– Sim, Srta. Ratched – diria McMurphy. – Por quê?
– Se os dormitórios forem deixados abertos, nós já aprendemos por experiências anteriores, vocês todos voltariam para a cama depois do café.
– E isso é um pecado mortal? Quero dizer, gente normal costuma dormir até tarde nos fins de semana.
– Vocês estão aqui neste hospital – dizia ela como se estivesse repetindo aquilo pela centésima vez – por causa da incapacidade comprovada de se ajustarem à sociedade. O médico e eu acreditamos que cada minuto passado na companhia de outras pessoas, com algumas exceções, é terapêutico, enquanto que cada minuto passado remoendo as coisas, sozinhos, apenas aumenta o isolamento de vocês.
– É por essa razão que tem de haver pelo menos oito caras reunidos antes que possam ser levados para fora da ala para a Terapia Ocupacional ou para a Terapia de Psicologia ou para qualquer outra das Terapias?
– Exatamente.
– Quer dizer que é doença querer estar sozinho?
– Eu não disse que…
– Quer dizer que, se eu for ao banheiro para me aliviar, eu devo levar junto pelo menos uns sete companheiros, para me impedirem de ficar remoendo os pensamentos sentado no vaso?
Antes que ela pudesse responder àquilo, Cheswick se levantava de um salto e gritava para ela:
– Sim, é isso o que quer dizer?
E os outros Agudos, sentados ali em volta, participando da sessão, começavam a perguntar:
– Sim, sim, é isso o que quer dizer?
Ela esperava até que todos eles se acalmassem e a sessão ficasse novamente tranqüila. Então, dizia com calma:
– Se vocês puderem acalmar-se o bastante de forma a se comportarem como um grupo de adultos numa discussão, em vez de crianças num playground, perguntaremos ao médico se ele acha que seria benéfico pensarmos numa mudança na rotina. Doutor?
Todo mundo sabia o tipo de resposta que o médico daria e, antes mesmo que ele tivesse uma oportunidade, Cheswick disparava com uma outra reclamação.
– Então como é que ficam os nossos cigarros, Srta. Ratched?
– Sim, como é que ficam? – ecoavam os Agudos. McMurphy virou-se para o médico e fez a pergunta diretamente a ele, dessa vez, antes que a enfermeira tivesse uma oportunidade de responder.
– Sim, doutor, como é que ficam os nossos cigarros? Como é que ela tem o direito de ficar com os nossos cigarros. Nossos cigarros, empilhados na mesa dela como se fosse a dona deles, dando-nos um maço de vez em quando, quando tem vontade. Não gosto muito da idéia de comprar um pacote de cigarros e de ter alguém me dizendo quando é que posso fumá-los.
O médico virou a cabeça de forma a poder olhar para a enfermeira através dos óculos. Ele não sabia que ela se havia apossado dos cigarros extras para acabar com o jogo.
– Que é que há a respeito de cigarros, Srta. Ratched? Não creio que tenha tomado conhecimento…
– Doutor, eu acho que três, quatro e às vezes cinco maços de cigarros por dia são absolutamente demais para um homem fumar. Foi isto que pareceu estar acontecendo na semana passada, depois da chegada do Sr. McMurphy, e foi por isso que eu achei que talvez fosse melhor apreender os pacotes que os homens compram na cantina e distribuir apenas um maço por dia para cada homem.
McMurphy inclinou-se para a frente e cochichou alto para Cheswick:
– Vai ouvir dizer que a próxima decisão dela será a respeito das idas à latrina; não apenas um cara tem de levar sete companheiros para o banheiro junto com ele, mas também está limitado a duas idas por dia, que vão acontecer quando ela disser que pode.
E tornou a se recostar na cadeira e riu tanto que mais ninguém pôde dizer coisa alguma durante quase um minuto.
McMurphy se estava divertindo um bocado com o tumulto todo que estava criando, e acho que fiquei um pouco surpreendido porque ele não estava sendo alvo, também, de muita pressão do pessoal, especialmente surpreendido de que a Chefona não tivesse mais nada a lhe dizer senão o que lhe dizia. "Eu pensei que aquela velha escrota fosse mais dura na queda do que está sendo", disse ele a Harding depois de uma sessão. "Talvez tudo de que ela precisasse para endireitá-la fosse uma boa derrubada. O negócio é que – ele franziu o cenho – ela age como se ainda estivesse com todas as cartas escondidas naquela sua manga branca."
Ele continuou divertindo-se com aquilo, até mais ou menos quarta-feira da semana seguinte. Então descobriu por que a Chefona estava tão segura do seu jogo. Quarta-feira é o dia em que eles carregam todo mundo que não tem nenhum tipo de doença e levam para a piscina, quer a gente queira quer não. Quando a neblina estava ligada na enfermaria, eu costumava esconder-me nela para não ir. A piscina sempre me assustou; eu sempre tive medo de que fosse entrar e perder o pé e me afogar, ser sugado pelo encanamento abaixo e ser lançado no mar. Eu costumava ser um bocado corajoso na água, quando menino, em Columbia; andava pelo andaime em volta da cachoeira, com todos os outros homens, com dificuldade, com a água rugindo numa torrente verde e branca a minha volta, e a névoa fazendo arco-íris, sem nem ao menos ter sapatos de tachas como os outros homens. Mas, quando vi papai começar a ficar com medo das coisas, também fiquei com medo, fiquei de tal maneira que não podia suportar nem um laguinho raso.
Nós saímos do ginásio e a piscina estava ondulante, cheia de homens nus; a algazarra e a gritaria ecoavam no teto alto, como sempre acontece em piscinas cobertas. Os crioulos nos levaram lá para dentro. A água estava morna, agradável, mas eu não queria afastar-me da borda (os crioulos andam pela borda com longos bastões de bambu para afastar da beirada quem tenta agarrar-se nela). Assim, fiquei perto de McMurphy, porque eu sabia que eles não tentariam fazê-lo ir para o fundo se ele não quisesse.
Ele conversava com o salva-vidas, eu fiquei de pé a pouca distância. McMurphy devia estar num buraco porque tinha de agitar as pernas para flutuar, enquanto eu apoiava os pés no fundo. O salva-vidas estava de pé na borda da piscina; tinha um apito e vestia uma camiseta com o número de sua enfermaria impresso. Ele e McMurphy trocavam idéias a respeito da diferença entre o hospital e a cadeia; e McMurphy comentava como o hospital era muito melhor. O salva-vidas não tinha certeza. Eu o ouvi dizer a McMurphy que, para começar, ser internado não é como ser sentenciado.
– Você é condenado e sentenciado à prisão, e você tem uma data à sua frente, quando sabe que vai ser solto – disse ele.
McMurphy parou de espadanar na água como vinha fazendo. Nadou devagar até a borda da piscina e se segurou ali, olhando para o salva-vidas.
– E se você for internado? – perguntou depois de uma pausa.
O salva-vidas levantou os ombros num movimento e deu um puxão no apito pendurado no pescoço. Era antigo jogador profissional de futebol, com marcas na testa, e sempre que saía da sua enfermaria um emissor se ligava atrás de seus olhos e seus lábios começavam a cuspir números e ele caía de gatinhas na posição de um jogador pronto para um ataque e saltava em cima de uma enfermeira qualquer que passasse, metia o ombro no traseiro dela, bem a tempo de deixar o médico passar correndo pelo espaço atrás dele. Era por isso que ele estava lá em cima na Enfermaria dos Perturbados; sempre que não estava trabalhando como salva-vidas era capaz de fazer alguma coisa assim.
Ele tornou a encolher os ombros para a pergunta de McMurphy, olhou em seguida para trás e para a frente, para ver se algum crioulo estava por perto, e se ajoelhou perto da borda da piscina. Estendeu o braço para que McMurphy olhasse.
– Está vendo este gesso?
McMurphy olhou para o braço grande do outro.
– Você não tem gesso nenhum nesse braço, companheiro.
O salva-vidas sorriu.
– Bem, esse gesso está aí porque eu tive fratura feia no último jogo com os Castanhos. Não posso voltar ao campo até que a fratura se consolide e eu tire o gesso. A enfermeira diz que está curando meu braço em segredo. É, cara, ela diz que se eu tomar cuidado com este braço, não forçá-lo, ela vai tirar o gesso e eu vou poder voltar a jogar bola com o time.
Ele apoiou os punhos fechados no ladrilho molhado, colocou-se numa posição de jogo de três pontos para testar o braço. McMurphy o observou por um minuto e então perguntou-lhe há quanto tempo ele esperava que o braço ficasse bom para que pudesse sair do hospital. O salva-vidas levantou-se devagar e esfregou o braço. Agiu como se estivesse magoado por McMurphy ter perguntado aquilo, como se tivesse sido acusado de ser fraco e ficar lambendo as feridas.
– Estou internado – disse ele. – Já teria saído daqui antes, se fosse por mim. Talvez não pudesse jogar no primeiro time, com este braço ruim, mas poderia ficar dobrando toalhas, não poderia? Poderia fazer alguma coisa. Aquela enfermeira da minha ala fica dizendo para o médico que não estou pronto. Nem mesmo para dobrar toalhas naquela porcaria daquele vestiário. Não estou pronto.
Virou-se e foi andando até a cadeira como um gorila drogado, e olhou para baixo, para nós, o lábio inferior estendido para fora.
– Fui apanhado por embriaguês e desordem, e estou aqui há oito anos e oito meses – disse ele.
McMurphy afastou-se da borda da piscina e foi flutuando, agitando as pernas, e ficou pensando a respeito daquilo: ele havia sido condenado a uma pena de seis meses na colônia penal, com dois meses já cumpridos, faltando cumprir mais quatro – e quatro meses era o máximo que queria ficar trancado em qualquer lugar. Já estava há quase um mês naquele hospício e bem que podia ser muito melhor do que uma colônia penal, com boas camas e suco de laranja no café da manhã, mas não era tão melhor a ponto de fazer com que quisesse passar dois anos ali.
Nadou até os degraus na extremidade rasa da piscina e sentou-se ali durante o resto do tempo, puxando aquele pequeno tufo de pêlos vermelhos no pescoço e franzindo o cenho. Observando-o sentado ali, concentrado em si mesmo, lembrei-me do que a Chefona dissera durante a reunião, e comecei a sentir medo.