— Pare! — Percebeu que dera um grito e baixou o tom. — Não pode ir entrando assim na casa das pessoas, porra! Aqui não é a sua casa. Nós nem nos conhecemos.
Mikael Blomkvist parou de pôr água na cafeteira e virou a cabeça na direção dela. Respondeu com uma voz grave.
— Negativo! Você me conhece melhor que a maioria das pessoas. Não é mesmo?
E virou-se para continuar enchendo a cafeteira com água. Depois começou a abrir as portas do armário da cozinha.
— Aliás, eu sei como você faz. Conheço os seus segredos.
Lisbeth Salander fechou os olhos e quis que o chão se abrisse sob seus pés. Sentia-se num estado de paralisia mental. Estava com a boca seca. A situação era irreal e seu cérebro recusava-se a funcionar. Nunca antes havia estado face a face com um de seus objetos de investigação. Ele sabe onde eu moro! Ele estava em sua cozinha. Impossível! Isso não podia estar acontecendo. Ele sabe quem eu sou!
De repente ela se deu conta de que o lençol escorregara e o apertou ainda mais em volta do corpo. Ele disse alguma coisa que ela no começo não entendeu.
— Eu e você precisamos conversar — ele repetiu. — Mas tenho a impressão de que primeiro você precisa tomar um banho.
Ela tentou se expressar de modo coerente.
— Olha aqui, se veio criar problema, não é comigo que deve falar. Fiz um trabalho. Vá discutir com o meu chefe.
Ele se plantou diante dela e levantou as mãos, com as palmas à vista. Não estou armado. Um sinal de paz universal.
— Já falei com Dragan Armanskij. Aliás, ele pediu para você ligar, mas você não respondeu à chamada dele no celular ontem à noite.
Ele se aproximou. Ela não se sentiu ameaçada, mas recuou alguns centímetros quando ele roçou em seu braço e indicou a porta do banheiro. Não gostava de que a tocassem sem autorização, mesmo com intenção amistosa.
— Não vim criar problema — disse ele com uma voz calma. — Mas preciso muito falar com você. Assim que tiver despertado, é claro. O café estará pronto quando estiver vestida. Vamos, vá tomar seu banho.
Ela obedeceu passivamente. Lisbeth Salander nunca é passiva, pensou.
No banheiro, ela se apoiou contra a porta e tentou juntar os pensamentos. Estava mais abalada do que achava que devia ficar. Depois, lentamente tomou consciência de que sua bexiga estava a ponto de explodir e de que um banho não era apenas um bom conselho mas uma necessidade após a noite agitada. Quanto terminou, entrou no quarto, vestiu uma calcinha, um jeans e uma camiseta com a inscrição Armageddon was yesterday — today we have a serious problem.
Após um segundo de reflexão, pegou a jaqueta de couro que deixara sobre uma cadeira. Tirou do bolso o bastão elétrico, verificou se estava carregado e o colocou no bolso de trás do jeans. Um cheiro de café se espalhou pelo apartamento. Ela respirou fundo e voltou para a cozinha.
— Nunca limpa a casa? — perguntou Mikael em tom brincalhão.
Ele havia posto toda a louça suja na pia, esvaziado os cinzeiros, jogado fora as caixas de leite vazias, limpado a mesa atulhada de jornais de cinco semanas, distribuído nela as xícaras e — viu que não tinha sido brincadeira — os sanduíches prontos. Pareciam apetitosos e Lisbeth realmente tinha fome depois da noite com Mimmi. Está bem, veremos aonde tudo isso vai levar. Ela se instalou diante dele, com um pé atrás.
— Não respondeu à minha pergunta. Rosbife, peru ou vegetariano?
— Rosbife.
— Fico então com o de peru.
Comeram em silêncio, observando-se mutuamente. Quando ela terminou o sanduíche, devorou também a metade do vegetariano. Encontrou um maço de cigarros amarrotado na beirada da janela e tirou um de lá.
Ele rompeu o silêncio.
— Talvez eu não seja tão bom como você em investigações pessoais, mas noto que não é nem vegetariana nem — como pensava Dirch Frode — anoréxica. Vou incluir esses dados no meu relatório a seu respeito.
Salander o encarou, mas ao ver sua expressão percebeu que ele estava brincando com ela. Parecia divertir-se tanto que ela não pôde deixar de retribuir com um sorriso de esguelha. A situação era absurda. Ela afastou o prato. Os olhos desse cara eram amistosos. Concluiu, por fim, que não era um mau sujeito. A investigação que ela fizera também não dava a entender que fosse um cafajeste pronto para espancar suas companheiras, ou coisa do gênero. Lembrou que ela é que sabia tudo a respeito dele — não o contrário. Conhecimento é poder.
Do que está rindo? — ela perguntou.
— Desculpe. É que não imaginei que fosse ser assim. Não tinha a intenção de assustá-la, mas foi o que aconteceu. Precisava ter visto a sua cara quando abriu a porta. Impagável. Não resisti à tentação de brincar um pouco com você.
Silêncio. Para a sua grande surpresa, Lisbeth Salander achou aceitável, de repente, a companhia daquele intruso — ou pelo menos não desagradável.
— Considere que me vinguei por você ter vasculhado a minha vida — disse ele num tom alegre. — Está com medo de mim?
— Não — respondeu Salander.
— Melhor. Não estou aqui para lhe fazer mal nem para criar problemas.
— Se tentar me tocar, eu lhe farei muito mal. Sério.
Mikael a observou. Ela media pouco mais de um metro e meio e parecia não ter como se defender se ele fosse um malfeitor que tivesse entrado em seu apartamento. Mas os olhos dela eram inexpressivos e calmos.
— Não será necessário — ele disse por fim. — Minhas intenções são boas. Preciso falar com você. Se quiser que eu vá embora, é só dizer. — Refletiu um segundo. — E curioso, tenho a impressão de... não, nada — ele se interrompeu.
— Diga.
— Não sei se o que vou dizer faz sentido, mas há quatro dias eu nem sabia da sua existência. Depois li a avaliação que você fez de mim — remexeu dentro da bolsa e encontrou o relatório —, o que não foi exatamente uma leitura divertida.
Calou-se e olhou um momento pela janela.
— Será que posso filar um cigarro seu? — Ela empurrou o maço na direção dele.
— Você disse agora há pouco que não nos conhecíamos e eu respondi que não era verdade. — Ele mostrou o relatório. — Ainda não alcancei você, fiz apenas algumas checagens de rotina para saber seu endereço, data de nascimento, estado civil et cetera. Mas você sabe muito a meu respeito. Boa parte são coisas pessoais que só meus amigos íntimos conhecem. E agora eu estou aqui na sua cozinha, comendo sanduíches com você. Faz meia hora que nos conhecemos e tenho a sensação de que nos conhecemos há anos. Entende o que quero dizer?
Ela assentiu com a cabeça.
— Você tem olhos lindos — ele disse.
— Você tem olhos gentis — ela respondeu.
Ele não conseguiu definir se era uma ironia.
Silêncio.
— O que está fazendo aqui? — ela perguntou.
Super-Blomkvist — o apelido lhe ocorreu e ela conteve o impulso de dizê-lo em voz alta — assumiu de repente um ar sério. Ela captou cansaço em seu olhar. A segurança que demonstrara ao entrar no apartamento dela havia desaparecido e ela concluiu que as brincadeiras tinham acabado ou pelo menos estavam suspensas. Pela primeira vez, sentiu que ele a examinava com intensidade e reflexão. Não conseguiu imaginar o que se passava na cabeça dele, mas sentiu imediatamente que a visita adquiria um tom mais sério.
Lisbeth Salander tinha consciência de que sua calma era apenas aparente. Ela não controlava de fato seus nervos. A visita inesperada de Blomkvist mexera com ela de um modo que nunca sentira antes em seu trabalho. Ganhava a vida espionando as pessoas. Na realidade, nunca classificara o que fazia para Dragan Armanskij como um trabalho de verdade, e sim como um passatempo complexo, quase um hobby.