PARTE IV
A Chefona já tinha sua manobra seguinte preparada no dia imediato à pescaria. A idéia lhe havia ocorrido quando conversava com McMurphy no dia anterior, a respeito de quanto ele estava ganhando na viagem, e outros pequenos empreendimentos desse tipo. Ela desenvolvera a idéia durante aquela noite, examinando-a sob todos os ângulos, até que teve certeza absoluta de que não podia falhar. Durante todo o dia seguinte fez pequenas insinuações para dar início a um boato, que deveria tomar vulto antes que ela realmente dissesse alguma coisa a respeito.
Sabia que as pessoas, sendo como são, mais cedo ou mais tarde começam a desconfiar e se afastam de alguém que parece que está dando um pouco mais de si do que seria normal, bancando Papai Noel, missionário. Assim como desconfiando de homens que doam fundos a causas justas, começam a se perguntar: Que é que eles ganham com isso? Um sorriso na boca quando o jovem advogado traz, digamos, um saco de nozes para as crianças da escola da sua região – pouco antes das eleições para o Senado Estadual – e dizem uns para os outros: Ele não engana ninguém.
Ela sabia que não demoraria muito para que os outros começassem a se perguntar o que era, agora que surgiu o assunto, que fazia McMurphy gastar tanto tempo organizando pescarias na costa e programando festas com bingo e estimulando times de beisebol. O que é que o impulsionava para manter as coisas a todo vapor, quando todo mundo na enfermaria sempre se havia contentado em ir levando, jogando vinocle e lendo as revistas do ano passado? Como aquele cara, aquele irlandês arruaceiro, vindo de uma colônia penal onde cumpria pena por jogo ilícito e agressão, amarrava um lenço na cabeça, brincava como um adolescente, e passava duas horas inteiras fazendo com que todos os Agudos lhe gritassem vivas, enquanto fazia o papel da moça, tentando ensinar Billy Bibbit a dançar? Ou como é que um malandro, experiente como ele – um profissional, um artista de feira, um jogador perito na avaliação das possibilidades – se arriscava a dobrar a sua permanência num hospício tornando sua inimiga mais ferrenha a mulher que tinha a última palavra quanto a quem deveria ou não ser liberado?
A enfermeira fez com que as perguntas começassem, fazendo circular um levantamento da situação financeira dos pacientes nos últimos meses; deve ter-lhe tomado horas de trabalho a coleta daqueles dados nos arquivos. Mostrava uma diminuição constante nos fundos de todos os Agudos, exceto um. Os recursos dele haviam crescido desde o dia em que chegara.
Os Agudos começaram a fazer brincadeiras com McMurphy sobre como parecia que ele os estava depenando, e ele nunca o negou. De maneira alguma. Na realidade, ele se jactou de que se ficasse naquele hospital um ano ou coisa assim, bem que poderia ser liberado com a sua independência financeira garantida para se aposentar na Flórida para o resto da vida. Todos eles riam daquilo quando ele estava por perto, mas quando estava fora da ala, na TV ou na TO ou na TP, ou quando estava na Sala das Enfermeiras levando um sabão por alguma coisa, enfrentando o sorriso plástico e fixo dela com o seu grande sorriso radiante, não era bem rindo que eles estavam.
Começaram a se perguntar uns aos outros por que ultimamente ele estivera tão ativo, conseguindo para os pacientes coisas como modificar o regulamento, de forma que os homens não tivessem de andar em grupos terapêuticos de oito sempre que iam a algum lugar ("Billy tem falado de cortar os pulsos de novo", disse ele numa sessão em que argumentava contra o regulamento do grupo de oito. Assim, há sete de vocês aí que vão acompanhá-lo nessa terapêutica?"); e a maneira como manobrava o médico, que estava muito mais próximo dos pacientes desde a excursão de pescaria, para ordenar assinaturas do Playboy, Nugget e Man e se livrar de todos os McCall's antigos, que o cara inchada do Relações-Públicas vinha trazendo de casa e deixando numa pilha na enfermaria, os artigos que ele achava que nos interessariam especialmente marcados com tinta verde. McMurphy chegou até a pôr no correio uma petição para alguém em Washington, pedindo que examinassem os eletrochoques e lobotomias que ainda eram praticados nos hospitais do Governo. Eu simplesmente gostaria de saber, os Agudos estavam começando a se perguntar, o que é que o Mack vai ganhar com isso?
Depois que a idéia já circulava na ala há uma semana ou coisa assim, a Chefona tentou fazer a sua grande jogada na Sessão de Grupo; na primeira vez em que tentou, McMurphy estava presente à sessão e a derrotou antes que ela tomasse embalo e começasse mesmo (ela começou, dizendo ao grupo que estava chocada e desapontada com o estado em que a ala se havia deixado cair: Olhem em volta, por Deus; pornografia de verdade recortada daqueles livros nojentos e pregada nas paredes – ela planejava, a propósito, providenciar para que o Edifício Central fizesse uma investigação a respeito da imundície que havia sido trazida para dentro daquele hospital. Recostou-se na cadeira, preparando-se para continuar e mostrar quem era o culpado e por que, sentada naqueles dois segundos que se seguiram à sua ameaça, como se estivesse num trono, quando McMurphy quebrou o encanto, dela com acessos de riso, dizendo-lhe que fizesse aquilo mesmo e lembrasse ao pessoal do Edifício Central que trouxesse seus espelhinhos de mão quando viesse fazer a investigação). Assim, na outra vez em que ela tentou a jogada, tratou de garantir que ele não estivesse presente à sessão.
Ele recebeu um chamado telefônico interurbano de Portland e estava lá embaixo na recepção com um dos crioulos, esperando que a pessoa tornasse a chamar. Quando deu uma hora e começamos a arrumar as coisas, preparando a enfermaria, o crioulo menor perguntou-lhe se queria que ele descesse e chamasse McMurphy e Washington para virem para a sessão, mas ela disse que não, que não tinha importância, o deixasse ficar e que, além disso, alguns dos homens ali poderiam gostar de ter uma oportunidade de discutir a respeito do nosso Sr. Randle Patrick McMurphy sem estar diante de sua presença dominadora.
Eles começaram a sessão contando histórias engraçadas a respeito dele e das coisas que havia feito. Falaram durante algum tempo sobre o grande sujeito que ele era, e ela ficou quieta, esperando até que todos eles esgotassem aquele assunto. Então começaram a surgir outras perguntas. Que é que havia com McMurphy? Que era que o fazia continuar daquele jeito e fazer as coisas que fazia? Alguns dos caras sugeriram que talvez a história dele provocar brigas de mentira na colônia penal para ser mandado para cá não fosse mais uma de suas lorotas, e que talvez ele fosse mais louco do que as pessoas pensavam. A Chefona sorriu diante disso e levantou a mão.
– Louco como uma raposa – disse ela. – Creio que isso é o que estão tentando dizer a respeito do Sr. McMurphy.
– Que é que está querendo di-di-dizer? – perguntou Billy. McMurphy era seu amigo preferido e seu herói, e ele não tinha muita certeza de que lhe agradasse a maneira como ela juntara aquele elogio com as coisas que não dissera em voz alta. – Que é que está querendo d-d-dizer "como raposa"?
– É acenas uma observação, Billy – respondeu a enfermeira amavelmente. – Vamos ver se algum dos outros rapazes pode dizer-lhe qual é o significado. Que tal o senhor, Sr. Scanlon?
– Ela quer dizer, Billy, que McMurphy não é nenhum idiota.
– Ninguém disse que ele e-e-e-e-ra! - Billy socou o braço da cadeira com o punho para fazer sair a última palavra. – Mas a Srta. Ratched estava deixando im-implícito…
– Não, Billy, eu não estava deixando nada implícito. Estava simplesmente comentando que o Sr. McMurphy não é pessoa de correr riscos sem um motivo. Concordaria com isso, não? Vocês todos não concordariam com isso?
Ninguém respondeu.
– E no entanto – continuou ela – ele parece fazer as coisas sem pensar em si mesmo, como se fosse um mártir ou um santo. Alguém se aventuraria a dizer que o Sr. McMurphy é um santo?
Ela sabia que era seguro sorrir para toda a sala, esperando uma resposta.
– Não, nem um santo nem um mártir. Olhem aqui. Vamos examinar um ponto crucial da filantropia desse homem? – Ela apanhou uma folha de papel amarelo na cesta. – Olhem para alguns desses presentes, como podem chamá-los os fãs devotados dele. Primeiro, houve o presente da Sala de Hidroterapia. Isso era realmente dele, para que pudesse dar? Ele perdeu alguma coisa conquistando-a como seu cassino de jogo? Por outro lado, quanto acham que ele fez no curto período em que foi croupier do seu pequeno Monte Cario aqui? Quanto você perdeu, Bruce? Sr. Sefelt? Sr. Scanlon? Creio que todos vocês têm uma idéia de quanto montam suas perdas pessoais, mas acham que sabem a que total os ganhos dele chegaram, de acordo com os depósitos que ele fez nos Fundos? Quase 100 dólares.
Scanlon assoviou baixinho, mas ninguém disse nada.
– Tenho anotadas aqui várias outras apostas que ele fez, se quiserem ver, inclusive algo relativo a deliberadamente tentar perturbar o pessoal. E toda essa jogatina era e é completamente contrária ao regulamento da enfermaria, e cada um de vocês que jogou com ele sabe.
Ela tornou a olhar para o papel, depois o colocou na cesta.
– E esta recente excursão de pescaria? Quanto imaginam que o Sr. McMurphy lucrou com esse empreendimento? Da maneira como vejo as coisas, ele se utilizou do carro do doutor, até do dinheiro do doutor para gasolina e, disseram-me, teve alguns outros benefícios, sem ter pago um centavo. Uma raposa e tanto, devo dizer.
Ela levantou a mão para impedir que Billy a interrompesse.
– Por favor, Billy, compreenda-me: não estou criticando este tipo de atividade em si; simplesmente pensei que seria melhor se não tivéssemos ilusões sobre os motivos desse homem. Mas, de qualquer maneira, talvez não seja justo fazer essas acusações sem a presença do homem de quem estamos falando. Vamos voltar ao problema que estávamos discutindo ontem… qual era? – ela começou a folhear papéis na cesta. – Qual era, lembra-se, Dr. Spivey?