Ele mal ouvia, com o pensamento em Rakoczy, em Teerã, em McIver, e no próximo passo.
A estrada descia em curvas. Diminuiu a velocidade e passou a dirigir com mais cuidado, vendo algum tráfego pelo retrovisor. Logo atrás havia um carro de passageiros, superlotado como sempre, e o motorista dirigia perto demais, depressa demais e com a mão permanentemente na buzina, mesmo quando era impossível sair da frente. Erikki fechou os ouvidos à impaciência, com a qual ele nunca se acostumara, nem à maneira imprudente dos iranianos dirigirem, até mesmo Azadeh. Fez a curva seguinte com a inclinação mais acentuada, e mais à frente, não muito longe, viu um caminhão cheio de carga subindo e um carro ultrapassando-o pela contramão. Freou, apertando-se contra a encosta. Nesse momento, o carro atrás dele acelerou, passou por ele tocando a buzina, ultrapassando-o sem olhar, saindo pela contramão. Os dois carros bateram e ambos caíram no precipício de 150 metros de altura, pegando fogo. Erikki encostou ainda mais e parou. O caminhão não parou, apenas continuou subindo a montanha como se nada tivesse acontecido e os outros carros fizeram o mesmo.
Ele chegou na beirada e olhou para o vale lá embaixo. Destroços dos carros, ainda incendiando, espalhavam-se pela encosta a duzentos metros, sem possibilidade de haver sobreviventes, e sem nenhuma chance de se descer até lá sem equipamento adequado. Quando voltou para o carro, sacudiu a cabeça com tristeza.
— Insha'Allah, meu querido — disse Azadeh, calmamente. — Foi a Vontade de Deus.
— Não, não foi, foi pura estupidez.
— É claro que você tem razão, querido, foi certamente estupidez — disse imediatamente, na sua voz mais apaziguadora, vendo sua raiva e não entendendo, como não entendia muito do que se passava pela cabeça desse homem estranho que era seu marido. — Você tem toda a razão, Erikki. Foi pura estupidez, mas foi pela Vontade de Deus que a estupidez desses motoristas causou-lhes a morte e daqueles que viajavam com eles. Foi a Vontade de Deus ou a estrada estaria livre. Você tem toda a razão.
— Tenho mesmo? — disse, cansado.
— É claro que sim, Erikki. Toda a razão.
Prosseguiram. As aldeias que ficavam à beira da estrada ou que eram cortadas por ela, eram pobres ou muito pobres, com ruazinhas de terra, choupanas e casas toscas, altos muros, algumas mesquitas sem vida, lojinhas de rua, cabras, ovelhas e galinhas, e as moscas, que ainda não eram a praga em que se tornavam no verão. Havia sempre lixo nas ruas e nos joub — os fossos — e as inevitáveis matilhas de cães sarnentos, abandonados, freqüentemente raivosos. Mas a neve tornava a paisagem e as montanhas pitorescas, e o dia continuou a ser bom, embora frio, com o céu azul e nuvens se formando.
Dentro do Range Rover estava quente e confortável. Azadeh usava uma roupa de esqui acolchoada e um suéter de cashmere por baixo, do mesmo tom de azul, botas curtas. Ela tinha tirado a jaqueta e o gorro de esqui, e seus cabelos cheios, naturalmente escuros e ondulados, caíam-lhe pelos ombros. Perto do meio-dia, pararam para almoçar ao lado de um riacho. No começo da tarde, viajaram através de plantações de maçã, pêra e cereja, no momento desfolhadas e nuas, depois chegaram aos arredores de Qazvin, uma cidade de uns 150 mil habitantes e muitas mesquitas.
— Quantas mesquitas existem ao todo no Irã, Azadeh? — perguntou.
— Uma vez eu ouvi dizer que eram vinte mil — respondeu sonolenta, abrindo os olhos e espiando à sua frente. — Ah, Qazvin! Você fez um bom tempo, Erikki! — Bocejou, ajeitou-se mais confortavelmente e voltou a cochilar. — Há vinte mil mesquitas e cinqüenta mil mulás, segundo dizem. Neste ritmo estaremos em Teerã dentro de duas horas...
Ele sorriu quando ela tornou a cochilar. Estava se sentindo mais seguro agora, satisfeito por já ter vencido a maior parte da viagem. Depois de Qazvin a estrada era boa até Teerã. Em Teerã, Abdullah Khan tinha muitas casas e apartamentos, a maioria alugados para estrangeiros. Alguns, reservava para uso próprio e de sua família, e dissera a Erikki que, desta vez, por causa dos distúrbios, eles podiam ficar num apartamento não muito distante do de McIver.
— Obrigado, muito obrigado — agradecera Erikki e, mais tarde, Azadeh comentara:
— Não sei por que ele foi tão gentil. Não... não é típico dele. Ele odeia você e me odeia por mais que tente agradá-lo.
— Ele não odeia você, Azadeh.
— Peço desculpas por discordar de você, mas ele me odeia. Vou lhe dizer mais uma vez, meu querido, foi minha irmã mais velha, Najoud, quem realmente o envenenou contra mim e contra meu irmão. Ela e o seu maldito marido. Não se esqueça de que minha mãe era a segunda esposa do meu pai, tinha quase a metade da idade da mãe de Najoud e era duas vezes mais bonita e apesar de minha mãe ter morrido quando eu tinha sete anos, Najoud ainda guarda o veneno, não na nossa frente, é claro, ela é muito esperta para isso. Erikki, você não imagina como as mulheres iranianas podem ser sutis, enganadoras e poderosas, ou o quanto podem ser vingativas sob uma aparência tão doce. Najoud é pior do que a serpente do jardim do Éden! Ela é a causa de toda a inimizade. — Seus lindos olhos azuis esverdeados encheram-se de lágrimas. — Quando eu era pequena, meu pai nos amava de verdade, ao meu irmão Hakim e a mim, e nós éramos os seus favoritos. Ele passava mais tempo conosco, na nossa casa, do que no palácio. Então, quando mamãe morreu, fomos morar no palácio, mas nenhum dos nossos meios-irmãos e irmãs gostavam realmente de nós. Quando fomos para o palácio, Erikki, tudo mudou. Foi Najoud.
— Azadeh, você se acaba com esse ódio. É você quem sofre e não ela. Esqueça-a. Agora, ela não tem mais nenhum poder sobre você e vou-lhe dizer mais uma vez: você não tem nenhuma prova.
— Não preciso de provas. Eu sei. E nunca vou esquecer.
Erikki não respondeu. Não havia sentido em discutir, em remexer no que fora a causa de muita violência e muitas lágrimas. É melhor botar para fora do que guardar, é melhor deixá-la enfurecer-se de vez em quando.
A estrada agora deixava os campos e entrava em Qazvin, uma cidade igual a muitas outras cidades iranianas, barulhenta, abafada, suja, poluída e engarrafada. Ao lado da estrada ficavam os joub que contornavam a maioria das estradas do Irã. Aqui, os fossos tinham um metro de profundidade, com partes de concreto, e com lama, gelo e água escorrendo por eles. Árvores cresciam lá dentro, as pessoas lavavam suas roupas neles, às vezes os usavam como reservatório de água para beber, ou como esgoto. Depois dos fossos, começavam os muros. Muros que escondiam casas ou jardins, grandes ou pequenos, ricos ou miseráveis. Nas cidades, as casas em geral tinham dois andares, eram sem graça, com a forma de um caixote, algumas de tijolo, outras de argila, algumas com reboco, mas quase todas escondidas. A maioria tinha chão de terra, poucas possuíam água corrente, eletricidade e algum tipo de instalação sanitária.
O tráfego aumentou com uma rapidez espantosa. Bicicletas, motocicletas, ônibus, caminhões, carros de todos os tamanhos, marcas e idades, desde os mais novos até os mais velhos, quase todos amassados, alguns decorados com pinturas de várias cores e pequenas luzes, de acordo com a fantasia do dono. Erikki passara diversas vezes por ali, nos últimos anos, e conhecia todos os locais de engarrafamento possíveis. Mas não havia nenhum outro caminho, nenhum desvio contornando a cidade, embora houvesse um antigo plano para isso. Sorriu desdenhosamente, tentando ignorar o ruído, e pensou: Nunca farão esse desvio, os moradores não agüentariam o silêncio. Os habitantes de Qazvin e de Rasht, no mar Cáspio, eram alvos de muitas piadas iranianas.
Desviou-se de um destroço queimado, depois colocou uma fita cassete de Beethoven e aumentou o volume para abafar o barulho. Mas não adiantou muito.
— Este tráfego está pior do que o normal! Onde está a polícia? — disse Azadeh, agora totalmente desperta. — Você está com sede?