Ela contemplava-o em silêncio, pensando: "Uma parte de mim está deitada naquela cama, sofrendo, aprisionada". Eles estavam ligados um ao outro. Ela teria dado tudo para salvar Toby, para salvar a si mesma, mas sabia que era impossível. Dessa vez era.
Os telefones tocavam constantemente, como uma reprise daqueles outros telefonemas, daquelas outras ofertas de solidariedade. Mas um dos telefonemas era diferente, o de David Kenyon. "Só quero que você saiba que para tudo que eu puder fazer, seja o que for, estarei às ordens."
Jill pensou nele, alto, bonito e forte ─ e pensou na criatura deformada no quarto ao lado.
─ Obrigada, David, fico-lhe grata. Mas não há nada, não por enquanto.
─ Há bons médicos em Houston ─ disse ele. ─ Dos melhores do mundo. Posso mandá-los ver Toby.
Jill sentiu um aperto na garganta. Oh, que vontade de pedir a David que viesse para junto dela, que a levasse daquele lugar!
Mas não podia. Estava ligada a Toby e sabia que jamais poderia deixá-lo.
Não enquanto ele vivesse.
O Dr. Kaplan terminara de examinar Toby e Jill esperava por ele na biblioteca. Virou-se para olhá-lo quando o doutor atravessou a porta. Ele falou, numa tentativa de humor.
─ Bem, Jill, tenho boas e más notícias.
─ Conte-me primeiro as más.
─ Receio que o sistema nervoso de Toby esteja lesado demais para permitir uma reabilitação. Isso está fora de dúvida. Desta vez não será possíveclass="underline" ele jamais andará ou falará de novo.
Ela o encarou por muito tempo e então perguntou:
─ E quais são as boas notícias?
O Dr. Kaplan sorriu:
─ O coração de Toby é surpreendentemente forte. Com o cuidado adequado, poderá viver por mais vinte anos.
Jill olhou-o estupefata. Vinte anos. Era essa a boa notícia! Pensou em si própria, atrelada à horrível gárgula no andar de cima, aprisionada num pesadelo para o qual não havia saída. Jamais poderia separar-se de Toby enquanto ele vivesse. Porque ninguém compreenderia. Ela era a heroína que salvara a vida dele e todos se sentiriam traídos, enganados, se agora o abandonasse.
Até mesmo David Kenyon.
Ele telefonava todos os dias agora. Falava da lealdade e do maravilhoso desprendimento de Jill, e ambos sentiam a profunda corrente emocional que fluía entre eles.
A frase jamais dita era: "Quando Toby morrer".
33
As enfermeiras revezavam-se em turnos, cuidando de Toby durante as vinte e quatro horas do dia; eram objetivas e eficientes como máquinas, totalmente impessoais. Jill dava graças pela presença delas, pois não agüentava aproximar-se de Toby. Sentia repulsa à visão daquela pavorosa máscara distorcida. Arranjava desculpa para ficar longe do quarto. Quando se obrigava a chegar perto dele, imediatamente percebia uma mudança em Toby, até mesmo as enfermeiras o notavam. Ele permanecia imóvel, impotente, aprisionado em sua gaiola espástica. Mas, no momento em que Jill entrava na sala, aqueles brilhantes olhos azuis punham-se a luzir de vitalidade. Jill podia ler os pensamentos de Toby tão claramente como se ele estivesse falando. "Não me deixe morrer. Ajude-me. Ajude-me!"
Jill ficava olhando o corpo destroçado e pensava: "Não posso ajudar você. Você não quer viver assim. Você quer morrer".
A idéia começou a tomar corpo em Jill.
Os jornais estavam cheios de histórias sobre maridos cujas esposas livravam-nos do sofrimento. Até mesmo certos médicos admitiam que às vezes deixavam morrer determinados pacientes. Chamava-se eutanásia. Assassinato por misericórdia. Mas Jill sabia que também podia ser considerado crime, mesmo se tudo que restava de vida em Toby fossem aqueles malditos olhos que não deixavam de segui-la por toda a parte.
Nas semanas que se seguiram, Jill não saiu de casa. Passou a maior parte do tempo em seu quarto, fechada. As dores de cabeça voltaram e ela não conseguia alivio.
Os jornais e revistas contavam as humanas histórias do astro paralítico e sua devotada esposa, que antes cuidara dele até curá-lo. Todos especulavam sobre a possibilidade de Jill repetir o milagre, mas ela sabia que não haveria mais nenhum milagre. Toby jamais se recuperaria.
"Vinte anos", dissera o Dr. Kaplan. E David estava lá fora esperando por ela. Tinha de achar um meio de escapar da prisão.
Tudo começou num sombrio e deprimente domingo. Chovera a manhã toda e a chuva continuara pelo dia afora, batendo no telhado e nas janelas da casa até Jill pensar que iria enlouquecer. Estava em seu quarto, lendo, tentando não ouvir o odioso tamborilar da chuva, quando a enfermeira da noite entrou. Seu nome era Ingrid Johnson, uma mulher formal, de tipo nórdico.
─ O fogão lá de cima não está funcionando ─ avisou ela. ─ Terei de preparar o jantar do Sr. Temple na cozinha. Poderia ficar com ele alguns minutos?
Jill percebeu a reprovação no tom da enfermeira, que achava estranho uma esposa não se aproximar do marido acamado.
─ Cuidarei dele ─ disse Jill.
Deixou o livro e atravessou o corredor em direção ao quarto de Toby; logo que entrou, suas narinas foram invadidas pelo cheiro familiar de doença. Num instante, todas as fibras de seu ser foram tomadas por lembranças daqueles longos e terríveis meses durante os quais lutara para salvar Toby.
Ele estava recostado num grande travesseiro. Ao ver Jill, seus olhos se iluminaram, lançando mensagens de desespero. "Onde você esteve? Por que tem de ficar longe de mim? Preciso de você. Ajude-me!" Era como seus olhos fossem dotados de voz. Jill olhou para o repelente corpo deformado, com aquela sorridente máscara da morte, e sentiu-se nauseada. "Você nunca vai ficar bom, maldito! Você tem de morrer! Eu quero que você morra!"
Enquanto olhava para Toby, Jill viu a expressão se alterar em seus olhos: o choque e a perplexidade foram gradualmente substituídos por tamanho ódio, tamanha malevolência, que ela involuntariamente recuou um passo. Então compreendeu o que acontecera. Expressara seus pensamentos em voz alta.
Virou-se e saiu correndo do quarto.
Pela manhã, a chuva parou. A velha cadeira de rodas de Toby fora trazida do porão e a enfermeira do dia, Frances Gordon, estava levando o doente para o jardim, onde poderia ficar um pouco ao sol. Jill ouviu o som da cadeira de rodas no corredor, em direção ao elevador; esperou alguns minutos e então desceu. Estava atravessando a biblioteca quando o telefone tocou; era David, falando de Washington.
─ Como está você hoje? ─ perguntou uma voz afetuosa. Jill nunca se sentira tão satisfeita por ouvi-lo quanto nesse momento.
─ Estou bem, David.
─ Gostaria que você estivesse a meu lado, querida.
─ Eu também. Amo-o tanto. Eu quero você. Quero me sentir novamente em seus braços. Oh, David...
Um instinto qualquer fez com que Jill se virasse: Toby estava no corredor, amarrado à sua cadeira de rodas, onde a enfermeira o deixara por um momento. Os olhos azuis luziam em direção a Jill com tanto ódio, tanta malignidade, que foi como um golpe físico. A mente dele falava com ela através dos olhos, gritando para ela: "Eu vou matar você!" Em pânico, ela deixou cair o telefone.
Jill fugiu da sala e subiu, sentindo atrás de si o ódio de Toby, como uma força violenta e maléfica. Ficou o dia todo no quarto, recusando-se a comer. Sentada numa cadeira, num estado quase de transe, sua mente repassando continuamente a cena ao telefone. Toby sabia. Ele sabia. Jamais poderia olhá-lo de frente.
Finalmente a noite chegou. Era julho e o ar ainda conservava o calor do dia. Jill abriu as janelas do quarto para aproveitar qualquer tênue brisa que porventura soprasse.