Dirch Frode percebeu tarde demais que falara mais do que devia. Estou ficando velho, pensou.
— Pensei em voz alta. Não é nada — tentou dizer.
— Mandou fazer uma investigação sobre mim?
— Nada de dramático, Mikael. Como queríamos contratá-lo, fomos verificar que tipo de homem você é.
— Então é por isso que Henrik Vanger sempre parece saber exatamente qual é a minha situação. E essa investigação? Foi muito aprofundada?
— Sim, bastante aprofundada.
— Levantou os problemas da Millennium? Dirch Frode encolheu os ombros.
— Era necessário.
Mikael acendeu um cigarro. O quinto do dia. Percebeu que aquilo estava virando um hábito.
— Houve um relatório por escrito?
— Mikael, não dê tanta importância a isso.
— Quero ler esse relatório — disse.
— Veja, Mikael, não há nada de extraordinário. Apenas quisemos saber um pouco mais sobre você antes de contratá-lo.
— Quero ler esse relatório — repetiu Mikael.
— Somente Henrik pode dar a permissão.
— Ah é? Então vou dizer de outro modo: quero esse relatório nas minhas mãos dentro de uma hora. Do contrário, peço demissão imediatamente e pego o trem da noite para Estocolmo. Onde está o relatório?
Dirch Frode e Mikael Blomkvist mediram-se com os olhos por alguns segundos. Frode então suspirou e baixou os olhos.
— Na minha casa, na minha mesa.
O caso Harriet, sem dúvida, era a história mais bizarra com a qual Mikael Blomkvist já se envolvera. De modo geral, o último ano, desde a publicação da história de Hans-Erik Wennerström, não fora senão uma longa série de montanhas-russas — com grandes quedas livres. E aparentemente não havia terminado.
Dirch Frode ainda tentou ganhar tempo e Mikael só pôs as mãos no relatório de Lisbeth Salander às seis da tarde. Um pouco mais de oitenta páginas de análise e cem páginas de cópias de artigos, diplomas e outros detalhes marcantes da vida de Mikael.
Foi uma experiência estranha ver-se descrito no que podia ser considerado uma combinação de biografia com relatório de serviço secreto. Mikael ficou pasmo de ver como o relatório era detalhado. Lisbeth Salander apresentava detalhes que ele acreditava enterrados para sempre no húmus da história. Revelava uma ligação de sua juventude com uma sindicalista brilhante, atualmente dedicada em tempo integral à política. Quem contou a ela essa história? Mencionava seu grupo de rock Bootstrap, do qual certamente ninguém mais devia se lembrar. Examinava com detalhes suas finanças. Mas que diabos! Como ela conseguiu?
Como jornalista, Mikael passara anos buscando informações com diferentes pessoas e por isso era capaz de avaliar profissionalmente a qualidade desse trabalho. Lisbeth Salander era, sem a menor dúvida, um ás da pesquisa. Ele mesmo não se achava capaz de produzir um relatório como aquele, sobre uma pessoa totalmente desconhecida.
Mikael concluiu que não houve razão para que ele e Erika tivessem mantido uma distância polida na frente de Henrik Vanger; ele conhecia muito bem a relação dos dois e o triângulo que formavam com Lars Beckman. Lisbeth Salander também avaliara com espantosa exatidão a situação da Millennium; Henrik Vanger sabia o quanto as coisas iam mal quando entrou em contato com Erika e se ofereceu como sócio. Qual era exatamente o jogo dele?
O caso Wennerström era abordado apenas superficialmente, mas Lisbeth Salander com certeza assistira a algumas audiências no tribunal. Ela também comentava a estranha recusa de Mikael em se pronunciar durante o processo. Uma garota esperta, seja ela quem for.
Um segundo depois, Mikael ficou estarrecido, sem acreditar no que lia. Lisbeth Salander escrevera um breve texto sobre como vira a sequência de acontecimentos depois do processo. Reproduzia quase literalmente o comunicado de imprensa que ele e Erika enviaram quando ele deixou o cargo de editor responsável da Millennium.
Lisbeth Salander teria usado o rascunho original dele? Ele olhou outra vez a primeira página do relatório. A data era anterior ao comunicado à imprensa, três dias antes de Mikael Blomkvist receber sua sentença. Impossível.
Até então o comunicado só existia num único lugar do mundo: no computador de Mikael. Em seu notebook pessoal, não no computador que ele usava na redação. O texto nunca fora impresso. A própria Erika Berger não tinha uma cópia dele, embora os dois tivessem discutido em linhas gerais o assunto.
Mikael Blomkvist pousou lentamente o relatório que Lisbeth Salander fizera sobre ele. Decidiu não fumar mais um cigarro. Em vez disso, pôs um blusão e saiu na noite clara, uma semana antes do solstício de verão. Seguiu pela praia ao longo do canal, passou em frente da casa de Cecilia Vanger, depois diante do luxuoso iate ancorado defronte à casa de Martin Vanger. Caminhava devagar e refletia. Por fim, sentou-se numa pedra e olhou as luzes das balizas piscando na baía de Hedestad. Só havia uma conclusão possível.
Você entrou no meu computador, senhorita Salander, disse a si mesmo em voz alta. Você é uma hacker fodida!
18. QUARTA-FEIRA 18 DE JUNHO
Lisbeth Salander emergiu sobressaltada de um sono sem sonhos. Sentia uma ligeira náusea. Não precisou virar a cabeça para saber que Mimmi já fora trabalhar, mas o cheiro dela permanecia no ar confinado do quarto. Havia bebido cerveja demais na reunião de terça à noite no Moulin com as Evil Fingers. Pouco antes de o bar fechar, Mimmi aparecera e a acompanhara até sua casa e até sua cama.
Ao contrário de Mimmi, Lisbeth Salander nunca se considerou uma autêntica lésbica. Nunca se preocupou em saber se era hétero, homo ou talvez bissexual. De modo geral, dava pouca importância a rótulos e achava que não competia a ninguém saber com quem ela passava a noite. Se fosse absolutamente necessário escolher, sua preferência sexual seria os rapazes — pelo menos eles lideravam as estatísticas. O único problema era encontrar um que não fosse um debilóide e fosse bom de cama, e Mimmi representava uma boa solução-tampão, capaz de mantê-la acesa. Ela a conhecera um ano antes numa barraca de cerveja da festa do Orgulho Gay, e fora a única pessoa que Lisbeth tinha apresentado às Evil Fingers. A relação se manteve com altos e baixos ao longo do ano, mas ainda não ia além de um passatempo para ambas. Mimmi era um corpo gostoso junto ao qual Lisbeth podia se aquecer, e também um ser humano em cuja companhia era bom acordar de manhã e fazer o desjejum.
O relógio na mesa-de-cabeceira indicava nove e meia e ela se perguntava o que a fizera acordar, quando a campainha da porta tocou de novo. Atônita, sentou-se na cama. Ninguém jamais tocava a sua campainha àquela hora da manhã. Aliás, quase ninguém tocava a sua campainha. Ainda sonolenta, enrolou-se no lençol e foi cambaleando até o vestíbulo para abrir a porta. Viu-se cara a cara com Mikael Blomkvist, sentiu o pânico invadir seu corpo e sem querer deu um passo para trás.
— Bom dia, senhorita Salander — ele saudou cordialmente. — Vejo que a noite foi movimentada. Posso entrar?
Sem esperar ser convidado, ele passou pela porta e a fechou atrás de si. Contemplou com curiosidade as roupas espalhadas no chão do vestíbulo, as pilhas de jornais, e lançou um olhar pela porta do quarto, enquanto o mundo de Lisbeth Salander parecia oscilar — quem, o quê, como? Mikael Blomkvist divertia-se com o olhar espantado dela.
— Como achei que você ainda não havia tomado o café-da-manhã, trouxe uns sanduíches. Um de rosbife, um de peru com mostarda de Dijon e um vegetariano com abacate. Não sei qual você prefere. O de rosbife? — Ele desapareceu na cozinha e logo encontrou a cafeteira elétrica. — Onde guarda o café? — perguntou. Salander permaneceu como que paralisada no vestíbulo até ouvir a torneira ser aberta. Deu três passos rápidos.