– Sr. McMurphy. É a Chefona.
– Sr. McMurphy, poderia vir até aqui, por favor?
É a Chefona. Aquele crioulo com o termômetro foi buscá-la. Ela está de pé ali, batendo com o termômetro no relógio de pulso, os olhos faiscando enquanto tenta avaliar o novo homem. Os lábios estão com aquele formato triangular, como os lábios de uma boneca, prontos para uma mamadeira de mentira.
– O enfermeiro Williams me disse, Sr. Murphy, que o senhor está sendo meio difícil com relação a tomar o banho da admissão. Isso é verdade? Por favor, compreenda, eu aprecio a maneira como tomou ao seu encargo aproximar-se dos outros pacientes, mas tudo no seu devido tempo, Sr. Murphy. Sinto muito interromper o senhor e o Sr. Bromden, mas por favor compreenda: todo mundo… tem de seguir as regras.
Ele inclina a cabeça para trás e dá aquela piscadela, mostrando que ela não o está enganando, da mesma maneira como eu não o enganei, que ele a apanhou. Olha para ela com um olho durante um minuto.
– A senhora sabe, dona – diz ele. – A senhora sabe… isto é exatamente o negócio que alguém sempre me diz a respeito das regras…
Ele sorri. Ambos sorriem, cada um avaliando o outro.
– … bem no momento em que eles descobrem que estou a ponto de fazer o extremo oposto.
Então ele solta minha mão.
Na saleta de paredes envidraçadas, a Chefona abriu um embrulho vindo de um endereço estrangeiro e está puxando para dentro das seringas hipodérmicas o líquido verde-leitoso que veio em vidrinhos no embrulho. Uma das enfermeirinhas, uma moça com um olho torto, que fica sempre espiando preocupado por sobre o ombro dela, enquanto o outro vai cuidando de suas tarefas rotineiras, apanha a bandeja de seringas cheias, mas não a leva logo embora.
– Srta. Ratched, qual é a sua opinião a respeito desse novo paciente? Quero dizer, puxa, ele é bem-apessoado e simpático e tudo, mas na minha humilde opinião ele realmente domina.
A Chefona experimenta uma agulha na ponta do dedo.
– Temo – ela enfia a agulha na tampa de borracha do vidro e levanta o êmbolo – que isto seja exatamente o que ele está planejando fazer: dominar. Ele é o que costumamos chamar de "manipulador", Srta. Flinn, um homem capaz de usar todo mundo e tudo para atingir seus objetivos pessoais.
– Ah. Mas. Quero dizer, num hospital para doentes mentais? Quais poderiam ser os objetivos dele?
– Uma porção de coisas diferentes. – Ela está calma, sorridente, ocupada no trabalho de encher as seringas. – Conforto e uma vida fácil, por exemplo; o sentimento de poder e de ser respeitado, talvez; vantagens monetárias… talvez todas essas coisas. Às vezes, os objetivos pessoais de um manipulador são simplesmente o rompimento mesmo da ala, apenas pelo prazer do rompimento. Há pessoas assim na nossa sociedade. Um manipulador pode influenciar os outros pacientes e destruí-los a um tal ponto que poderia levar meses para se conseguir fazer com que as coisas voltassem novamente ao normal. Com a atual filosofia permissiva em hospitais para doentes mentais, é fácil para eles escaparem impunemente. Há alguns anos era bem diferente. Lembro-me de que, há uns anos, nós tivemos na enfermaria um paciente, o Sr. Taber, e ele era um intolerável manipulador. Por algum tempo. – Ela desvia o olhar do trabalho, a seringa cheia pela metade diante do seu rosto, como uma batuta. Seus olhos ficam sonhadores e satisfeitos com a lembrança. – Seu Tay-bur – diz ela.
– Mas, puxa – diz a outra enfermeira – que diabo faria um homem querer fazer uma coisa como criar confusão na enfermaria, Srta. Ratched? Qual o motivo possível?…
Ela interrompe a enfermeirinha enfiando bruscamente a agulha na tampa de borracha do frasco, enche a seringa, puxa a agulha e coloca a seringa na bandeja. Eu observo sua mão estender na direção de outra seringa vazia, observo-a tomar impulso, girar sobre a tampa, descer.
– Parece esquecer, Srta. Flinn, que esta é uma instituição para insanos.
A Chefona costuma ficar realmente furiosa se alguma coisa impede o seu aparato de funcionar como uma máquina de precisão, exata e suave. A menor coisa confusa, ou fora de ordem, ou que atrapalhe, a transforma num pequeno nó branco de fúria contida por um sorriso forçado. Ela anda com aquele mesmo sorriso de boneca, pregueado entre o queixo e o nariz, e aquele mesmo brilho calmo saindo dos olhos, mas bem lá dentro está tensa como aço. Eu sei, posso sentir. E ela não descontrai um fio de cabelo, até conseguir afastar o aborrecimento – tê-lo "ajustado ao meio-ambiente", como ela diz.
Sob o seu domínio o Lado de Dentro está quase que completamente ajustado ao meio-ambiente. Mas o problema é que ela não pode estar presente o tempo todo. Tem de passar algum tempo do Lado de Fora. Assim, ela trabalha tendo em vista ajustar também o mundo do Lado de Fora. Trabalhando em conjunto com outros iguais a ela, a quem eu chamo de a Liga, que é uma enorme organização que tem como objetivo ajustar o Lado de Fora tão bem como ela ajustou o de Dentro, ela se tornou uma verdadeira perita em ajustar as coisas. Já era Chefona no lugar antigamente quando eu entrei, vindo do Lado de Fora, há tanto tempo, e já se vinha dedicando ao ajustamento Deus sabe desde quando.
E eu noto que ficou cada vez mais hábil através dos anos. A prática a equilibrou e fortaleceu a tal ponto que agora ela emite uma energia que se espalha em todas as direções através de fios finos como cabelo, pequenos demais para os olhos de qualquer pessoa, exceto os meus; eu a vejo sentar-se no centro dessa teia de fios como um robô vigilante, cuidar da sua rede com uma habilidade mecânica de inseto, saber a cada segundo qual o fio e para onde deve ir, e exatamente qual a corrente que deve enviar para obter os resultados que quer. Eu era assistente de eletricista no campo de treinamento, antes que o Exército me embarcasse para a Alemanha, e estudei um pouco de eletrônica no ano que passei na universidade, e foi assim que aprendi sobre a maneira como essas coisas podem ser aparelhadas.
O que ela está sonhando, ali no centro daqueles fios, é com um mundo de precisão, eficiência e limpeza como um relógio de bolso com as costas de vidro, um mundo em que é impossível quebrar a programação e em que todos os pacientes que não estão do Lado de Fora, obedientes sob o seu foco, são Crônicos em cadeiras de rodas com sondas que descem direto de cada perna de calça para o esgoto sob o assoalho. Ano após ano, ela vai acumulando o seu pessoal ideaclass="underline" médicos, de todas as idades e tipos, vêm e se erguem diante dela com idéias próprias sobre a maneira como uma enfermeira deveria ser dirigida, alguns com suficiente convicção para defender suas idéias, e ela encara esses médicos com olhos de gelo seco, entra dia, sai dia, até que eles se retiram sentindo calafrios sobrenaturais. "Eu lhe digo que não sei o que é" – dizem ao cara encarregado do pessoal. "Desde que comecei a trabalhar naquela enfermaria com aquela mulher, me sinto como se tivesse amônia correndo nas veias. Eu tremo o tempo todo, meus filhos se recusam a vir sentar-se no meu colo, minha mulher se recusa a dormir comigo. Eu insisto numa transferência… neurologia, tratamento de alcoólatras, pediatria, eu simplesmente não me importo!"
Ela vem mantendo isso assim há anos. Os médicos duram três semanas, três meses. Até que ela finalmente se decide por um homenzinho com uma testa grande e larga, bochechas grandes e caídas, como que espremido entre os olhinhos minúsculos como se outrora tivesse usado óculos que eram pequenos demais, e os tivesse usado durante tanto tempo que eles acabavam fazendo uma prega no meio do rosto dele, de forma que agora ele usa os óculos pendurados numa corrente presa ao botão do colarinho; eles oscilam na ponta do nariz minúsculo e estão sempre escorregando para um lado ou para outro, de forma que ele tem de inclinar a cabeça para trás quando fala, só para manter os óculos equilibrados. Este é o médico que ela escolhe.
Os três crioulos para o trabalho do dia ela consegue depois de anos de testes e recusas de milhares. Eles vêm até ela numa longa fileira negra de máscaras narigudas e mal-humoradas, odiando-a e à sua brancura de boneca de giz a partir do primeiro olhar. Ela os avalia e ao ódio de cada um durante um mês mais ou menos, depois os deixa ir, porque não odeiam o bastante. Quando finalmente arranja os três que ela quer – consegue um de cada vez, através de um período de vários anos, entrelaçando-os no seu plano e em sua rede – tem certeza absoluta de que odeiam o suficiente para serem capazes.
O primeiro, ela conseguiu cinco anos depois de minha vinda para aqui; um anão forte, de espinha torta, da cor de asfalto. A mãe dele foi violentada na Geórgia enquanto o pai estava de pé do lado, amarrado ao forno quente de ferro com tirantes de arado, o sangue escorrendo para dentro dos sapatos. O garoto assistiu a tudo de dentro de um armário, com cinco anos de idade e apertando o olho para espiar através da fenda entre a porta e a ombreira, e ele nunca mais cresceu uma polegada depois disso. Agora suas pálpebras pendem frouxas e finas das sobrancelhas como se tivesse um morcego empoleirado no osso do nariz. Pálpebras como couro cinzento, fino, ele as ergue só um pouco sempre que um novo homem branco entra na enfermaria, espia por baixo delas e examina o homem de alto a baixo e balança a cabeça só uma vez, como se tivesse, isso mesmo, tivesse acabado de obter uma resposta absolutamente positiva de uma coisa de que já tivesse certeza. Ele queria trazer uma meia cheia de chumbo para passarinho, logo no início, quando veio trabalhar, para ir pondo os pacientes em forma, mas ela lhe disse que não se fazia mais daquela maneira, obrigou-o a deixar a meia em casa e lhe ensinou a sua própria técnica; ensinou-lhe a não demonstrar seu ódio e a ficar calmo e esperar, esperar por uma pequena vantagem, um pequeno descuido, e então torcer a corda e manter a pressão constante. O tempo todo. É assim que a gente os põe em forma, ela lhe ensinou.