– Você acha que não? – diz Harding. – Então, uma vez que de repente você está tão lúcido a respeito do problema da saúde mental, qual é esse problema? O que é esse distúrbio emocional profundo, como você definiu tão inteligentemente?
– Vou dizer-lhe uma coisa, cara, eu não sei. Nunca vi a cara dele. – Ele fica quieto um minuto, ouvindo o zumbido da sala de Raios X; então diz: – Mas se fosse só o que vocês dizem, se fosse, digamos, apenas essa velha enfermeira com seus problemas sexuais, então a solução de todos os problemas de vocês seria apenas jogá-la no chão e resolver os problemas dela, não seria? Scanlon bate palmas.
– Que diabo! É isso aí. Você está designado para fazê-lo, Mack. Você é exatamente o garanhão certo para executar a tarefa.
– Eu não. Não, senhor. Você escolheu o cara errado.
– Por que não? Eu pensei que você fosse o supergaranhão com todas aquelas trepadas.
– Scanlon, companheiro, eu planejo ficar tão longe daquela velha escrota quanto puder.
– Tenho notado isso – diz Harding, sorrindo. – Que é que aconteceu entre vocês dois? Você a controlou durante um período, depois desistiu. Uma compaixão repentina pelo nosso anjo de misericórdia?
– Não; eu descobri certas coisas, é por isso. Fiz umas perguntas por aí em alguns lugares. Descobri por que vocês todos vivem lambendo o rabo dela e fazem reverências e bajulam e deixam que ela pise em cima de vocês. Eu descobri para que vocês me estavam usando.
– Ah, é? Isto é interessante.
– Você disse certo, é interessante. É interessante para mim vocês, malandros, não me terem avisado do risco que eu estava correndo, torcendo o rabo dela daquele jeito. Só porque não gosto dela, isso não quer dizer que vou aporrinhá-la até aumentar a minha sentença por mais um ano ou coisa assim. Às vezes a gente tem que engolir o orgulho e ficar de olho aberto para a velha Número Um.
– Ora, amigos, não acham que há alguma verdade nessa conversa de que o nosso McMurphy se submeteu à política apenas para aumentar as possibilidades de ser libertado antes, acham?
– Você sabe do que estou falando, Harding. Por que não me disse que ela me podia manter internado aqui até que houvesse por bem me libertar?
– Ora, eu tinha esquecido que você havia sido internado. – O rosto de Harding se dobra ao meio sobre o seu sorriso. – Sim. Você está ficando esperto. Igualzinho a nós.
– Diabo, pode mesmo apostar que estou ficando esperto. Por que haveria de ser eu a ficar brigando nessas sessões por causa dessas queixinhas insignificantes a respeito de manter a porta do dormitório aberta ou sobre os cigarros na Sala das Enfermeiras? Eu não conseguia entender, no início, por que vocês estavam vindo para mim como se eu fosse uma espécie de salvador. Então, por acaso, descobri que as enfermeiras têm a palavra definitiva quanto a quem é libertado e quem não é. E eu tratei de ficar esperto muito depressinha. Eu disse "ora, esses sacanas traiçoeiros me passaram para trás, me levaram na conversa para que eu comprasse a briga deles. Essa é muito boa, R. P. McMurphy, seu trouxa!" – Ele inclina a cabeça para trás e arreganha os dentes para nós, sentados em fila ali no banco. – Bem, eu não quero dizer que seja nada de pessoal, vocês compreendem, companheiros, mas acabem com essa manha. Eu quero dar o fora daqui tanto quanto qualquer um de vocês. Tenho tanto a perder aporrinhando aquela velha escrota quanto vocês.
Ele ri, pisca o olho e cutuca Harding nas costelas com um polegar como se tivesse acabado com a discussão, mas sem rancores. É quando Harding lhe diz:
– Não. Você tem mais a perder do que eu, amigo. Harding está sorrindo de novo, olhando com aquele olhar escorregadio, de égua nervosa, com um movimento de inclinação e recuo da cabeça. Martini sai da tela de raios X, abotoando a camisa e resmungando "não acreditava se não tivesse visto" e Billy Bibbit vai para trás do vidro preto para tomar o lugar de Martini.
– Você tem mais a perder do que eu – repete Harding. – Sou paciente voluntário. Não estou internado.
McMurphy não diz uma palavra. Ele tem aquela mesma expressão perplexa no rosto, como se alguma coisa não estivesse certa, alguma coisa que não soubesse definir ao certo. Continua sentado ali, simplesmente, olhando para Harding. O sorriso assustado de Harding desaparece e ele começa a se remexer, porque McMurphy está olhando para ele de um jeito estranho. Ele engole em seco e diz:
– Para falar a verdade, só há poucos homens na nossa enfermaria que foram internados. Só Scanlon e, bem, acho que alguns dos Crônicos. E você. Não há muitos casos de internação judicial em todo o hospital. Não, não muitos mesmo.
Então ele pára, a voz sumindo sob o olhar de McMurphy. Depois de um momento de silêncio, McMurphy diz num tom suave:
– Você está me sacaneando? – Harding sacode a cabeça. Ele parece assustado. McMurphy se levanta, no corredor, e diz: – Vocês todos estão me sacaneando!
Ninguém diz nada. McMurphy anda para cima e para baixo diante daquele banco, passando a mão pelo cabelo espesso. Anda até lá embaixo, no fim da fila, volta até lá na frente, até a máquina de raios X. Ela sibila e cospe para ele.
– Você, Billy… você tem de ter sido internado, por Deus!
Billy está de costas para nós, o queixo erguido sobre a tela negra, na ponta dos pés.
– Não – diz ele para a máquina.
– Então por quê? Por quê? Você é apenas um rapaz! Você devia estar rodando por aí num conversível, paquerando garotas. Tudo isso – ele envolve tudo a sua volta com um gesto -, por que você suporta tudo isso?
Billy nada diz, e McMurphy se vira para os outros.
– Digam-me por quê. Vocês reclamam, vocês resmungam durante semanas. Afinal, não conseguem suportar a enfermeira, ou nada que lhe diz respeito, e durante esse tempo todo vocês não estão internados. Eu posso compreender uma coisa dessas com um desses velhos, eles são loucos. Mas, vocês, vocês não são exatamente o homem comum das ruas, mas não são loucos.
Eles não discutem. Ele se aproxima de Sefelt.
– Sefelt, e você? Nada há de errado com você, exceto que tem ataques. Que diabo, um tio meu tinha acessos de raiva dez vezes piores que os seus e tinha visões do Diabo em pele e osso, mas ele não se trancou num hospício. Você poderia ir-se virando lá fora, se tivesse coragem…
– Claro! – É Billy, que se virou da tela, o rosto coberto de lágrimas. – Claro! – grita ele de novo. – Se tivéssemos c-coragem. Eu poderia ir lá para fora hoje, se tivesse coragem. Minha m-m-mãe é uma ótima amiga da S – Srta. Ratched, eu poderia conseguir que me assinassem minha alta hoje de tarde, se tivesse coragem!
Ele arranca a camisa violentamente do banco e tenta vesti-la, mas está tremendo demais. Afinal, ele a afasta de si e vira-se para McMurphy.
– Você acha que eu que – que – quero ficar aqui? Você acha que eu não queria um con-conversível e uma nah – nah – namorada? Mas alguma vez as pessoas já r – r – riram de você? Não, porque você é tão g – g – grande e duro! Bem eu não sou grande e duro. Nem Harding. Nem o F – Fredrickson. Nem o Suh – Sefelt. Oh – oh, você – você f – fala como se ficássemos aqui porque gostássemos disso! Oh, não, n- não adianta…
Ele começa a chorar e, gaguejando demais para dizer qualquer outra coisa, limpa os olhos com as costas das mãos. Uma das cascas de ferida se solta e, quanto mais ele esfrega os olhos, mais sangue se espalha neles e pelo rosto todo. Então começa a correr cegamente, batendo-se nas paredes do corredor de um lado para o outro, com o rosto transformado numa mancha de sangue, um crioulo bem atrás dele.
McMurphy volta-se para os outros e abre a boca para perguntar uma outra coisa qualquer, mas fecha-a quando vê como eles estão olhando para ele. Fica parado ali um minuto, com aquela fileira de olhos a encará-lo, como uma fila de rebites.
– Que merda – diz ele afinal, mas de uma maneira assim, meio fraca, e torna a botar o gorro e o puxa com força, voltando em seguida para o seu lugar no banco.
Os dois técnicos voltam do café e tornam a entrar na sala defronte, no corredor; quando a porta se abre com um ruído de vento, pode-se sentir um cheiro ácido no ar, como quando eles recarregam uma bateria. McMurphy continuava sentado ali, olhando para aquela porta.
– Acho que não sou capaz de entender isso direito na minha cabeça…
No caminho de volta para a enfermaria, McMurphy deixou-se ficar para trás no fim do grupo, com as mãos nos bolsos do pijama e o gorro bem enfiado na cabeça, meditando, com o cigarro apagado. Todo mundo se mantinha bem quieto. Haviam acalmado Billy, e ele seguia na frente do grupo, com um crioulo de um lado e o branco da Sala de Choque do outro.
Eu fui diminuindo os passos até que fiquei ao lado de McMurphy. Queria dizer-lhe que não se preocupasse, que nada podia ser feito, pois eu notava que ele tinha na cabeça alguma idéia que o incomodava, assim como um cachorro que se preocupa com um buraco sem saber o que há dentro dele, uma voz dizendo "cachorro, este buraco não é da sua conta – é grande e escuro demais, e há um rastro no lugar que lembra um urso, ou algo até pior". E uma outra voz, vindo, como um murmúrio penetrante, longínquo, do atavismo de sua raça, não uma voz esperta, nada de esperto ou dissimulado nela, dizendo "procure-o, cachorro, procure-o!".
Eu queria dizer a ele que não se preocupasse com aquilo, e realmente estava prestes a me expor, quando ele levantou a cabeça, empurrou o gorro para trás e correu para onde o crioulo menor ia andando, deu-lhe um tapinha no ombro e lhe perguntou:
– Cara, que tal darmos uma passada ali na cantina, um segundo para eu apanhar um ou dois pacotes de cigarros?