— Reconheço que me contou uma história fascinante. Mas não consigo realmente entender por que me contou.
— Eu já disse. Quero descobrir quem foi o canalha que matou minha jovem sobrinha. É para isso que quero contratá-lo.
— Mas por que agora? Henrik Vanger depôs os talheres.
— Mikael, vai fazer trinta e sete anos que eu me consumo refletindo sobre o que aconteceu com Harriet. Com os anos, passei a usar cada vez mais meu tempo livre para procurá-la.
Calou-se, retirou os óculos e contemplou uma mancha invisível no copo. Depois levantou os olhos e disse a Mikaeclass="underline"
— Para ser bem honesto, o desaparecimento de Harriet foi o que me levou a abandonar progressivamente a direção do grupo. Perdi toda a motivação. Sabia que havia um assassino na minha família, e as especulações e a busca da verdade se tornaram um peso para o meu trabalho. O pior é que o fardo não aliviou com o tempo; ao contrário. Por volta de 1970, houve um período em que quis, sobretudo, ser deixado em paz. Nessa época Martin entrou para o conselho administrativo e foi se encarregando aos poucos do meu trabalho. Em 1976 aposentei-me e Martin se tornou o diretor-executivo. Continuei participando do conselho administrativo, mas não fiz grande coisa depois dos meus cinquenta anos. Nos últimos trinta e sete anos, não houve um dia em que eu não tivesse levantado hipóteses sobre o desaparecimento de Harriet. Você deve achar que isso beira a obsessão. Em todo caso, é o que pensam a maioria dos membros da nossa família. E eles provavelmente têm razão.
— O que aconteceu foi terrível.
— Mais do que isso. Destruiu minha vida. E fui tomando cada vez mais consciência disso à medida que o tempo passava. Você... você acha que se conhece bem?
— Acho que sim.
— Eu também. Não consigo esquecer o que aconteceu. Mas minhas motivações mudaram com os anos. No começo era mais um sofrimento profundo, uma aflição. Queria encontrá-la para pelo menos poder enterrá-la. Tratava-se de reabilitar Harriet.
— O que mudou então?
— Hoje se trata mais de descobrir o canalha que a matou. Mas o estranho é que quanto mais envelheço, mais isso se transformou numa espécie de hobby para mim.
— Hobby?
— Sim, a palavra cai bem. Depois que a investigação da polícia não deu em nada, continuei por conta própria. Tentei proceder de maneira sistemática e científica. Coletei todas as informações que consegui encontrar: as fotos que você viu, o inquérito policial, anotei tudo o que as pessoas me disseram ter feito naquele dia. Ou seja, dediquei quase metade da minha vida a coletar informações relativas a um único dia.
— Você tem consciência de que o próprio assassino, trinta e seis anos depois, já pode estar morto e enterrado?
— Não acredito nisso.
Mikael ergueu as sobrancelhas diante dessa declaração categórica.
— Vamos terminar a refeição e depois voltaremos ao meu escritório. Resta um detalhe para eu completar minha história. E é o mais desconcertante.
Lisbeth Salander estacionou o Corolla automático junto à estação ferroviária de Sundbyberg. Ela havia pegado emprestado o Toyota da frota de veículos da Milton Security. Não pedira exatamente permissão, mas Armanskij tampouco nunca a proibira, de forma explícita, de utilizar os veículos da Milton. Cedo ou tarde, ela pensou, vou precisar de um carro. Possuía apenas uma moto, uma Kawasaki 125 de segunda mão, que usava no verão. Durante o inverno, a moto ficava na garagem.
Caminhou até a Högklintavägen e tocou o interfone pontualmente às seis da tarde. A porta abriu depois de alguns segundos, ela subiu a escada até o primeiro andar e bateu na porta onde se lia o nome banal Svensson. Não fazia a menor idéia de quem era Svensson, nem mesmo se essa pessoa havia morado no apartamento.
— Oi, Praga — ela saudou.
— Wasp. Você só aparece quando precisa de alguma coisa.
O homem, que tinha três anos mais que Lisbeth Salander, media um metro e oitenta e nove e pesava cento e cinquenta e dois quilos. Ela, que media um metro e cinquenta e quatro e pesava quarenta e dois quilos, sempre se sentia uma anã ao lado de Praga. Como de costume, o apartamento estava na penumbra, só se entrevia a frouxa claridade de uma única lâmpada acesa no quarto que ele usava como escritório. Cheirava a mofo.
— É porque você nunca toma banho e fede como um macaco que te chamam de Praga? Se um dia você resolver sair à rua, eu te digo onde comprar sabão.
Ele esboçou um sorriso, mas não disse nada e fez a ela um sinal para acompanhá-lo até a cozinha. Instalou-se à mesa sem acender a luz. A única claridade vinha de um poste de iluminação pública diante da janela.
— Também não sou muito chegada a limpeza doméstica, mas quando caixas de leite vazias começam a atrair moscas, eu junto tudo e jogo fora.
— Recebo uma pensão por invalidez — ele disse. — Sou socialmente incompetente.
— E por isso que o Estado te deu uma moradia e rapidamente te esqueceu. Você não tem medo que os vizinhos se queixem e chamem a inspeção sanitária? Desse jeito vai acabar num asilo de loucos.
— Tem alguma coisa para mim?
Lisbeth Salander abriu o zíper da jaqueta e tirou cinco mil coroas.
— É tudo o que posso dar. Estou sacando dos meus fundos pessoais e não posso incluí-lo como dependente.
— O que você quer?
— O cabo de que me falou dois meses atrás. Conseguiu fazê-lo? Ele sorriu e pôs um objeto sobre a mesa diante dela.
— Me explica como funciona.
Durante uma hora, ela escutou com atenção. Depois testou o cabo. Praga podia ser socialmente incapaz, mas sem dúvida nenhuma era um gênio.
De volta a seu escritório, Henrik Vanger esperou ter novamente a atenção de Mikael. Este consultou seu relógio.
— Você comentou sobre um detalhe desconcertante. Henrik concordou com a cabeça.
— Nasci num 1º de novembro. Quando Harriet tinha oito anos, ela me deu um quadro de presente de aniversário. Uma flor prensada sob um vidro dentro de uma moldura simples.
Henrik deu a volta ao redor da mesa e mostrou a primeira flor. Campânula. Emoldurada sem muita habilidade.
— Foi o primeiro quadro, que recebi em 1958. Ele mostrou o quadro seguinte.
— 1959, ranúnculo. 1960, margarida. Passou a ser uma tradição. Ela preparava o quadro durante o verão e o guardava para o meu aniversário. Sempre os pendurei aqui, nessa parede. Em 1966 ela desapareceu e a tradição foi interrompida.
Henrik Vanger calou-se e mostrou uma lacuna no alinhamento dos quadros. Mikael sentiu os cabelos se eriçarem na nuca. A parede inteira estava coberta de flores prensadas.
— Em 1967, um ano após o desaparecimento dela, recebi esta flor no meu aniversário. Uma violeta.
— Recebeu como? — perguntou Mikael em voz baixa.
— Num pequeno embrulho de presente dentro de um envelope enviado pelo correio. Postado em Estocolmo. Sem remetente. Nenhuma mensagem.
— Quer dizer que... — Mikael fez um gesto largo com a mão.
— Exatamente. No meu aniversário, todo maldito ano! Entende o que sinto? É dirigido contra mim, como se o assassino quisesse me torturar. Mortifiquei-me com especulações, dizendo a mim mesmo que Harriet foi eliminada por alguém que talvez quisesse me atingir, a mim. Todos sabiam que Harriet e eu tínhamos uma relação especial e que eu a considerava como filha.
— O que quer que eu faça? — perguntou Mikael, com a voz de repente mais dura.
Depois de deixar o Corolla na garagem do subsolo da Milton Security, Lisbeth Salander aproveitou para subir ao escritório com a intenção de ir ao banheiro. Usou o cartão com senha no elevador e foi direto para o segundo andar, sem passar pela entrada principal no primeiro, onde trabalhavam os que estavam de guarda. Ao sair do banheiro, pegou um café na máquina de espressos que Dragan Armanskij por fim resolvera adquirir, ao entender que Lisbeth jamais prepararia bem um café. Em seguida foi até sua sala e estendeu a jaqueta de couro no encosto de uma cadeira.