Na verdade, a vida sexual de Lisbeth Salander não era tão modesta como dera a entender ao dr. Bjurman. E, na maioria das vezes, seus relacionamentos se desenrolaram de acordo com suas condições e por iniciativa sua. Desde os quinze anos, teve uns cinquenta parceiros, ou seja, algo como cinco por ano, o que era normal para uma mulher solteira da idade dela que considerava o sexo como um passatempo.
Mas ela conheceu a maioria desses parceiros ocasionais num período de dois anos, na época tumultuosa do fim da adolescência. Lisbeth Salander viu-se então numa encruzilhada, sem controle real sobre sua vida, e seu futuro poderia ter se transformado numa nova série de ocorrências relacionadas com drogas, álcool e internação em diferentes instituições. Depois dos vinte anos e de seu início na Milton Security, ela se acalmara consideravelmente e julgava estar no comando de sua vida.
Não se sentia mais obrigada a retribuir favores a quem lhe tivesse pago três cervejas num bar, nem a menor obrigação de acompanhar um bêbado, cujo nome mal lembrava, até a casa dele. No último ano, teve um único parceiro regular, o que dificilmente se podia qualificar de atitude desavergonhada, como insinuavam os documentos médicos do final de sua adolescência.
Fora isso, para ela o sexo estava ligado ao fato de pertencer a um grupo de garotas do qual na realidade não fazia parte, mas que a aceitara por ser amiga de Cilla Norén. Ela conhecera Cilia no final da adolescência, quando, a pedido insistente de Holger Palmgren, tentou obter o certificado de conclusão do segundo grau em um curso supletivo. Cilla tinha cabelos vermelhos com mechas escuras, vestia calça de couro preto, tinha um piercing no nariz e um cinto com rebites, como Lisbeth. Elas se olharam com desconfiança na primeira aula.
Por uma razão que Lisbeth não conseguia entender, começaram a se ver. Lisbeth não era das que logo faziam amizade, sobretudo naquela época, mas Cilla ignorou seu silêncio e a levou a um bar. Por intermédio dela, Lisbeth tornou-se membro das Evil Fingers, originalmente um grupo da periferia composto de quatro adolescentes de Enskede que gostavam de hard rock e que, dez anos depois, formavam um grupo considerável de amigas que se reuniam no Moulin, terças-feiras à noite, para falar mal dos rapazes, conversar sobre feminismo, ciências ocultas, música e política, e beber quantidades enormes de cerveja. Elas, de fato, faziam jus ao nome.
Salander gravitava na periferia desse grupo e raramente dava sua contribuição às discussões, mas era aceita do jeito que era, podia ir e vir à vontade e ficar a noite toda com um copo de chope na mão sem dizer nada. Também era convidada para os aniversários de uma ou outra, Natal e festas do gênero, embora quase nunca comparecesse.
Durante os cinco anos em que frequentou as Evil Fingers, as meninas sofreram transformações. As cores dos cabelos foram voltando ao normal e as roupas agora provinham mais das lojas H&M que dos brechós do Exército da Salvação. Todas ou estudavam ou trabalhavam, e uma deu à luz um menino. Lisbeth tinha a impressão de ser a única que não mudara em nada, o que talvez significasse que patinava no mesmo lugar.
Mas elas se divertiam sempre que se encontravam. Se havia um lugar ao qual sentia uma espécie de pertencimento, era na companhia das Evil Fingers e, por extensão, na companhia dos rapazes que constituíam o círculo de amigos do grupo.
As Evil Fingers a escutariam e se mobilizariam a seu favor. Mas elas ignoravam que Lisbeth Salander estava submetida a uma decisão da Justiça que a declarava juridicamente irresponsável. Não queria que elas também passassem a olhá-la torto. Não era uma boa alternativa.
Quanto ao resto, nem um único colega de classe de antigamente figurava no seu caderninho de endereços. Ela não dispunha de nenhuma rede de apoio ou de contatos políticos. Haveria alguém a quem pudesse contar seus problemas com Nils Bjurman?
Sim, talvez houvesse alguém. Ela refletiu demoradamente sobre a idéia de se abrir com Dragan Armanskij, de procurá-lo para expor sua situação. Ele dissera que se ela precisasse de qualquer tipo de ajuda não devia hesitar em procurá-lo. Ela estava convencida de sua sinceridade.
Armanskij também a tocara uma vez, mas fora um gesto gentil, sem más intenções, não tivera nada de demonstração de força. No entanto ela relutava em lhe pedir ajuda. Ele era seu chefe, e isso a tornaria devedora. Lisbeth Salander sorriu ao pensar em como seria sua vida se tivesse Armanskij como tutor em vez de Bjurman. A idéia não era desagradável, mas Armanskij certamente levaria tão a sério a missão que a sufocaria com sua solicitude. Era... humm... uma alternativa possível.
Embora estivesse perfeitamente a par do papel do SOS-Mulheres, nunca lhe passou pela cabeça utilizar esse recurso. Para ela, esses centros de apoio destinavam-se às vítimas e ela nunca tinha se considerada como tal. Portanto, a única boa alternativa que lhe restava era agir como sempre agira — resolver ela mesma seus problemas. Essa, sim, era a boa solução.
E uma solução que nada de bom prometia ao dr. Nils Bjurman.
13. QUINTA-FEIRA 20 DE FEVEREIRO –SEXTA-FEIRA 7 DE MARÇO
Na última semana de fevereiro, Lisbeth Salander confiou a si mesma uma missão, que tinha o dr. Nils Bjurman, nascido em 1950, como objeto principal. Trabalhou cerca de dezesseis horas por dia e fez uma investigação mais minuciosa do que nunca. Utilizou todos os arquivos e todos os documentos oficiais que conseguiu encontrar. Vasculhou as relações familiares e pessoais, verificou as contas e reconstituiu em detalhe a carreira e os trabalhos realizados pelo advogado.
O resultado foi desanimador.
Ele era jurista, membro da Ordem dos Advogados e autor de uma tese verborrágica e especialmente tediosa sobre direito comercial. Sua reputação era impecável. O dr. Bjurman nunca recebera uma crítica. Uma única vez foi chamado à Ordem dos Advogados — teria intermediado negócios imobiliários escusos dez anos antes —, mas comprovou sua inocência e o caso foi arquivado. Suas contas estavam em ordem; Bjurman era rico, dispunha de pelo menos dez milhões de coroas. Pagava mais impostos que o necessário, era membro do Greenpeace e da Anistia Internacional, e fazia doações regulares à Fundação para o Coração e os Pulmões. Seu nome raramente aparecia na mídia, mas várias vezes assinou petições a favor de prisioneiros políticos do Terceiro Mundo. Morava num apartamento de cinco quartos da Upplandsgatan, perto da Odenplan, e era secretário do conselho de condôminos de seu prédio. Divorciado, sem filhos.
Lisbeth Salander dirigiu o foco para sua ex-mulher, chamada Elena. Nascera na Polônia, mas sempre vivera na Suécia. Trabalhava num centro de reeducação e voltara a se casar, aparentemente um casamento melhor, com um colega de Bjurman. Nada a investigar desse lado. O casamento durara catorze anos e o divórcio fora amigável.
Bjurman se ocupava regularmente do controle de jovens com problemas na Justiça. Fora curador de quatro menores de idade antes de ser nomeado tutor de Lisbeth Salander. Cada uma dessas missões terminou por simples decisão do tribunal no dia em que alcançaram a maioridade. Um desses clientes ainda tinha Bjurman como advogado, mas também aí não parecia haver nada de importante a descobrir. Se Bjurman montara um sistema para tirar proveito de seus protegidos, pelo menos nada aparecia na superfície, e, por mais que Lisbeth pesquisasse em profundidade, também nada encontrou de errado. Os quatro tinham vidas regulares com um namorado ou namorada, emprego, casa e um monte de cartões de crédito.
Ela entrou em contato com os quatro, apresentando-se como secretária de assuntos sociais encarregada de pesquisar jovens que no passado estiveram sob regime de curadoria, para saber como estava a vida deles comparada à de outros jovens. Sim, com certeza, é uma pesquisa completamente sigilosa. Montou um questionário com dez itens. Várias das perguntas eram formuladas de modo a incitar os interlocutores a dar sua opinião sobre o funcionamento da curadoria — se tivessem algo a dizer sobre Bjurman, isso certamente teria transparecido em pelo menos um dos entrevistados. Mas ninguém tinha nada de negativo a declarar.