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– Dona, acho que você está cheia de merda – disse-lhe Harding. Ela olhou para ele e a mão se inclinou para o bloco por um segundo, mas depois ela se virou e entrou na Sala das Enfermeiras tornando a enfiar o bloco e o lápis no bolso do uniforme.

– Hum – disse Harding. – Parece que a nossa conversa foi um pouco insatisfatória. Mas também, quando lhe dizem que você está cheio de merda, que tipo de resposta escrita pode-se dar?

Ela tentou fazer como que sua ala voltasse à velha forma, mas era difícil com a presença de McMurphy ainda marchando pelos corredores, rindo alto nas sessões e cantando na privada. Ela não podia mais governar com seu antigo poder, sem precisar escrever coisas em pedaços de papel. Estava perdendo seus pacientes um após outro. Depois que Harding teve alta, tendo sido apanhado pela esposa, e George se transferiu para uma outra ala, só ficaram três de nós, dos que haviam feito parte do grupo da pescaria, eu, Martini e Scanlon.

Eu não queria ir ainda, porque ela me parecia segura demais, parecia estar esperando por mais um round, e eu queria estar lá caso se realizasse. E uma manhã, três semanas após a ausência de McMurphy, ela fez a sua última jogada.

A porta da ala se abriu e os crioulos empurraram para dentro uma cama Gurney com uma plaqueta pendurada que dizia em letras pretas: MCMURPHY, RANDLE P. PÓS-OPERATÓRIO. E abaixo disso estava escrito LOBOTOMIA.

Eles a empurraram para a enfermaria e a deixaram encostada na parede, perto dós Vegetais. Ficamos junto da cama, lendo a plaqueta. Então olhamos para a outra extremidade, para a cabeça afundada no travesseiro, um redemoinho de cabelos ruivos sobre um rosto branco como leite, exceto pelos hematomas vermelhos em volta dos olhos.

Depois de um minuto de silêncio, Scanlon se virou, cuspiu no chão.

– Aaah, que diabo aquela cadela está querendo jogar pra cima da gente, que diabo. Esse não é ele.

– Nada parecido com ele. – disse Martini.

– Ela pensa que somos burros?

– Oh, mas eles fizeram um trabalhinho bastante bem feito – disse Martini aproximando-se da cabeça e apontando enquanto falava. – Está vendo? Conseguiram botar o nariz quebrado e aquela cicatriz maluca, até as costeletas.

– Claro – resmungou Scanlon. – Mas que diabo! Eu abri caminho entre os outros pacientes e postei-me ao lado de Martini.

– Claro, eles podem fazer coisas como cicatrizes e narizes quebrados – disse eu. – Mas eles não podem fazer este olhar. Não há nada neste rosto. É igualzinho a um desses manequins de lojas, não acha, Scanlon?

Scanlon cuspiu de novo.

– Isso mesmo. O treco todo, sabe, é inexpressivo demais. Qualquer pessoa pode ver isso.

– Olhe aqui – disse um dos pacientes, levantando o lençol – tatuagens.

– Claro – respondi – eles podem fazer tatuagens. Mas e os braços, hem? Os braços? Não poderiam fazê-los. Os braços dele eram grandes!

Durante o resto da tarde, Scanlon, Martini e eu ridicularizamos o que Scanlon chamava de falsificação vagabunda de teatro de variedades deitada ali na cama Gurney, mas à medida que as horas iam passando e a inchação em volta dos olhos ia diminuindo, vi caras virem aproximando-se para olhar para ele. Eu os observei virem andando, fingindo que iam até a prateleira de revistas ou até o bebedouro, de forma que pudessem dar mais uma olhada para aquele rosto. Eu só tinha certeza de uma coisa: ele nunca iria deixar uma coisa daquelas ficar deitada ali na enfermaria com o seu nome pregado nela por 20 ou 30 anos, para que a Chefona pudesse utilizá-la como exemplo do que pode acontecer, se você contestar o sistema. Eu tinha certeza disso.

Esperei naquela noite até que todos do dormitório estivessem dormindo, e até que os crioulos tivessem acabado de fazer suas rondas. Então virei minha cabeça no travesseiro de forma a poder ver a cama ao lado da minha. Eu vinha escutando a respiração há horas, desde que eles haviam trazido a Gurney e colocado a maca na cama. ouvindo os pulmões se engasgando e parando, então começando de novo, esperando enquanto ouvia, que eles parassem em definitivo – mas ainda não me havia virado para olhar.

Pela janela, a lua derramava no dormitório uma luz como espuma de leite. Eu me sentei na cama, e a minha sombra caiu sobre o corpo, parecendo cortá-lo ao meio entre os quadris e os ombros. A inchação havia diminuído bastante nos olhos, e eles estavam abertos; olhavam fixo para a lua, abertos e sem sonho, vidrados por estarem há tanto tempo sem piscar, até que se tornaram fusíveis queimados numa caixa de fusíveis. Fiz um movimento para pegar o travesseiro e os olhos se pregaram no movimento e me seguiram quando me levantei e atravessei a pequena distância entre as camas.

O corpo grande e forte tinha um apego violento à vida. Lutou durante muito tempo contra a tomada dela, esperneando e se contorcendo tanto que finalmente tive de me deitar sobre o corpo pelo que me pareceu dias. Até que as contorções pararam. Até que ficou imóvel por algum tempo, estremeceu uma vez, e então ficou imóvel de novo. Então me levantei, tirei o travesseiro e vi sob o luar que a expressão não se havia modificado naquele olhar inexpressivo e morto, nem um pouco, mesmo sob a sufocação. Com os polegares baixei as pálpebras e as segurei até que ficaram na posição. Então tornei a me deitar na cama.

Fiquei deitado por algum tempo, segurando as cobertas sobre a cabeça e pensei que não estava fazendo barulho nenhum, mas a voz de Scanlon, sussurrando lá da sua cama, me disse que estava enganado.

– Calma, chefe – disse ele. – Vá com calma. Está tudo bem.

– Cale a boca – murmurei. – Vá dormir de novo. Ficou tudo em silêncio por algum tempo, então o ouvi sussurrar de novo e perguntar:

– Está acabado? Disse-lhe que sim.

– Cristo – disse ele então. – Ela vai saber. Você sabe disso, não sabe? É claro que ninguém vai poder provar nada, qualquer um poderia bater as botas num pós-operatório como ele estava, acontece toda hora… mas ela, ela vai saber.

Eu nada disse.

– Se eu fosse você, chefe, eu dava o fora daqui. Sim, senhor. Vou dizer-lhe uma coisa. Você dá o fora daqui e eu vou dizer que o vi levantar-se e andar por aí depois de você ter ido, e assim protejo você. É a melhor idéia, não acha?

– Oh, sim, muito simples. É só pedir a eles para destrancarem a porta e me deixarem sair.

– Não. Ele uma vez mostrou a você como. Naquela primeira semana. Lembra?

Eu não respondi e ele não disse mais nada, e ficou tudo em silêncio, de novo, no dormitório. Fiquei deitado ali mais alguns minutos e então me levantei e comecei a me vestir, meti a mão na gaveta da mesinha de cabeceira de McMurphy, peguei o gorro dele e o experimentei. Era pequeno demais, e de repente tive vergonha de ter tentado usá-lo. Atirei-o sobre a cama dè Scanlon quando saí do dormitório. Quando saí, ele disse:

– Calma, companheiro.

A lua brilhando através da tela das janelas da Sala da Banheira mostrava a forma baixa e pesada do painel de controles, cintilando nos metais cromados e nos mostradores de vidro, tão fria que quase podia ouvi-los estalar. Tomei fôlego, inclinei-me e segurei as alças. Equilibrei as pernas e ouvi o ranger do peso sob os meus pés. Puxei para cima de novo e ouvi os arames e conexões sendo arrancados do chão. Eu o ergui sobre os joelhos e consegui passar uma das mãos em volta dele, e a outra embaixo. O cromo estava frio contra o meu pescoço e o lado da minha cabeça. Encostei as costas na tela e deixei que o impulso enfiasse o painel através da tela e da janela com um estrondo e barulho de coisas quebrando. O vidro se espatifou voando para fora sob o luar, como uma água fria brilhante batizando a terra adormecida. Arquejando, pensei por um segundo em voltar lá e buscar Scanlon e alguns dos outros, mas então ouvi o guinchado dos sapatos dos crioulos correndo no corredor, pus a mão no parapeito da janela e saltei atrás do painel para o luar.

Corri pelo jardim na direção em que me lembrava de ter visto o cachorro dirigir-se para a estrada. Lembro-me de que estava dando passos enormes enquanto corria, parecia que tomava impulso e flutuava durante muito tempo antes que o meu outro pé batesse na terra. Eu me sentia como se estivesse voando. Livre. Ninguém se dá ao trabalho de vir atrás de um fugitivo de instituição mental, eu sabia, e Scanlon podia dar um jeito quando perguntassem sobre o homem morto – não precisava estar correndo daquele jeito. Mas não parei. Corri durante quilômetros antes de parar e andar até a beira da estrada.

Peguei uma carona com um cara, um mexicano, que estava indo para o norte com um caminhão cheio de ovelhas, e lhe contei que era um lutador profissional índio, que o sindicato havia tentado trancafiar num hospício. A história foi tão convincente que ele parou muito depressa, me deu um casaco de couro para esconder o meu pijama e me emprestou 10 dólares para a comida enquanto eu fosse de carona para o Canadá. Eu o fiz escrever o seu nome e endereço antes que se fosse e lhe disse que enviaria o dinheiro assim que arranjasse algum.

Talvez eu vá para o Canadá, mas acho que a caminho vou dar uma parada lá por Columbia. Gostaria de dar uma passada por Portland, o rio Hood e The Dalles, para ver se ainda estão lá alguns dos caras que eu conhecia na aldeia, que não se embebedaram até o embotamento. Gostaria de ver o que eles têm feito desde que o Governo tentou comprar-lhes o direito de serem índios. Eu até ouvi dizer que alguns da tribo recomeçaram a construir seus andaimes de corda e madeira ao longo daquela grande represa hidroelétrica de um milhão de dólares, e estão arpoando salmões no vertedouro. Daria um bocado para ver isso. Mas principalmente, o que eu gostaria mesmo era de ver a paisagem nos arredores da garganta, só para lembrar um pouco daquilo com clareza de novo. Estive longe por muito tempo.

***