava. Sem ópio não haveria Hong Kong — e Hong Kong, ele pensava, com exultação, é a mais fantástica oportunidade para ganhar dinheiro que eu poderia ter e o mais inacreditável golpe de pagode para a China.

Se não existisse o ópio, disse a si mesmo, não haveria comércio na China. Se não houvesse comércio na China, então o Tai-Pan jamais teria tido dinheiro para comprar minha mãe e tirá-la do bordel, e eu jamais teria nascido. O ópio pagou a casa que o pai deu à mãe há anos, em Macau. O ópio pagou nossa comida e nossas roupas. O ópio pagou minha escola e os professores de inglês e de chinês e então, agora, hoje, eu sou o jovem mais educado do Oriente.

Deu uma olhada em Horatio Sinclair, cujo olhar percorria a praia, enquanto ele franzia a testa. Sentiu uma punhalada de inveja porque Horatio fora enviado à Inglaterra para estudar. Jamais estivera lá.