Aquilo me assustou um pouco, sair andando e deixá-los daquele jeito, porque antes eu nunca tinha ido contra o que os crioulos me ordenavam. Olhei para trás e os vi atrás de mim com a vassoura. Provavelmente teriam entrado direto no dormitório e me apanhado, se não fosse por McMurphy; ele estava lá fazendo tamanha confusão, andando no maior estardalhaço de um lado para o outro entre as camas, batendo com uma toalha nos caras inscritos para irem naquela manhã, que os crioulos chegaram à conclusão de que o dormitório talvez não fosse um território muito seguro para se aventurarem numa incursão apenas para apanharem alguém para varrer um pedacinho de corredor.
McMurphy estava com o seu gorro de motociclista puxado para a frente sobre o cabelo ruivo, para ficar parecido com um comandante de barco, e as tatuagens que apareciam sob a manga da camiseta haviam sido feitas em Cingapura. Andava oscilando pelo chão como se fosse o convés de um navio, assoviando nos dedos como um contramestre de barco.
– Para o convés, marujos, para o convés ou eu faço vocês todos passarem por baixo da quilha de popa à proa!
Bateu na mesinha de cabeceira junto da cama de Harding com as juntas dos dedos.
– Seis batidas de sino e tudo está bem. O barco vai indo firme. Para o convés. "Baixem os seus perus e levantem as meias."
Ele me viu, de pé ali na porta, e veio depressa para bater nas minhas costas como se fossem um tambor.
– Olhem aqui o Grande Chefe; aqui está um exemplo de um bom marinheiro e de um bom pescador: de pé antes de o dia clarear e catando minhocas vermelhas para isca. O resto de vocês, bando miserável de marinheiros-de-água-doce, fariam melhor se seguissem o exemplo dele. Para o convés. Hoje é o dia! Pra fora da cama e pra dentro do mar!
Os Agudos resmungavam e tentavam agarrá-lo e fazê-lo parar com a toalha, e os Crônicos acordaram para olhar em volta com a cabeça azul pela falta de circulação de sangue, cortada pelos lençóis amarrados, apertados demais no peito, olhando em volta no dormitório até que finalmente se concentraram sobre mim com olhares velhos, fracos e lacrimosos, os rostos curiosos e tristonhos. Ficaram deitados ali, observando-me a vestir roupas quentes para a viagem, fazendo-me sentir pouco à vontade e mesmo culpado. Podiam perceber que eu fora destacado como o único Crônico a fazer a viagem. Eles me observaram – homens velhos, soldados em cadeiras de rodas há anos, com sondas descendo-lhes pelas pernas, como vinhas que os enraizassem para o resto de suas vidas exatamente no lugar em que estavam, eles me observavam e sabiam instintivamente que eu iria. E ainda podiam sentir um pouco de ciúmes de que não fossem eles. Podiam perceber, embora uma parte tão grande do homem que havia neles tivesse sido extirpada, que os velhos instintos animais haviam assumido o controle (os Crônicos acordam de repente, em algumas noites, antes que qualquer outra pessoa saiba que um cara morreu no dormitório, e atiram a cabeça para trás e uivam) e podiam ter inveja porque restava neles o suficiente de homem para ainda poderem lembrar.
McMurphy saiu para olhar a lista, voltou e tentou convencer mais um Agudo a assiná-la, de um lado para o outro, chutando as camas em que os caras ainda estavam deitados com os lençóis puxados sobre a cabeça, dizendo-lhes que coisa maravilhosa era estar lá fora com a cara no vento, com um mar agitado, uma âncora levantada bem na hora e uma garrafa de rum.
– Vam'bora, seus vadios, só preciso de mais um marinheiro para completar a tripulação, preciso de um porra de um voluntário…
Mas ele não conseguiu convencer ninguém a aceitar. A Chefona havia assustado o resto deles com suas histórias de como o mar estava agitado ultimamente e de quantos barcos haviam afundado, e não parecia que conseguiríamos aquele último membro da tripulação senão meia hora depois, quando George Sorensen se aproximou de McMurphy na fila do café da manhã, quando esperávamos que o refeitório fosse aberto.
O velho sueco desdentado e nodoso, que os crioulos chamavam de George Dum-Dum, por causa daquela sua mania de higiene, veio arrastando os pés pelo corredor, bem inclinado para trás, de forma que seus pés ficassem bem diante de sua cabeça (ele oscila para trás assim, para manter "o rosto tão afastado quanto possível do homem com quem está falando), parou diante de McMurphy, e resmungou alguma coisa sob a mão. George era muito tímido. Não se podia ver os olhos dele porque ficavam bem fundos sob as sobrancelhas, e ele dobrava a grande palma da mão sobre a maior parte do resto do rosto. A cabeça dele oscilava como um ninho de corvo no topo da sua coluna, que parecia um mastro. Ele resmungou sob a mão até que McMurphy finalmente estendeu o braço e afastou a mão dele, para que as palavras pudessem sair.
– Ora, George, que era que você estava dizendo?
– Minhocas vermelhas – disse ele. – Eu acho que elas não vão servir pra nada… para pescar o chiii-noook.
– Ah, é? – disse McMurphy. – Minhocas vermelhas? Eu talvez concorde com você, George, se me disser o que é que há com essas minhocas vermelhas de que está falando.
– Eu acho que ainda há pouquinho ouvi você dizer que o Sr. Bromden 'tava lá fora catando minhocas vermelhas pra isca.
– É isso mesmo, papai, eu me lembro.
– Assim, só tô- dizendo que você não vai ter nenhuma sorte com essas minhocas: Este mês de agora é o que tem os cardumes de chinooks grandes. O que você precisa é de arenque. Com certeza. Pesque uns arenques com anzol e use eles pra isca, então você vai dar sorte.
A voz dele subia no final de cada frase – sor -te - como se ele estivesse fazendo uma pergunta. O queixo grande, tão esfregado naquela manhã que já estava esfolado, balançava para cima e para baixo, para McMurphy, uma ou duas vezes, então o fez dar meia volta e o levou até o final do corredor em direção ao fim da fila. McMurphy o chamou de volta.
– Ei, espere aqui um minuto, George; você fala como quem conhece alguma coisa sobre esse negócio de pescaria.
George voltou, arrastando os pés, para onde estava McMurphy, inclinando-se tanto para trás que parecia que seus pés haviam saído direto de debaixo dele.
– É claro, cla – ro. Vinte e cinco anos eu trabalhei nas carretilhas de chinooks, desde lá de cima de Half Moon Bay até Puget Sound. Vinte e cinco anos eu pesquei… antes de ficar tão sujo. – Ele estendeu as mãos para que víssemos a sujeira nelas. Todo mundo por perto se inclinou e olhou. Eu não vi a sujeira, mas vi mesmo nas palmas brancas as cicatrizes profundas de puxar milhares de milhas de linha de pesca para fora do mar. Ele nos deixou olhar um minuto, então fechou as mãos, escondeu-as na blusa do pijama, como se pudéssemos sujá-las por olhá-las, e ficou ali sorrindo para McMurphy com as gengivas como carne de porco desbotada na salmoura.
– Eu tinha um bom barco para pesca de anzol, 40 pés apenas, mas fazia 12 nós marítimos e era de teca e carvalho maciço. – Ele se balançou para trás e para frente, de uma maneira que fazia com que a gente duvidasse de que o chão estivesse parado. – Era um bom barco, puxa vida!
Começou a se virar, mas McMurphy tornou a detê-lo.
– Porra, George, por que não disse logo que era pescador? Estive promovendo essa viagem como se eu fosse o Velho Lobo do Mar, mas, cá entre nós, o único barco em que eu já estive foi o navio de guerra Missouri e a única coisa que sei a respeito de peixe é que gosto mais de comê-los que de limpá-los.