Fiquei deitado na cama na noite da véspera da viagem de pescaria e pensei sobre aquilo, sobre a minha surdez, sobre os anos em que não deixei que percebessem que eu ouvia o que era dito, e me perguntei se jamais eu seria capaz de agir de alguma outra maneira de novo. Mas me lembrei de uma coisa: não fui eu que comecei a fingir que era surdo; foram as pessoas que primeiro começaram a agir como se eu fosse estúpido demais para ouvir, ver ou dizer qualquer coisa.
E aquilo não havia começado apenas desde que eu viera para o hospital; as pessoas começaram a agir como se eu não pudesse falar ou ouvir muito tempo antes. No Exército, qualquer um com mais galões agia assim comigo. Era desse jeito que eles imaginavam que a gente devia agir com uma pessoa com a minha aparência. E mesmo bem antes, no colégio, posso lembrar-me de gente que dizia que não achava que eu estivesse ouvindo e, assim, eles pararam também de ouvir as coisas que eu dizia. Deitado ali na cama, tentei lembrar-me de quando percebi isso pela primeira vez. Acho que foi certa vez, quando ainda morávamos na aldeia, na Columbia. Era verão…
… e tenho cerca de 10 anos e estou do lado de fora, na frente da barraca, espalhando sal no salmão, quando vejo um carro fazer a curva na rodovia e vir sacolejando pelos sulcos, através dos pés das salvas, levantando uma nuvem de poeira vermelha tão sólida como uma fileira de vagões fechados.
Observo o carro vir subindo o morro e parar um pouco abaixo do nosso quintal. A poeira continua vindo, batendo na traseira do carro e espalhando-se em todas as direções, para finalmente assentar-se nas folhas secas e nas ervas, cobrindo-as e fazendo-as parecer pedaços de destroços vermelhos, esfumaçados. O carro fica parado ali enquanto a poeira se assenta. Eu sei que não são turistas com máquinas fotográficas porque eles nunca vêm de carro até tão perto da aldeia. Se querem comprar peixe, compram lá na estrada; eles não vêm até a aldeia porque provavelmente pensam que ainda escalpelamos as pessoas e as queimamos num poste. Não sabem que alguns do nosso povo são advogados em Portland, provavelmente não acreditariam se eu lhes dissesse. Na realidade, um dos meus tios tornou-se um advogado de verdade e Papai diz que ele o fez exclusivamente para provar que podia fazê-lo, uma vez que ele preferia pescar salmões na cachoeira a qualquer outra coisa. Papai diz que, se a gente não tomar cuidado com as pessoas, elas forçam a gente de uma maneira ou de outra a fazer o que elas querem, ou a ser teimoso como uma mula e a fazer o contrário, só de pura raiva.
As portas do carro se abrem de repente e três pessoas saem da frente e uma de trás. Vêm subindo o declive em direção à nossa aldeia e vejo que os dois primeiros são homens de terno azul, e que a pessoa que saiu do banco traseiro do carro é uma mulher velha, de cabelos brancos, com uma roupa tão engomada e pesada que parece uma armadura. Estão arquejando e suando quando saem do meio das salvas e entram no nosso quintal descampado.
O primeiro homem pára e examina a aldeia. Ele é baixo, gordo e usa um chapéu de cowboy branco. Sacode a cabeça para o nosso esquálido amontoado de cavaletes de peixes, carros de segunda mão, galinheiros, motocicletas e cachorros.
– Alguma vez na sua vida viu coisa parecida? Já viu? Santo Deus, alguma vez já viu?
Ele tira o chapéu e bate de leve com um lenço na cabeça, que parece uma bola de borracha vermelha, com cuidado, como se tivesse medo de desarrumar um dos dois – o lenço ou o chumaço úmido de cabelo pegajoso.
– Pode imaginar gente querendo viver desta maneira? Diga-me, John, pode imaginar? – Ele fala alto por não estar habituado com o rugido da cachoeira.
John está do lado dele, tem um bigode espesso, grisalho, levantado sob o nariz para manter longe o cheiro do salmão com que estou trabalhando. Está todo suado no pescoço e no rosto, e as costas do terno azul estão também manchadas de suor. Toma apontamentos num livro, e fica movimentando-se em círculos, olhando para a nossa cabana, nosso jardinzinho, para os vestidos vermelho, verde e amarelo que mamãe usa nos sábados à noite, que estão secando lá atrás, pendurados num cordão – continua virando até que se volta na minha direção e me olha como quem me vê pela primeira vez, e eu não estou nem a dois metros de distância dele. Inclina-se na minha direção, olha e torna a levantar o bigode até o nariz, como se eu é que estivesse fedendo, e não o peixe.
– Onde é que você acha que os pais dele estão? – pergunta John. – Dentro da casa? Ou lá na cachoeira? Nós bem que poderíamos discutir o assunto com o homem enquanto estamos aqui.
– Eu não vou entrar naquele barraco – diz o gordo.
– Aquele barraco – diz John através do bigode – é onde o chefe mora, Brickenridge, o homem com quem viemos aqui para conversar, o nobre líder deste povo.
– Conversar? Eu não, não é o meu trabalho. Eles me pagam para avaliar, não para confraternizar.
Isso arranca uma risada de John.
– Sim, isso é verdade. Mas alguém devia informá-los dos planos do Governo.
– Se eles já não sabem, logo acabarão sabendo.
– Seria muito simples entrar e falar com ele.
– Dentro daquele barraco miserável? Ora, eu aposto quanto você quiser como o lugar está cheio de aranhas. Dizem que essas cabanas de taipa sempre abrigam uma população considerável delas nas paredes de barro entre os buracos. E é quente, Deus misericordioso, que eu vou te contar. Aposto como aí dentro é um forno dos bons. Olhe, veja como o pequeno Hiawatha está tostadinho. Ah! Tostado? Quase torrado, melhor dizendo.
Ele ri e coça a cabeça, mas quando a mulher olha para ele, pára de rir. Pigarreia e cospe na poeira. Em seguida, vai andando e se senta no balanço que papai fez para mim, no zimbro. Fica sentado ali balançando-se um pouco e se abanando.
O que ele disse faz com que eu fique cada vez mais zangado à medida que vou pensando no assunto. Ele e John continuam falando sobre nossa casa, a aldeia e a propriedade e quanto valem. Tenho a impressão de que estão falando a respeito dessas coisas na minha frente porque não sabem que falo inglês. Provavelmente são de algum lugar no leste, onde as pessoas nada sabem a respeito dos índios, exceto o que vêem no cinema. Penso em como vão ficar envergonhados quando descobrirem que sei o que estão dizendo.
Eu os deixo dizer mais uma coisa ou duas sobre o calor e a casa; então, levanto-me e digo ao homem gordo, no meu melhor inglês, saído dos livros escolares de gramática, que a nossa casa de taipa provavelmente estará muito mais fresca do que qualquer das casas da cidade, muito mais fresca! – Eu sei com toda certeza que é mais fresca que a escola que eu freqüento e até mais fresca que aquele cinema em The Dalles que faz propaganda naqueles cartazes com letras desenhadas como pingentes de gelo que é "fresco aqui dentro"!
E estou pronto para lhes dizer como, se eles quiserem entrar, irei chamar papai nos andaimes da cachoeira, quando vejo que não parece de maneira alguma que me ouviram. Não estão nem olhando para mim. O gordo continua balançando-se para trás e para frente, olhando para além da ponta de lava, para onde os homens estão sobre os andaimes na cachoeira, apenas vultos de camisas xadrez na neblina, a esta distância. Volta e meia a gente pode ver alguém lançar um braço e dar um passo para frente como um espadachim, depois erguer a sua lança com a ponta em forma de forquilha, para que alguém no andaime de cima tire o salmão que se contorce. O homem gordo observa os homens de pé em seus lugares através do véu de água, pisca os olhos e resmunga cada vez que um deles golpeia um salmão.
Os outros dois, John e a mulher, estão apenas de pé ali. Nenhum dos três age como se tivesse ouvido algo do que eu disse; de fato, todos olham para longe de mim como se preferissem que eu não estivesse ali.
E tudo pára e fica assim por um minuto.
Tenho a mais estranha das sensações, como se o sol tivesse ficado mais forte que antes em cima dos três. Todo o resto continua com o aspecto habitual – as galinhas ciscam no capim, os gafanhotos saltam de arbusto em arbusto, as moscas são afastadas em nuvens negras em volta dos cavaletes de peixe pelas crianças pequenas, tudo igualzinho a qualquer outro dia de verão. Exceto o sol, sobre aqueles três estranhos, que de repente está muitíssimo mais forte e brilhante do que normalmente, e posso ver as… costuras onde eles são encaixados. E, quase, ver o aparato dentro deles pegar as palavras que acabei de dizer e tentar encaixar as palavras aqui e ali, nesse lugar e naquele, e quando eles vêem que as palavras não têm nenhum lugar pronto para se encaixar, a maquinaria se livra das palavras como se elas nem ao menos tivessem sido ditas.
Os três estão absolutamente imóveis enquanto isso acontece. Até o balanço parou, pregado numa determinada inclinação pelo sol, com o homem gordo petrificado como uma boneca de borracha. Então a galinha-de-angola de papai acorda nos galhos do zimbro e vê que temos estranhos nas proximidades. Dá o alarma, como se fosse um cachorro, e o encanto se quebra.
O homem gordo grita, pula do balanço, e se afasta em meio à poeira, segurando o chapéu no alto, na frente do sol, de forma que possa ver o que é que está ali em cima do zimbro, fazendo tamanha algazarra. Quando vê que é apenas uma galinha pintada, cospe no chão e põe o chapéu.