Mikael abriu a pasta com as fotos que Kurt Nylund havia tirado da multidão. Passou a hora seguinte ampliando cada fotografia e examinando-a centímetro quadrado por centímetro quadrado. Reencontrou o casal exatamente na última. Kurt Nylund havia fotografado outro palhaço, com balões na mão, posando diante da objetiva com um eternizado sorriso nos lábios. A foto fora tirada no estacionamento junto à praça de esportes onde se realizava a festa. Deve ter sido depois das duas da tarde — a seguir Nylund fora avisado do acidente com o caminhão-tanque e interrompera a cobertura da Festa das Crianças.
A mulher estava quase inteiramente oculta, mas via-se com clareza o perfil do homem de suéter listado. Ele tinha chaves na mão e se inclinava para abrir a porta de um carro. A imagem mostrava o palhaço em primeiro plano e a foto estava ligeiramente desfocada. Não se via toda a placa, mas ela começava por AC3 alguma coisa.
As placas dos veículos nos anos 1960 começavam com a letra das regiões, e Mikael aprendera, quando criança, a identificar a proveniência dos carros. AC designava o Västerbotten.
Depois Mikael identificou outra coisa. No vidro traseiro havia um adesivo. Deu um zoom, porém o texto desapareceu numa mancha. Realçou o adesivo e levou algum tempo trabalhando no contraste e na nitidez. Não conseguia ler o texto, mas se baseou nas formas imprecisas para determinar a que letras podiam corresponder. Muitas se assemelhavam. Um O podia ser tomado por um D, um B por um E ou várias outras letras. Trabalhando com papel e lápis, e após eliminar algumas letras, deparou com um texto incompreensível.
Fixou a imagem até seus olhos doerem. E então o texto apareceu: MARCENARIA DE NORSJÖ, seguido de sinais menores e impossíveis de ler, mas que formavam, provavelmente, um número telefônico.
17. QUARTA-FEIRA 11 DE JUNHO — SÁBADO 14 DE JUNHO
Quanto à terceira peça do quebra-cabeça, Mikael recebeu uma ajuda inesperada.
Depois de trabalhar nas fotos a noite toda, dormiu pesadamente até o meio-dia. Acordou com uma dor de cabeça difusa, tomou um banho e foi até o Café Susanne fazer seu desjejum. Não conseguia juntar as idéias. Deveria ir ver Henrik Vanger e relatar suas descobertas. Em vez disso, foi bater à porta de Cecilia. Queria lhe perguntar o que fora fazer no quarto de Harriet e por que mentira, dizendo que não havia ido lá. Ninguém atendeu.
Ele estava deixando o local quando ouviu uma voz.
— A sua puta não está em casa.
O Gollum acabava de sair da caverna. Era alto, quase dois metros de altura, mas tão curvado pela idade que os olhos ficavam na altura dos de Mikael. A pele estava manchada de sardas escuras. Vestia um pijama e um robe marrom e se apoiava numa bengala. Parecia a versão hollywoodiana do velho rabugento.
— Que foi que o senhor disse?
— Eu disse que a sua puta não está em casa.
Mikael se aproximou até quase tocar o nariz de Harald Vanger.
— E de sua própria filha que está falando, seu velho indecente.
— Não sou eu que venho vagar aqui à noite — respondeu Harald Vanger com um sorriso desdentado. Seu hálito fedia. Mikael desviou-se dele e prosseguiu seu caminho sem se virar. Foi até a casa de Henrik Vanger e o encontrou em seu escritório.
— Acabo de encontrar seu irmão — disse Mikael —, e ele mal pôde conter sua rabugice.
— Harald? Ora vejam, então ele ousou uma saída! Isso acontece uma ou duas vezes por ano.
— Eu batia à porta de Cecilia quando ele apareceu. Ele falou, abre aspas: A sua puta não está em casa. Fecha aspas.
— É bem coisa do Harald — disse Henrik Vanger calmamente.
— Ele chama de puta a própria filha!
— Há anos age assim. Por isso não se falam mais.
— Por quê?
— Cecilia perdeu a virgindade quando tinha vinte e um anos. Aconteceu aqui em Hedestad, uma história de amor que ela teve durante o verão, um ano após o desaparecimento de Harriet.
— E aí?
— O homem que ela amava chamava-se Peter Samuelsson, trabalhava no grupo Vanger como assistente financeiro. Um rapaz inteligente. Hoje trabalha para a ABB. Eu me orgulharia de tê-lo como genro se ela fosse minha filha. Mas ele tinha um defeito.
— Acho que posso adivinhar qual é.
— Harald mediu-lhe o crânio, ou verificou sua árvore genealógica, ou qualquer coisa que o valha, e descobriu que tinha antepassados judeus.
— Santo Deus!
— Desde então passou a chamá-la de puta.
— Ele sabia que Cecilia e eu...
— Todo o povoado sabe, imagino, talvez com exceção de Isabella, porque nenhuma pessoa razoável iria lhe contar qualquer coisa e por sorte ela tem o hábito de ir dormir às dez da noite. Harald provavelmente acompanhou o menor dos seus passos.
Mikael sentou-se. Sentia-se meio estúpido.
— Quer dizer então que todo mundo está sabendo...
— Evidentemente.
— E você não tem nada contra?
— Querido Mikael, isso realmente não me diz respeito.
— Onde está ela, Cecilia?
— O ano escolar terminou. No sábado passado ela viajou a Londres para visitar a irmã e depois vai partir de férias para... humm... a Flórida, acho. Voltará daqui a um mês.
Mikael se sentiu ainda mais estúpido.
— Resolvemos, digamos assim, suspender a nossa relação.
— Entendo, mas também não é da minha conta. Como vai o trabalho?
Mikael serviu-se de café da garrafa térmica de Henrik. Olhou para o velho.
— Descobri uma novidade e vou precisar que alguém me empreste um carro.
Mikael passou longo tempo expondo suas conclusões. Tirou o notebook da mochila e apresentou a série de fotos que mostravam a reação de Harriet na rua da Estação. Mostrou também como descobrira os fotógrafos amadores e seu carro com o adesivo da Marcenaria de Norsjö. Quando terminou sua exposição, Henrik pediu para rever a sequência de fotos. Mikael tornou a passar.
Quando Henrik levantou os olhos da tela do computador, seu rosto estava pálido. Mikael sentiu um medo súbito e pôs a mão no ombro dele. Henrik fez-lhe um sinal para tranquilizá-lo e permaneceu silencioso por um momento.
— Você fez o que eu achava impossível! Descobriu algo totalmente novo. O que vai fazer agora?
— Preciso encontrar essa foto, se é que ainda existe.
Mikael nada disse sobre o rosto na janela e a suspeita contra Cecilia. O que provavelmente indicava que estava longe de ser um detetive particular objetivo.
Quando Mikael saiu, Harald Vanger havia desaparecido, certamente de volta à sua caverna. Ao fazer a curva, viu alguém de costas junto à entrada de sua casa, lendo um jornal. Por um segundo, imaginou que fosse Cecilia Vanger, mas logo viu que não. Ao se aproximar, reconheceu imediatamente a própria filha.
— Oi, papai — disse Pernilla Abrahamsson. Mikael estreitou a filha nos braços.
— Mas de onde você está vindo?!
— De casa, é claro. Vou a Skelleftea. Vim passar uma noite aqui.
— E como me descobriu?
— Mamãe sabia e perguntei ali no café onde você morava. Indicaram-me esta casa. Está contente de me ver?
— Claro que sim. Entre. Devia ter me avisado, eu teria comprado alguma coisa gostosa para comer.
— Pensei em te avisar, mas depois resolvi fazer uma surpresa para comemorar a sua saída da prisão, e você também nunca me telefonou.
— Desculpe.
— Tudo bem. Mamãe diz que você está sempre mergulhado nos seus pensamentos.
— É isso que ela fala de mim?
— Mais ou menos. Mas não faz mal. Mesmo assim eu te amo.
— Eu também, mas quero que você saiba...
— Eu sei. Acho que sou bastante madura para a minha idade.
Mikael preparou chá e serviu alguns petiscos. De repente percebeu que o que a filha dissera era verdade. Ela não era mais uma menina, tinha quase dezessete anos e em breve seria uma mulher adulta. Ele precisava aprender a não tratá-la mais como uma criança.