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Mikael admitia não ter competência para avaliar um inquérito criminal, mas ainda assim concluiu que o inspetor Morell fora excepcionalmente consciencioso e movera céus e terras muito além do que seu trabalho exigia. Deixando de lado o inquérito policial, Mikael via Morell retornar às anotações de Henrik; uma amizade desenvolvera-se entre os dois e Mikael se perguntou se Morell se tornara tão obsessivo quanto o empresário. Mas concluiu que nada de importante escapara a Morell. A solução do mistério Harriet Vanger não podia estar num inquérito policial praticamente perfeito. Todas as questões imagináveis haviam sido levantadas e todos os indícios verificados, mesmo os mais absurdos.

Ele ainda não lera todo o inquérito, mas, quanto mais avançava, mais os indícios e as pistas exploradas se tornavam obscuros. Não esperava descobrir algo que seu predecessor não tivesse percebido, e não via sob que novo ângulo atacar o problema. Uma conclusão se impunha aos poucos: o único caminho possível era tentar descobrir as motivações psicológicas das pessoas implicadas.

O ponto de interrogação mais evidente dizia respeito à própria Harriet. Quem era ela afinal?

Da janela de sua casa, Mikael viu acender-se, por volta das cinco da tarde, a luz no andar de cima da casa de Cecilia Vanger. Bateu à sua porta às sete e meia, no momento em que o noticiário começava na tevê. Ela vestia um penhoar quando abriu a porta, e tinha os cabelos molhados sob uma toalha amarela. Assim que a viu, Mikael desculpou-se por incomodá-la e já se preparava para partir quando ela o convidou a entrar na cozinha. Ligou a cafeteira elétrica e desapareceu no alto da escada durante alguns minutos, para depois descer vestindo um jeans e uma camisa de flanela xadrez.

— Eu já estava começando a achar que você não teria coragem de vir. Podemos nos tratar por você?

— Claro. Sim, eu deveria ter telefonado antes, mas, quando passei e vi a luz acesa, me deu uma vontade repentina.

— E eu tenho visto que a luz fica acesa a noite toda na sua casa. E que geralmente você sai para passear depois da meia-noite. Você é uma ave noturna?

Mikael encolheu os ombros.

— Foi o ritmo que adotei aqui. — Seus olhos dirigiram-se a alguns livros escolares empilhados na beira da mesa. — Continua dando aulas, senhora diretora?

— Não, como diretora não tenho mais tempo. Mas já dei aulas de história, religião e de educação cívica. E só me restam uns poucos anos.

— Poucos? Ela sorriu.

— Estou com cinquenta e seis. Em breve me aposento.

— Sinceramente, eu lhe dava uns quarenta.

— Bondade sua. E você, que idade tem?

— Um pouco mais de quarenta — sorriu Mikael.

— E ainda ontem você tinha apenas vinte. Como passa depressa... a vida, eu quero dizer.

Cecilia Vanger serviu o café e perguntou se Mikael estava com fome. Ele respondeu que já tinha comido; o que era verdade, a não ser por um detalhe: ele andava se alimentando de sanduíches em vez de preparar refeições de verdade. Mas não estava com fome.

— Então, o que o traz aqui? Chegou a hora de me fazer as famosas perguntas?

— Para falar a verdade... não vim fazer perguntas. Acho que estava simplesmente com vontade de vê-la.

Cecilia Vanger sorriu, surpresa.

— Você foi condenado à prisão, trocou Estocolmo por Hedeby, anda mergulhado nos arquivos favoritos de Henrik, não dorme à noite, faz longas caminhadas noturnas debaixo de um frio de rachar... esqueci alguma coisa?

— Minha vida é um trem fora dos trilhos. — Mikael retribuiu o sorriso.

— Quem é a mulher que veio vê-lo no fim de semana?

— Erika... a dona da Millennium.

— Sua namorada?

— Não exatamente. Ela é casada. Sou mais um amigo e um amante ocasional.

Cecilia Vanger deu uma gargalhada.

— O que é tão engraçado?

— O modo como você disse isso. Amante ocasional. Adorei a expressão. Mikael riu. Essa Cecilia Vanger decididamente lhe agradava.

— Gostaria muito de ter um amante ocasional — ela disse.

Descalçou as pantufas e pôs o pé sobre o joelho de Mikael. Maquinalmente ele pegou o pé dela e acariciou sua pele. Hesitou um segundo — sentiu que navegava em águas inesperadas e incertas. Mas com o polegar começou a massagear com suavidade a planta do pé de Cecilia Vanger.

— Também sou casada — disse ela.

— Eu sei. Ninguém se divorcia no clã Vanger.

— Não vejo meu marido há quase vinte anos.

— O que aconteceu?

— Não te interessa. Não faço amor há... humm... digamos, há uns três anos.

— Você me surpreende.

— Por quê? É uma questão de oferta e procura. Não estou nem um pouco interessada em ter um namorado, um marido legítimo ou um companheiro. Sinto-me bem comigo mesma. Com quem eu faria amor? Com um dos professores da escola? Duvido. Com um aluno? Seria um assunto delicioso para as fofocas da cidade. Todos vigiam de perto os Vanger. E aqui em Hedebyön moram apenas membros da família ou pessoas já casadas.

Ela se inclinou para a frente e enlaçou os braços no pescoço dele.

— Estou chocando você?

— Não. Mas não sei se é uma boa idéia. Trabalho para o seu tio.

— E eu seria certamente a última pessoa a contar para ele. Mas é bem provável que Henrik não tivesse nada contra.

Ela sentou de pernas abertas sobre os joelhos de Mikael e o beijou na boca. Os cabelos ainda estavam úmidos e cheiravam a xampu. Ele demorou um pouco para abrir os botões da camisa de flanela, descobrindo-lhe os ombros. Ela não se dera o trabalho de pôr sutiã. Quando ele tocou seus seios, ela estreitou o corpo contra o dele.

O advogado Bjurman contornou a mesa e mostrou-lhe o extrato da conta, cujo saldo ela conhecia até o último centavo, mas do qual não podia mais dispor livremente. Ele se mantinha de pé às suas costas. Súbito, começou a acariciar a nuca de Lisbeth, deslizando a mão sobre o ombro esquerdo e o seio dela. Pôs a outra mão sobre o seio direito e a deixou ali. Como ela não protestou, ele apertou o seio. Lisbeth Salander não se mexia. Sentiu o hálito dele em sua nuca e olhou para o cortador de papel em cima da mesa; poderia facilmente atingi-lo com a mão livre.

Mas não fez nada. Uma coisa que Holger Palmgren lhe ensinara ao longo dos anos era que atos impulsivos traziam problemas, e problemas podiam trazer consequências desagradáveis. Ela nunca fazia nada sem antes pesar as consequências.

Esse primeiro abuso sexual — em termos jurídicos podia ser qualificado como abuso sexual e de poder sobre uma pessoa dependente, e teoricamente podia significar até dois anos de prisão para Bjurman — durou apenas alguns segundos. O suficiente, porém, para transpor, sem volta, uma fronteira. Lisbeth Salander entendeu isso como a demonstração de força de uma tropa inimiga — um modo de deixar claro que, para além da relação jurídica cuidadosamente estabelecida, ela estava à mercê da boa vontade dele, e desarmada. Quando seus olhos se cruzaram alguns segundos depois, a boca de Bjurman estava entreaberta e ela viu desejo em seu rosto. O rosto de Salander não traía o menor sentimento.

Bjurman contornou novamente a mesa e sentou-se em sua confortável cadeira de couro.

— Não posso te passar cheques assim, sem mais — disse abruptamente. — Por que você precisa de um computador tão caro? Há equipamentos bem mais baratos nos quais você pode instalar seus jogos.

— Quero dispor do meu dinheiro como antes. Bjurman lançou-lhe um olhar cheio de piedade.

— Veremos isso mais tarde. Primeiro você precisa aprender a ser sociável e a se entender com as pessoas.

O sorriso do dr. Bjurman certamente teria se contraído um pouco se ele pudesse ler os pensamentos de Lisbeth por trás de seus olhos inexpressivos.

— Acho que podemos ser bons amigos — disse Bjurman. — Precisamos confiar um no outro.

Como ela não respondeu, ele foi mais explícito.

— Você agora é uma mulher adulta, Lisbeth.