Os olhos de McMurphy acompanham tudo. Ele não sai da cadeira. Tem uma expressão perplexa de novo. Deixa-se ficar sentado na cadeira durante algum tempo, observando os Agudos, roçando o baralho para cima e para baixo nas pontas da barba vermelha até o queixo. Afinal, levanta-se da poltrona, boceja, espreguiça-se e coça a barriga com o canto de uma carta. Depois, enfia o baralho no bolso e vai andando até onde está Harding, sozinho, grudado de suor na cadeira.
McMurphy olha para Harding durante um minuto, em seguida lança a manopla sobre o encosto de uma cadeira de pau que estava por perto, vira-a ao contrário, de forma que o encosto fique de frente para Harding, e monta nela como montaria num cavalinho bem pequeno. Harding não se apercebe de nada. McMurphy remexe os bolsos até encontrar os cigarros, tira um e o acende; ele o segura diante de si, franze o cenho para a ponta, lambe o polegar e o indicador e ajeita a brasa ao seu gosto.
Cada um dos homens parece não se dar conta de que o outro está ali. Não sei nem dizer se Harding nota a presença de McMurphy. Harding está com os ombros bem encolhidos em torno de si, como asas verdes, e está sentado muito ereto perto da beirada da cadeira, com as mãos presas entre os joelhos. Olha fixo para a frente, cantarolando baixinho, tentando aparentar calma – mas ele está mascando as bochechas e isto lhe dá um estranho sorriso de caveira que nada tem de calmo.
McMurphy torna a enfiar o cigarro entre os dentes, cruza as mãos sobre o encosto e descansa o queixo sobre elas, fechando um olho por causa da fumaça. Olha para Harding com o outro olho por algum tempo, depois começa a falar, com o cigarro para cima e para baixo entre os lábios.
– Bem, diga lá, companheiro, é desse jeito que essas sessõezinhas costumam ser?
– Costumam ser? – O cantarolar de Harding pára. Não está mais mascando as bochechas, mas ainda olha fixo para frente, para além do ombro de McMurphy.
– Esse é o pro-cedimento habitual para essas festanças de Terapia de Grupo? Um bando de galinhas numa festa de bicadas?
A cabeça de Harding vira com um movimento brusco e seus olhos acham McMurphy, como se fosse a primeira vez que ele percebesse que alguém está sentado a sua frente. Forma-se uma ruga no meio de seu rosto, quando ele volta a morder o lado de dentro das bochechas, e isso faz com que pareça que está sorrindo. Joga os ombros para trás e encosta-se na cadeira, tentando parecer descontraído.
– Uma "festa de bicadas"? Acho que esse seu modo de falar, estranho e caipira, está além da minha compreensão, amigo. Não faço qualquer idéia de sobre o que você está falando.
– Ora, então deixe que eu lhe explique. – McMurphy levanta a voz; embora não olhe para os outros Agudos que o estão ouvindo, atrás dele, é a eles que se dirige. – O bando avista uma mancha de sangue numa galinlia qualquer e todos eles começam a bicá-la, sabe, até que estraçalham a galinha em pedaços, sangue e ossos e penas. Mas normalmente um par das do bando ganha também sua ferida na confusão, então é a vez delas. E mais algumas ficam machucadas e são bicadas até a morte, e mais outras e outras. Ah, uma festa de bicadas pode acabar com o bando inteiro numa questão de horas, companheiro, eu já vi. É uma cena um bocado assustadora. A única maneira de impedi-lo, com as galinhas, é meter antolhos nelas. De forma que não possam ver.
Harding enlaça os dedos longos em torno de um joelho e o puxa para junto do corpo, recostando-se na cadeira.
– Uma festa de bicadas. Esta é realmente uma analogia divertida, meu amigo.
– E é exatamente o que aquela sessão a que eu acabei de assistir me fez lembrar, companheiro, se você quer saber a verdade suja. Lembrou-me um bando de galinhas sujas.
– Assim, isso faz de mim a galinha com a mancha de sangue, amigo?
– Exato, companheiro.
Ainda estão sorrindo um para o outro, mas o tom de suas vozes tornou-se tão baixo e tenso que tenho de ir varrer mais perto deles para poder ouvir. Os outros Agudos também se estão aproximando.
– E quer saber de mais uma coisa, companheiro? Você quer saber quem dá aquela primeira bicada?
Harding espera que ele continue.
– É aquela enfermeira velha, é ela.
Um gemido de medo quebra o silêncio. Ouço a maquinaria nas paredes engrenar. Harding está enfrentando momentos de dificuldade para manter as mãos paradas, mas continua tentando aparentar calma.
– Assim – diz ele – é apenas isso, é estupidamente apenas isso. Você está na nossa enfermaria há seis horas e já simplificou todo o trabalho de Freud, Jung e Maxwell Jones e resumiu tudo numa única analogia: é uma "festa de bicadas".
– Não estou falando em Fred Yoong e Maxwell Jones, companheiro, só estou falando daquela sessãozinha piolhenta e o que aquela enfermeira e esses outros miseráveis fizeram com você. E fizeram dobrado.
– Fizeram comigo?
– É isso mesmo, fizeram. Fizeram com você em todas as oportunidades que tiveram. Fizeram com você do princípio ao fim. Você deve ter feito alguma coisa para ter esse monte de inimigos aqui neste lugar, companheiro, porque parece mesmo que há um monte aí que estava doido pra apanhar você.
– Ora, isto é incrível. Você ignora por completo, não leva em consideração e ignora por completo o fato de que o que eles estavam fazendo hoje era para o meu próprio bem? Que qualquer questão ou discussão levantada pela Srta. Ratched, ou pelo resto do pessoal, é feita exclusivamente por motivos terapêuticos? Você não deve ter ouvido uma palavra da teoria do Dr. Spivey sobre a Comunidade Terapêutica, ou se ouviu, não deve ter tido a educação necessária para compreendê-la. Estou desapontado. Eu havia concluído, pela nossa conversa desta manhã, que você era mais inteligente. Um cabeça-dura, analfabeto, talvez, certamente um fanfarrão caipira com tanta sensibilidade quanto um ganso, mas basicamente inteligente, não obstante tudo isso. Mas, embora eu costume ser observador e introspectivo, ainda cometo erros.
– Vá pro inferno, companheiro.
– Ah, sim; esqueci-me de acrescentar que também notei a sua brutalidade primitiva, esta manhã. Psicopata com tendências sádicas definidas, provavelmente motivadas por uma egomania irracional. Sim. Como você vê, todos esses talentos naturais o qualificam como um terapeuta competente e o tornam bastante capaz para criticar o procedimento da sessão da Srta. Ratched, a despeito do fato de que ela é uma enfermeira psiquiátrica, tida em alta conta, com 20 anos de experiência nesse campo. Sim, com o seu talento, amigo, você poderia fazer milagres subconscientes, acalmar o id dolorido e curar o superego ferido. Você provavelmente poderia obter a cura total da enfermaria inteira, com Vegetais e tudo, em seis meses rapidinhos… senhoras e senhores, ou o seu dinheiro de volta. Em vez de responder ao desafio, McMurphy continuou apenas a olhar para Harding. Finalmente pergunta numa voz controlada:
– E você realmente acredita que aquela baboseira que houve na sessão de hoje está obtendo alguma espécie de cura, fazendo algum tipo de bem?
– Que outra razão nós teríamos para nos submetermos a ela, amigo? O pessoal deseja a nossa cura tanto quanto nós mesmos. Eles não são monstros. A Srta. Ratched pode ser uma senhora de meia-idade bastante severa, mas não é uma espécie qualquer de monstro gigante do clã das galináceas, dada a arrancar nossos olhos sadicamente com bicadas. Você não pode realmente pensar isso a respeito dela, pode?
– Não, companheiro, isso não. Ela não está bicando os seus olhos. Não é isso que ela está bicando.
Harding recua, e vejo suas mãos começarem a se esgueirar para fora, do meio de seus joelhos, como aranhas brancas saindo do meio de dois galhos de árvore cobertos de limo, subindo pelos galhos até o ponto de encontro no tronco.
– Os nossos olhos não? – diz ele. – Diga então, por caridade, onde é que a Srta. Ratched nos está bicando, amigo?
McMurphy sorri.
– Ora, você não sabe, companheiro?
– Não, claro que não! Quero dizer, se você insis…
– Nos seus colhões, companheiro, nos seus queridos colhões.
As aranhas alcançam a junção no tronco e se acomodam ali, contorcendo-se. Harding tenta sorrir, mas seu rosto e os lábios estão tão pálidos que o sorriso se perde. Olha fixo para McMurphy. McMurphy tira o cigarro da boca e repete o que havia dito.
– Bem no seu saco. Não, aquela enfermeira não é nenhuma espécie de galinha-monstro, companheiro, o que ela é, é uma capadora de colhões. Já vi milhares delas, velhas e moças, homens e mulheres. Já vi essa espécie por todo o país. Gente que tenta fazer com que você fique fraco para que possam fazer com que você entre na linha, siga as regras deles, viva como eles querem que você viva. E a melhor maneira de fazer isso, de submeter as pessoas, é enfraquecendo-as, acertando porradas onde mais dói. Alguma vez você já levou uma joelhada no saco numa briga, companheiro? Faz você ficar paralisado e suar frio, não faz? Não há nada pior. Faz você ficar enjoado, tira tudo que é pingo de força que você tiver. Se você estiver enfrentando um cara que quer ganhar fazendo você ficar mais fraco, em vez de ele se fazer mais forte, então fique de olho no joelho dele, ele vai atacar é nos seus colhões. E é isso que aquela velha escrota está fazendo, está atacando os seus colhões.
O rosto de Harding ainda está sem cor, mas ele já conseguiu controlar as mãos; elas se movem com sacudidelas bruscas diante dele, tentando atirar para longe o que McMurphy estava dizendo:
– A nossa querida Srta. Ratched? O nosso doce, sorridente e terno anjo de misericórdia, mãe Ratched, uma capadora de colhões? Ora, amigo, isto é extremamente ridículo.
– Companheiro, não me venha com essa baboseira de mãezinha terna. Ela pode ser uma mãe, mas é grande como um celeiro e dura como uma faca de metal. Ela me enganou com aquela encenação de mãezinha gentil, durante talvez uns três minutos, quando entrei, hoje de manhã, mas não mais do que isso. Não creio que ela tenha realmente enganado algum de vocês por seis meses ou um ano. Que horror! Já vi um bocado de cadelas na minha vida, mas ela ganha de todas disparado.