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Erika mostrou excelente humor durante todo o jantar.

A discussão só começou de fato quando passaram a uma sala com lareira e o conhaque foi servido em todos os copos. Falaram durante cerca de duas horas, até o rascunho de um acordo ser esboçado.

Dirch Frode criaria uma sociedade em nome de Henrik Vanger, cujo conselho administrativo seria formado por ele mesmo, Frode e Martin Vanger. Durante quatro anos, a sociedade investiria uma soma de dinheiro que cobriria a diferença entre as receitas e as despesas da Millennium. O dinheiro viria dos recursos pessoais de Henrik Vanger. Em contrapartida, ele teria uma posição determinante no conselho administrativo da revista. O acordo seria válido por quatro anos, mas poderia ser rescindido pela Millennium depois de dois. Tal rescisão, porém, custaria caro, pois a parte de Henrik só poderia ser resgatada adquirindo-se a totalidade da soma investida.

Em caso da morte súbita de Henrik Vanger, Martin Vanger o substituiria no conselho administrativo durante o período de vigência do contrato. Martin decidiria, chegado o momento, se estenderia ou não o acordo além desse prazo. Martin parecia tentado pela possibilidade de dar o troco a Hans-Erik Wennerström, e Mikael se perguntou em que realmente consistia a disputa entre eles.

Estabelecido o acordo preliminar, Martin encheu novamente os copos com conhaque. Henrik aproveitou para se inclinar em direção a Mikael e explicar em voz baixa que o acordo não afetava de maneira nenhuma o contrato entre os dois.

Também ficou decidido que para que essa reorganização tivesse o máximo de repercussão na imprensa ela seria anunciada em meados de março, no mesmo dia em que Mikael Blomkvist fosse para a prisão. Associar um acontecimento necessariamente negativo com uma reestruturação era tão estranho do ponto de vista da comunicação, que só poderia confundir os detratores de Mikael e dar o máximo de audiência à chegada de Henrik Vanger à Millennium. O sinal seria claramente percebido deste modo: retirava-se a bandeira amarela da peste que pairava sobre a redação e a revista tinha protetores que não estavam dispostos a ceder. Por mais que as empresas Vanger estivessem em crise, elas continuavam sendo um grupo industrial de peso e capaz de ter atuação pública se necessário.

Toda a conversa foi uma discussão entre Erika, de um lado, e Henrik e Martin, de outro. Ninguém pediu a opinião de Mikael.

Mais tarde, à noite, Mikael estava apoiado sobre o peito de Erika e a fitava com olhos inquiridores.

— Há quanto tempo você e Henrik vinham discutindo esse acordo? — perguntou.

— Há cerca de uma semana — ela respondeu sorrindo.

— Christer está sabendo?

— Claro.

— Por que não me disse nada?

— E por que eu deveria dizer? Você foi demitido, abandonou a redação e veio se instalar neste fim de mundo.

Mikael refletiu um momento sobre o que ela tinha dito.

— Está querendo me dizer que mereço ser tratado como um cretino?

— Isso mesmo — ela disse, marcando as palavras.

— Você ficou mesmo muito zangada comigo?

— Mikael, eu nunca me senti tão furiosa, abandonada e traída como no momento em que você deixou a redação. Nunca tive tanta raiva de você. — E o pegou firmemente pelos cabelos e o empurrou mais para baixo na cama.

Quando Erika deixou a aldeia no domingo, Mikael estava tão zangado com Henrik Vanger que não queria correr o risco de topar com ele ou com outro membro do clã. Partiu então para Hedestad e passou a tarde dando voltas pela cidade, foi à biblioteca, tomou café numa confeitaria... A noite foi ao cinema assistir a O senhor dos anéis, que ainda não tinha visto, embora o filme já estivesse há um ano em cartaz. Disse a si mesmo que os orcos, diferentemente dos humanos, eram criaturas simples, nada complicadas.

Encerrou a noitada no McDonald's de Hedestad e voltou à ilha à meia-noite, no último ônibus. Preparou café e instalou-se à mesa da cozinha para examinar um arquivo. Ficou lendo até as quatro da manhã.

Alguns pontos de interrogação no inquérito sobre Harriet Vanger revelavam-se cada vez mais estranhos à medida que Mikael avançava na leitura da documentação. Não se tratava de nenhuma descoberta revolucionária que acabara de fazer, mas de problemas que haviam mantido o inspetor Gustav Morell ocupado por longos períodos, sobretudo em seu tempo livre.

No último ano de sua vida, Harriet Vanger havia sofrido uma transformação. Mudança explicável, em certa medida, pela metamorfose que todos os jovens passam na adolescência. Harriet começava, certamente, a se tornar adulta, mas várias pessoas, tanto colegas de classe quanto professores e membros da família, afirmaram que ela se tornara mais fechada e reservada.

A menina que dois anos antes era uma adolescente perfeitamente normal e brincalhona parecia ter se distanciado de seu meio. Na escola, continuou a estar com os amigos, mas de um modo definido como "impessoal" por uma das colegas. Um termo bastante incomum para que Morell o registrasse e fizesse outras perguntas. A explicação que lhe deram é que Harriet deixara de falar de si mesma, de comentar as últimas fofocas ou de fazer confidências.

Na juventude, Harriet Vanger fora cristã como a maioria das crianças — culto aos domingos, orações à noite etc. No último ano, pareceu ter virado crente. Lia a Bíblia e ia regularmente à igreja. No entanto não se confiou ao pastor Otto Falk, amigo da família Vanger, e na primavera passou a frequentar uma congregação de pentecostais de Hedestad. Sua ligação com a Igreja pentecostal não durou muito. Dois meses depois, deixou a congregação e passou a ler livros sobre catolicismo.

Exaltação religiosa da adolescência? Talvez, mas ninguém na família Vanger havia sido crente, e era difícil saber que impulsos guiaram seus pensamentos. Uma explicação do interesse por Deus podia ser, evidentemente, a morte do pai, afogado num acidente um ano antes. Em todo caso, Gustav Morell concluiu que algo ocorrera na vida de Harriet que a oprimira e a influenciara, mas ele não sabia determinar o quê. Assim como Henrik Vanger, Morell dedicou muito tempo a conversar com as amigas de Harriet, na esperança de encontrar alguém a quem ela pudesse ter feito confidências.

Havia muita expectativa a respeito de Anita Vanger, a filha de Harald Vanger que passou o verão de 1966 na ilha, que se dizia amiga íntima de Harriet e era dois anos mais velha que ela. Mas tampouco Anita tinha alguma informação pessoal a dar. As duas se viram durante o verão, tomaram banho juntas, passearam, falaram de filmes, grupos de rock e livros. Harriet várias vezes acompanhou Anita em suas aulas de habilitação de motorista. Um dia, se embriagaram levemente com uma garrafa de vinho surrupiada da adega. Também passaram várias semanas sozinhas na pequena casa de Gottfried na extremidade da ilha, uma cabana rústica construída pelo pai de Harriet no começo dos anos 1950.

As questões sobre os pensamentos íntimos e os sentimentos de Harriet permaneciam sem resposta. Mikael notou, porém, uma discordância nas opiniões sobre ela: aqueles que achavam seu caráter fechado eram em grande parte colegas de classe e, em certa medida, membros da família, mas Anita Vanger não a achara de modo algum retraída. Ele anotou esse ponto para discuti-lo eventualmente com Henrik Vanger.

Um problema mais concreto, que levara Morell a se fazer muitas perguntas, era uma página misteriosa da agenda finamente encadernada de Harriet Vanger, um presente de Natal recebido um ano antes de seu desaparecimento. A primeira metade da agenda continha anotações diárias com horários de encontros, datas de provas no colégio, deveres de casa e coisas do gênero. Havia espaço para anotações pessoais, mas só muito esporadicamente Harriet escrevia um diário íntimo. Começou em janeiro com muita ambição, com observações sobre pessoas encontradas durante as férias de Natal e alguns comentários sobre os filmes que tinha visto. Depois, não escreveu mais nada de pessoal até o fim do ano escolar, quando parece — é assim que se pode interpretar as anotações — ter se interessado de longe por um rapaz cujo nome não revelou.