— Meu marido não fala farsi — acrescentou Azadeh, depois de traduzir.
— Como podemos ter certeza disso? E como vamos saber se vocês são mesmo casados? Onde está a certidão de casamento?
— Não está comigo. Na minha carteira de identidade está escrito que eu sou casada.
— Mas esta carteira é do tempo do xá. Uma carteira ilegal. Onde está sua carteira nova?
— Uma carteira dada por quem? Assinada por quem? — retrucou agressivamente. — Devolva os nossos documentos e nos deixe passar!
A firmeza dela perturbou-os. O homem hesitou.
— Você deve compreender que há muitos espiões e inimigos do povo que precisam ser apanhados...
Erikki podia sentir o coração batendo. Caras fechadas, pessoas da Idade Média. Feias. Mais homens se juntaram ao grupo que estava em volta deles. Um deles acenou raivosa e barulhentamente para os carros e caminhões que estavam atrás, mandando-os passar para serem examinados. Ninguém buzinava. Todo mundo esperava pacientemente a sua vez. E por cima de todo o barulho do tráfego, crescia um pavor silencioso.
— O que está havendo aqui? — Um homem atarracado abriu caminho através da multidão. Os outros lhe deram passagem respeitosamente. Sobre o ombro, trazia uma metralhadora tcheca. O outro explicou e entregou-lhe os papéis. O rosto do homem atarracado era redondo e barbado, seus olhos escuros e suas roupas pobres e sujas. Um tiro foi disparado de repente e todas as cabeças se viraram para a campina.
Um homem estava caído no chão ao lado de um carro pequeno que tinha sido retirado da estrada. Um dos rebeldes debruçava-se sobre ele com uma automática na mão. O outro passageiro fora empurrado contra o carro, com as mãos em cima da cabeça. De repente, ele conseguiu se livrar e correu. O homem que tinha a arma levantou-a e atirou, errou e tornou a atirar. Desta vez o homem que corria gritou e caiu, gemendo em agonia, tentando se arrastar, sem poder mais mexer com as pernas. Lentamente, o homem com o revólver foi até lá, esvaziou o tambor em cima dele, matando-o aos poucos.
— Ahmed! — gritou o homem atarracado. — Por que desperdiçar balas quando podia fazer isso com suas botas? Quem são eles?
— Savak! — Um murmúrio de satisfação percorreu a multidão e os aldeões, e alguém bateu palmas.
— Idiota! Então por que matá-los tão depressa? Traga-me os papéis deles.
— Os cães tinham papéis dizendo que eram negociantes de Teerã, mas eu conheço um Savak quando o vejo. Você quer os papéis falsos?
— Não. Rasgue-os. — O homem atarracado tornou a virar-se para Erikki e Azadeh. — É assim que os inimigos do povo serão exterminados.
Ela não respondeu. As identidades deles estavam naquelas mãos pegajosas, E se os nossos papéis também forem considerados falsos? Insha'Allah!
Quando o homem atarracado terminou de examinar as identidades, ele encarou Erikki. Depois a ela.
— Você afirma ser Azadeh Gorgon Yokkonen... mulher dele?
— Sim.
— Ótimo. — Ele enfiou as identidades deles no bolso e fez um sinal com o polegar em direção à campina. — Diga a ele para guiar até lá. Vamos revistar o carro.
— Mas o...
— Faça isso. AGORA! — O homem atarracado subiu no pára-lama, com as botas arranhando a pintura. — O que é aquilo? — perguntou, apontando para a cruz azul sobre fundo branco que estava pintada no teto.
— É a bandeira finlandesa — disse Azadeh. — Meu marido é finlandês.
— Por que ela está lá?
— Porque ele gosta.
O homem atarracado cuspiu, depois tornou a apontar na direção da campina.
— Depressa! Para lá. — Quando chegaram num lugar vazio, com a multidão atrás, ele desceu. — Fora. Quero revistar o carro para ver se tem armas e contrabando.
— Nós não temos nem armas nem...
— Fora! E você, mulher, guarde a língua! — As velhas da multidão o apoiaram. Ele fez um sinal, iradamente, para os dois corpos abandonados na lama. — A justiça do povo é rápida e definitiva, não se esqueça disso. — Apontou para Erikki. — Diga ao gigante do seu marido o que eu falei. Se é que ele é seu marido.
— Erikki, ele está dizendo que a justiça... que a justiça do povoe rápida c definitiva e que não se esqueça disso. Tome cuidado, meu querido. Nós, nós temos que sair do carro. Eles querem revistá-lo.
— Está bem. Mas saia pelo meu lado.
Elevando-se acima da multidão, Erikki saiu. Protetoramente, pôs o braço em volta dela, com homens, mulheres e algumas crianças cercando-os, deixando-lhes pouco espaço. O fedor de corpos sujos era esmagador. Ele podia senti-la tremer, por mais que tentasse ocultá-lo. Juntos, viram o homem atarracado e outros subirem no carro impecável, pisando nos assentos com suas botas enlameadas. Outros destrancaram a porta de trás, tirando e espalhando negligentemente as coisas deles, mãos sujas mexendo em bolsos, abrindo tudo — as malas dele e as dela. Então um dos homens exibiu as roupas de baixo e as camisolas finas de Azadeh para os assovios e zombarias da multidão. As velhas resmungaram sua desaprovação. Uma delas esticou a mão e tocou-lhe o cabelo. Azadeh recuou mas os que estavam atrás não se afastaram. Imediatamente, Erikki se moveu para ajudar, mas a massa não saiu do lugar, embora os que estavam perto dele tenham gritado, quase esmagados, e seus gritos enfureceram os outros que se aproximaram ainda mais, ameaçadoramente, gritando com ele.
De repente, Erikki percebeu, pela primeira vez, que não podia proteger Azadeh. Sabia que podia matar uma dúzia antes que o dominassem e o matassem, mas isso não a protegeria.
Isso o abalou profundamente.
Suas pernas ficaram fracas e ele sentiu uma vontade incontrolável de urinar, o cheiro do seu próprio medo o sufocou e teve que lutar contra o pânico que o invadia. Entorpecido, observou seus pertences serem profanados. Alguns homens se afastavam com os galões de gasolina que eram vitais para eles, sem os quais nunca chegariam a Teerã, uma vez que todos os postos de gasolina estavam em greve. Tentou obrigar as pernas a se mexerem, mas elas não funcionaram, nem sua boca. Então uma das velhas gritou com Azadeh que sacudiu a cabeça como se estivesse tonta, e os homens gritaram junto, empurrando-os, fechando o cerco em volta deles, com seu cheiro fétido enchendo-lhes as narinas, os ouvidos dele entupidos de farsi.
O braço de Erikki ainda estava em volta dela, e no meio do barulho Azadeh olhou para cima e ele percebeu o seu terror, mas não conseguiu ouvir o que ela estava dizendo. Novamente tentou abrir mais espaço para os dois, mas tornou a fracassar. Desesperado, procurou conter o pânico selvagem, claustrofóbico e o desejo crescente de lutar que estavam começando a tomar conta dele, sabendo que se começasse, isso iniciaria o tumulto que os destruiria. Mas não pôde conter-se e atacou cegamente com o cotovelo livre, no exato momento em que uma camponesa robusta, com olhos estranhos e raivosos abriu caminho pela multidão e atirou o chador no peito de Azadeh, despejando um paroxismo de farsi em cima dela, distraindo a atenção do homem que caíra atrás dele, e que agora estava deitado sob seus pés, com o peito amassado pelo golpe de Erikki.
A multidão berrava com ela e com ele, dizendo a ela para pôr o chador, e Azadeh gritava: — Não, não, deixem-me me paz... — completamente desorientada. Durante toda a sua vida, nunca fora ameaçada daquela maneira, nunca estivera no meio de uma multidão como aquela, nunca estivera tão perto de camponeses, nem nunca sentira tanta hostilidade.
— Vista-o, meretriz...
— Em nome de Deus, vista o chador...
— Não em nome de Deus, mulher, em nome do povo...
— Deus é grande, obedeça a palavra...
— Dane-se Deus, em nome da revolução...
— Cubra seu cabelo, rameira e filha de uma rameira...
— Obedeça ao Profeta cujo nome seja louvado...