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— Eu a via diariamente na casa de Lobach. Uma moça de vinte anos, meiga e calma, que fazia a limpeza do meu quarto e ajudava a servir o jantar. Em 1937, as perseguições aos judeus já duravam vários anos e a mãe de Edith suplicou a Hermann que a ajudasse. E ele ajudou — amava a filha ilegítima tanto quanto seus filhos legítimos. Escondeu-a no lugar mais improvável — diante do nariz de todo mundo. Providenciou-lhe falsos documentos e a contratou como empregada.

— A mulher dele sabia quem ela era?

— Não, não fazia a menor idéia.

— E depois, o que houve?

— A coisa funcionou durante quatro anos, mas Lobach sentia que o cerco se estreitava. Em breve a Gestapo viria bater à sua porta. Foi tudo o que me contou naquela noite, poucas semanas antes de eu voltar à Suécia. Depois, mandou chamar a filha e fomos apresentados. Era muito tímida e não ousou sequer me olhar nos olhos. Lobach me suplicou que salvasse a vida dela.

— Como?

— Ele arranjara tudo. Segundo seus planos, eu devia ficar por mais três semanas e em seguida tomar o trem noturno para Copenhague, depois o ferryboat para atravessar o estreito de Oresund — uma viagem sem muita importância, mesmo em tempo de guerra. No entanto, dois dias depois da nossa conversa, um cargueiro de propriedade do grupo Vanger devia deixar Hamburgo com destino à Suécia. Lobach resolveu enviar-me com o cargueiro, para que eu deixasse a Alemanha sem demora. Qualquer alteração dos projetos de viagem devia ser aprovada pelos serviços de segurança; problemas burocráticos, mas não insuperáveis. Lobach insistiu para que eu fosse naquele navio.

— Com Edith, suponho.

— Edith embarcou ilegalmente, escondida numa das trezentas caixas contendo peças para máquinas. Minha tarefa era protegê-la se fosse descoberta antes de deixarmos as águas territoriais da Alemanha, e impedir o capitão de fazer uma besteira. Não havendo problemas, eu devia esperar até estarmos a uma boa distância da Alemanha e então deixá-la sair.

— E aí?

— Parecia simples, mas a viagem foi um pesadelo. O capitão chamava-se Oskar Granath e não estava nem um pouco encantado com a responsabilidade de conduzir o herdeiro do seu patrão. Deixamos Hamburgo às nove horas de uma noite de verão. Estávamos saindo do porto quando as sirenes de alerta antiaéreo puseram-se a uivar. Um raide inglês: o pior que vivi, e o porto era evidentemente um alvo estratégico. Não exagero ao dizer que por pouco não me mijei quando as bombas começaram a explodir muito perto. Mas, de um modo ou de outro, conseguimos sair e, após uma pane de motor e uma noite horrível de tempestade nas águas recheadas de minas, chegamos à Suécia, em Karlskrona, no dia seguinte à tarde. Agora você vai me perguntar o que aconteceu com a moça.

— Acho que já sei.

— Meu pai ficou furioso, claro. Coloquei muita coisa em risco com meu ato insensato. E a moça podia ser extraditada a qualquer momento — lembre que estávamos em 1941. Mas nesse meio-tempo também me apaixonei por ela, como Lobach se apaixonara pela mãe dela. Pedi-a em casamento e dei um ultimato a meu pai: ou aceitava o casamento, ou que procurasse outra jovem esperança para a empresa da família. Ele cedeu.

— Mas ela morreu?

— Sim, morreu muito jovem. Em 1958. Vivemos juntos pouco mais de dezesseis anos. Ela tinha um problema cardíaco, de nascença. E eu me revelei estéril — nunca tivemos filhos. É por isso que meu irmão me odeia.

— Porque se casou com ela.

— Porque me casei — são os termos dele — com uma prostituta suja judia. No entender dele, eu traí a raça, o povo, a moral e tudo o que ele defendia.

— Mas ele é completamente louco.

— Eu são saberia dizer melhor.

10.  QUINTA-FEIRA 9 DE JANEIRO SEXTA-FEIRA 31 DE JANEIRO

A julgar pelo Hedestads-Kuriren, o primeiro mês de Mikael no exílio foi o mais frio já registrado na memória ou, pelo menos (segundo Henrik Vanger), desde o inverno da guerra em 1942. Mikael estava inclinado a acreditar nessa informação. Após uma semana em Hedeby, aprendera tudo a respeito de ceroulas, meias de lã e camisetas forradas.

Viveu alguns dias e noites terríveis em meados de janeiro, quando a temperatura baixou a inconcebíveis trinta e sete graus negativos. Nunca enfrentara nada semelhante, mesmo no ano que passou em Kiruna durante o serviço militar. Uma manhã, a tubulação da água congelou. Gunnar Nilsson arranjou-lhe dois grandes baldes de plástico para que pudesse cozinhar e se lavar, mas o frio era paralisante. Rosáceas de gelo formaram-se nas vidraças da janela, do lado interno, e, por mais que alimentasse o aquecedor a lenha, sentia-se continuamente gelado. Todos os dias passava longos minutos rachando lenha no depósito dos fundos da casa.

Em alguns momentos, tinha vontade de chorar e pensava em tomar um táxi até a cidade e embarcar no primeiro trem com destino ao Sul. Em vez disso, enfiava mais um pulôver e se enrolava num cobertor, sentado à mesa da cozinha com seu café e os velhos relatórios da polícia.

Depois a tendência se inverteu e a temperatura subiu para agradáveis dez graus negativos.

Mikael começou a conhecer as pessoas em Hedeby. Martin Vanger cumpriu sua promessa e lhe ofereceu um jantar que ele mesmo preparou — assado de carne de alce regado a vinho tinto italiano. O chefe da empresa não era casado, porém convivia com uma certa Eva Hassel, que os acompanhava. Eva era uma mulher calorosa e divertida, que Mikael achou muito atraente. Era dentista e morava em Hedestad, mas passava os fins de semana na casa de Martin. Mikael ficou sabendo que fazia muitos anos que eles se conheciam, mas começaram a conviver somente na idade madura e julgaram não haver necessidade de casamento.

— A verdade é que ela é a minha dentista — disse Martin Vanger.

— E misturar-me a essa família de malucos não é bem o que eu quero — disse Eva, batendo afetuosamente com os dedos no joelho de Martin.

Desenhada por um arquiteto, a mansão de Martin Vanger era o sonho de todo celibatário, com móveis pretos, brancos e de metal cromado. Peças dispendiosas e com um design que teria fascinado Christer Malm, o ilustrador da Millennium. A cozinha tinha equipamentos de um cozinheiro profissional. Na sala de estar havia uma aparelhagem de som estereofônico com, entre outras preciosidades, uma excelente coleção de jazz em vinil, de Tommy Dorsey a John Coltrane. Martin tinha dinheiro e seu lar era suntuoso e funcional, embora um pouco impessoal. Mikael notou que os quadros nas paredes eram simples reproduções e pôsteres encontrados em grandes lojas, como a Ikea — bonitos mas sem nada de especial. As estantes, pelo menos na parte da casa que Mikael viu, estavam cuidadosamente ocupadas pela Enciclopédia Nacional e por alguns livros desses que as pessoas oferecem como presente de Natal na falta de idéia melhor. Em suma, Mikael conseguiu perceber apenas duas paixões na vida de Martin Vanger: a música e a culinária. A primeira se manifestava em cerca de três mil álbuns de trinta e três rotações. A segunda podia-se ver na carne opulenta de Martin Vanger.

Como pessoa, Martin era uma estranha mistura de estupidez, causticidade e amabilidade. Não era preciso ser um grande analista para concluir que o chefe da empresa era um homem com problemas. Enquanto escutavam Night in Tunisia, a conversa se voltou para o grupo Vanger, e Martin não tentou esconder que lutava pela sobrevivência do grupo. A escolha desse assunto deixou Mikael perplexo; Martin não ignorava que tinha por convidado um jornalista econômico que ele conhecia muito pouco, no entanto discutia os problemas internos da empresa com tanta franqueza que havia nisso alguma imprudência. Ele parecia considerar Mikael como alguém da família, já que trabalhava para Henrik, e, a exemplo do ex-diretor-executivo, achava que a família só podia culpar a si mesma pela situação na qual a empresa se encontrava. Contudo, não compartilhava a amargura e o desprezo intransigente do velho em relação à família, parecendo antes achar graça da loucura incurável dela. Eva Hassel assentiu com a cabeça, mas não fez comentários. Certamente já haviam conversado sobre essa questão.