– Agora, tudo O.K., amigo, nós queremos a comum, como o doutor mandou. Dois tanques da comum. Mais nada. Pro diabo com essa outra porcariada toda. E vamos pagar com um desconto de três cents porque somos uma expedição patrocinada pelo Governo.
O empregado não se mexeu.
– Ah, é? Pensei que o professor aqui tivesse dito que vocês não eram pacientes.
– Ora, amigo, você não está vendo que isso é apenas uma precaução gentil para impedir que caras como vocês se assustem com a verdade? O doutor não mentiria assim a respeito de quaisquer pacientes; mas nós não somos birutas comuns; somos todos caras acabados de sair da ala de maníacos criminosos, a caminho de San Quentin, onde eles têm melhores condições para lidar conosco. Está vendo aquele garoto sardento ali? Bem, ele pode parecer que acabou de sair da capa do Saturday Evening Post, mas é um maníaco que maneja com arte uma faca e que já matou três homens. O cara ao lado dele é o conhecido como o Grande Ganso Louco, imprevisível como um porco selvagem. Está vendo aquele grandalhão ali? É um índio e surrou seis homens brancos até a morte com um cabo de picareta quando eles tentaram passá-lo para trás na compra de peles de ratos almiscarados. Levante-se para que eles possam ver você, chefe.
Harding me cutucou com o polegar, e eu me levantei dentro do carro. O cara cobriu os olhos com a mão, olhou para cima para mim e nada disse.
– Bem, eu admito que é um grupo da pesada - disse McMurphy – mas está tudo planejado, autorizado, uma excursão legalmente patrocinada pelo Governo, e temos direito ao desconto legal exatamente como se fôssemos do FBI.
O outro tornou a olhar para McMurphy, que enfiou os polegares nos bolsos, balançou-se para trás e olhou para ele por sobre a cicatriz do nariz. O sujeito virou-se para verificar se o companheiro ainda estava parado junto das garrafas vazias. Então sorriu para McMurphy.
– Turminha braba, é isso que está dizendo, ruivo? Que é melhor entrarmos na linha e fazermos o que nos mandam, não é isso? Bem, então me conta, ruivo, por que é que você foi apanhado? Por tentar assassinar o Presidente?
– Ninguém conseguiu provar isso, amigo. Eles me pegaram por um crimezinho vagabundo. Matei um cara num ringue, sabe como é, e então me encanaram.
– Um desses assassinos com luvas de boxe, é isso, ruivo?
– Ora, eu não disse isso, disse? Nunca consegui me acostumar com esses travesseiros que se usam nos punhos.
Não, não foi nenhum grande acontecimento televisionado do Cow Palace; sou mais o que você chamaria de um lutador de boxe de terrenos baldios.
O cara enfiou os polegares nos bolsos para zombar de McMurphy.
– Você é mais o que eu chamaria de um lutador de boxe de merda, um contador de vantagens.
– Ora, mas eu não disse que contar vantagens não era, também, uma das minhas especialidades, disse? Mas eu quero que você olhe aqui. – Ele levantou as mãos na cara do sujeito, bem perto mesmo, virando-as devagar, as palmas e as juntas. – Alguma vez já viu um homem ficar com suas mãos estropiadas desse jeito só de contar vantagem? Já viu, amigo?
Ele ficou com as mãos bem na cara do sujeito durante muito tempo, esperando para ver se ele ainda tinha mais alguma coisa a dizer. O sujeito olhou para as mãos, para mim, e para as mãos de novo. Quando ficou bem evidente que ele nada mais tinha de realmente importante para dizer, McMurphy afastou-se dele e foi até o outro, o que estava encostado no refrigerador, e arrancou-lhe da mão a nota de 10 dólares do médico, dirigindo-se em seguida para a mercearia vizinha ao posto.
– Vocês aí, calculem quanto sai a gasolina e mandem a conta para o hospital – gritou. – Pretendo usar o dinheiro vivo para comprar uns refrigerantes para os rapazes. Creio que vamos comprar isso em vez de limpadores de pára-brisa e filtros de óleo.
Quando ele voltou, todos se sentiam arrogantes, como galos de briga, dando ordens aos sujeitos do posto de gasolina para calibrar o estepe e limpar os vidros e tirar aquele cocô de passarinho do capô, se me faz favor, simplesmente como se a casa fosse nossa. Quando o grandalhão não limpou o pára-brisa ao gosto de Billy, este o chamou de volta.
– Você não tirou essa m-mancha aqui, onde o mosquito b-bateu.
– Isso não foi um mosquito – disse o cara de má vontade, raspando com a unha. – Foi um passarinho.
Martini berrou lá do outro carro que não poderia ter sido um passarinho.
– Se fosse, teria de ter penas e ossos.
Um homem parou com a sua bicicleta para perguntar qual era a razão de todos aqueles uniformes verdes; algum clube? Harding levantou-se direto e respondeu.
– Não, meu amigo. Somos lunáticos saídos daquele hospital, ali adiante na estrada, cerâmica psíquica, as cucas fundidas da humanidade. Gostaria que eu interpretasse um Rorschach para você? Não? Está com pressa? Ah, ele foi embora. Que pena. – Virou-se para McMurphy. – Eu nunca havia percebido que a doença mental pode incluir o aspecto de poder, poder. Pense nisso: talvez quanto mais louco um homem seja, mais poderoso se pode tornar. Hitler é um exemplo. Se a gente se sente bem, alguma coisa faz o velho cérebro funcionar de novo, não é? Temos aí um bom tema para reflexão.
Billy abriu uma lata de cerveja para a garota, e ela o estimulou tanto com o seu sorriso alegre e o seu "obrigado, Billy", que ele começou a abrir latas para todo mundo.
Fiquei sentado ali, sentindo-me bem e à vontade, bebericando a cerveja; eu podia ouvir o líquido escorregando por dentro de mim – zzzt zzzt. Eu havia esquecido que existiam sons e gostos bons assim, como o som e o gosto da cerveja descendo. Tomei mais um gole e comecei a olhar em volta para ver o que mais eu havia esquecido em 20 anos.
– Cara! - disse McMurphy enquanto tirava a moça de trás do volante e a empurrava para junto de Billy. – Olhem só para o Grande Chefe derrubando essa pinga! – e meteu o carro a toda no meio do tráfego, com o médico guinchando pneus atrás para acompanhá-lo.
Ele nos mostrara o que se podia conseguir com um pouco de desafio e de coragem, e pensamos que nos havia ensinado como usá-los. Por todo caminho até a costa nos divertimos fingindo que éramos corajosos. Quando as pessoas ficavam olhando para nós e nossos uniformes verdes num sinal fechado, fazíamos igualzinho a ele, sentávamo-nos bem eretos, fortes e com aparência de gente durona, abríamos um grande sorriso e as encarávamos de volta até que os motores delas morriam, as janelas refletiam o sol, e elas ficavam sentadas ali, quando o sinal abria, muito perturbadas por causa daquele bando de macacos selvagens que ainda há pouco estava a menos de um metro de distância deles, com nenhum socorro à vista.
Enquanto isso, McMurphy nos conduzia, os 12, em direção ao oceano.
Eu acho que McMurphy sabia melhor do que nós que nossa aparência de durões era só encenação, porque ainda não conseguira obter uma risada verdadeira de ninguém Talvez não pudesse compreender por que ainda não éramos capazes de rir, mas sabia que ninguém é realmente forte se não sabe ver um lado engraçado nas coisas. De fato, ele se esforçava tanto para mostrar esse lado que eu me perguntava às vezes se talvez, ele não estava cego em relação ao outro, se ele não era, talvez, incapaz de ver o que era que ressecava o riso lá dentro, no fundo da gente. Talvez os outros também não fossem capazes de ver isso, apenas pudessem sentir as pressões das várias ondas e freqüências vindas de todas as direções, empurrando-o e dobrando-o para um lado ou para o outro, sentir a Liga funcionando – mas eu era capaz de ver isso.
A mesma maneira como a gente nota a mudança numa pessoa de quem se esteve afastado durante muito tempo, enquanto que os que a vêem diariamente, entra dia sai dia, não perceberiam, porque a mudança é gradual. Por todo o caminho em direção à costa eu podia ver sinais do que a Liga havia conseguido fazer desde que eu estivera por ali pela última vez, coisas como, por exemplo, um trem parando numa estação e despejando uma fileira de homens de ternos de um mesmo feitio e chapéus feitos em série; despejando-os como uma ninhada de insetos idênticos, coisas meio vivas saindo do último carro fazendo ft-ft-ft, então piando o seu assovio elétrico e seguindo pela terra estragada para despejar uma outra ninhada.
Ou coisas como 5 mil casas picotadas identicamente por uma máquina e espalhadas pelas colinas nos arredores da cidade, tão recentemente saídas da fábrica que ainda estão presas umas às outras como salsichas, com um cartaz dizendo: ANINHE-SE NAS CASAS DO OESTE – SEM ENTRADA PARA VETERANOS DE GUERRA, um playground no sopé da colina onde ficam as casas, atrás de uma cerca de arame xadrezado e um outro cartaz: ESCOLA SÃO LUCAS PARA OS MENINOS, onde 5 mil meninos de calças de veludo cotelê verde e camisas brancas sob suéteres verdes estão brincando de chicotinho num acre de terra coberta de cascalho. A fila saltava, torcia-se e contorcia-se como uma cobra, e cada estalo do chicote punha para fora do final da fila um garotinho, que ia rolando até bater contra a cerca como um galho seco levado pelo vento. E era sempre o mesmo garotinho, uma vez atrás da outra.
Todos aqueles 5 mil garotos moravam naquelas 5 mil casas, de propriedade daqueles que haviam saltado do trem. As casas eram tão parecidas que volta e meia os garotos se enganavam e iam para casas diferentes e para famílias diferentes. Ninguém nunca percebia. Eles comiam e iam para a cama. O único que eles percebiam era o garotinho do fim da fila. Ele sempre estava tão esfolado, tão machucado que pareceria deslocado aonde quer que fosse. Não era capaz de se descontrair e rir, tampouco. Rir é uma coisa difícil de fazer se se pode sentir a pressão daquelas ondas que vêm de cada carro novo que passa, ou de cada casa nova pela qual se passa.