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Martin Vanger aparecia com frequência, na qualidade de atual diretor do grupo. O advogado Dirch Frode estava aposentado, era membro da Associação de golfe de Hedestad e seu nome estava associado ao Rotary. Henrik Vanger só era encontrado em textos ligados ao grupo Vanger, com uma única exceção. Dois anos antes, o Hedestads-Kuriren, jornal local, celebrara o octogésimo aniversário do ex-magnata da indústria e o jornalista traçara um breve perfil dele. Mikael imprimiu alguns textos que pareciam conter informações sólidas e constituiu assim um dossiê de umas cinquenta páginas. Depois terminou de arrumar sua mesa, encheu as pastas e foi para casa. Não fazia a menor idéia de quando iria voltar.

Lisbeth Salander passava a véspera de Natal na casa de saúde de Appelviken, em Upplands-Väsby. Trouxera de presente um frasco de água-de-toalete Dior e um bolo inglês comprado na Ahlens. Ela contemplava a mulher de quarenta e cinco anos que, com dedos inábeis, tentava desfazer o laço do embrulho. Havia ternura nos olhos de Salander, embora sempre lhe causasse espanto que aquela mulher estranha diante dela pudesse ser sua mãe. Por mais que tentasse, não conseguia encontrar a menor semelhança física ou de personalidade.

A mãe por fim abandonou seus esforços e olhou o embrulho com ar desamparado. Ela não estava num de seus bons dias. Lisbeth Salander empurrou a tesoura que estava bem à vista em cima da mesa e a mãe se iluminou como se despertasse de repente.

— Você deve me achar uma estúpida.

— Não, mamãe. Você não é estúpida. A vida é que é injusta.

— Tem visto sua irmã?

— Falei com ela há pouco tempo.

— Ela nunca vem me ver.

— Eu sei, mamãe. Ela também não vem me ver.

— Você trabalha?

— Sim, mamãe. Estou me virando bem.

— Está morando onde? Eu nem sei onde você mora.

— Moro no nosso antigo apartamento da Lundagatan. Estou ali há muitos anos. Paguei as contas atrasadas.

— Quem sabe no verão vou visitar você.

— Claro. No verão.

A mãe acabou abrindo a embalagem e aspirou o perfume, deliciada.

— Obrigada, Camilla — disse.

— Lisbeth. Sou a Lisbeth. Camilla é a minha irmã.

A mãe pareceu incomodada. Lisbeth Salander propôs que elas fossem até a sala de tevê.

* * *

Os programas Disney de Natal eram retransmitidos a toda hora na televisão quando Mikael Blomkvist passou para ver sua filha Pernilla na casa da ex-mulher Monica e do novo marido dela, em Sollentuna. Trazia presentes para Pernilla; após discutir o assunto com Monica, eles concordaram em dar à filha um iPod, um MP3-player bastante caro e não maior que uma caixa de fósforos, capaz de abrigar toda a sua volumosa coleção de discos.

Pai e filha passaram uma hora juntos no quarto dela, no andar de cima. Mikael e a mãe de Pernilla se divorciaram quando ela tinha somente cinco anos, e dois anos depois ela ganhara um novo pai. Mikael não havia de modo algum evitado o contato; Pernilla ia visitá-lo algumas vezes por mês e todo ano, durante as férias, passava temporadas de uma semana na cabana de Sandhamn. Monica nunca tentou impedir que os dois se encontrassem, e Pernilla nada tinha contra rever o pai — ao contrário, os dias que eles passavam juntos costumavam ser bons momentos. Ainda assim, Mikael deixou a filha decidir em que medida desejava vê-lo, sobretudo depois que Monica voltou a se casar. Houve alguns anos, no início da adolescência, em que o contato praticamente cessou e Pernilla só havia pedido para voltar a vê-lo com mais frequência nos últimos dois anos.

A filha acompanhara o processo convicta de que Mikael afirmava a verdade: ele era inocente mas não podia provar.

Ela falou de um eventual namorado no colégio e o surpreendeu ao revelar que se tornara membro de uma Igreja local e que se considerava uma devota. Mikael se absteve de qualquer comentário.

Foi convidado para jantar, mas recusou a oferta; já combinara com a irmã passar a véspera de Natal com ela e a família no subúrbio yuppie de Stäket.

De manhã, também fora convidado a passar o Natal com Erika e o marido em Saltsjöbaden. Recusou o convite com polidez, certo de que havia sem dúvida um limite na boa vontade de Lars para com os dramas triangulares, e ele não tinha vontade nenhuma de descobrir até onde ia esse limite. De acordo com Erika, a proposta partira do próprio marido, e ela criticou sua timidez em participar dos jogos de um trio. Mikael rira — Erika sabia que ele era um heterossexual inflexível e que o convite não era a sério —, mas a decisão de não festejar o Natal na companhia do marido da amante era irrevogável.

Em vez disso, ele foi bater à porta da irmã Annika Blomkvist, agora Annika Giannini. O marido de origem italiana, os dois filhos e vários outros membros da família do marido cortavam naquele momento o peru de Natal. Annika cursara direito sem a menor vontade, depois trabalhara alguns anos como estagiária no tribunal e como substituta de promotor, antes de abrir seu próprio escritório de advocacia, associada a alguns amigos e numa sala com vista para o bairro de Kungsholmen. Especializou-se em direito de família e, sem que Mikael percebesse, sua irmã mais nova começou a aparecer nas páginas das revistas e em debates da televisão como feminista célebre e advogada dos direitos da mulher. Defendia com frequência mulheres ameaçadas ou importunadas por ex-maridos ou ex-namorados.

Quando Mikael a ajudava a preparar o café, ela pôs a mão em seu braço e lhe perguntou como ele estava.

— Nunca me senti tão por baixo, se quer saber.

— Da próxima vez arranje um advogado de verdade — disse ela.

— Acho que nesse caso nem o melhor advogado do mundo mudaria a situação.

— O que realmente aconteceu?

— Depois eu conto, maninha.

Ela o abraçou com ternura e deu-lhe um beijo na bochecha antes de voltarem para junto dos outros com o bolo e o café.

Por volta das sete da noite, Mikael se desculpou e pediu licença para utilizar o telefone na cozinha. Chamou Dirch Frode e ouviu sua voz na outra ponta da linha, com uma algazarra de vozes ao fundo.

— Feliz Natal! — saudou Frode. — Então, decidiu?

— Não tenho nada de especial para fazer e o senhor conseguiu despertar minha curiosidade. Irei no dia 26, se lhe convém.

— Perfeito. Não sabe o quanto sua decisão me alegra. Desculpe-me, mas estou cercado de filhos e netos e mal consigo ouvir o que diz. Posso ligar amanhã para marcar uma hora?

Mikael Blomkvist se arrependeu da decisão antes mesmo que a noite terminasse, mas como agora lhe parecia muito complicado voltar atrás, na manhã do dia 26 instalou-se num trem rumo ao Norte. Mikael tinha carteira de habilitação, porém nunca se dera o trabalho de comprar um carro.

Frode tinha razão, a viagem era curta. Ele passou por Uppsala, depois percorreu as pequenas cidades industriais espalhadas ao longo da costa. Hedestad era uma das menores, a pouco mais de uma hora ao norte de Gävle.

Durante a noite houvera fortes precipitações de neve, mas o céu limpara e o ar estava gelado quando ele desceu na estação. Mikael logo percebeu que suas roupas não estavam adequadas ao inverno rigoroso do Norrland. Dirch Frode o identificou imediatamente, o acolheu com simpatia na plataforma e o fez entrar depressa no interior aquecido de um Mercedes. Na cidade, o trabalho de desobstrução da neve era intenso, e Frode manobrou com prudência entre as grandes escavadeiras. A neve criava um contraste exótico com Estocolmo, teriam dito em outro país, embora não houvesse mais de três horas de distância até a capital e seus enfeites de Natal na cidade velha. Mikael olhava furtivamente o advogado: um rosto anguloso, cabelos brancos bem curtos, óculos de lentes grossas sobre um nariz volumoso.