Foi então que Veronika descobriu uma maneira de passar o tempo — já que dez minutos haviam transcorrido, e ainda não notara qualquer diferença em seu organismo. O último ato de sua vida ia ser uma carta para aquela revista, explicando que a Eslovénia era uma das cinco republicas resultantes da divisão da antiga Yugoslávia.
Deixaria a carta como seu bilhete de suicídio. De resto, não daria nenhuma explicação sobre os verdadeiros motivos de sua morte.
Quando encontrassem seu corpo, concluiriam que se matou porque uma revista não sabia onde era o seu pais. Riu com a ideia de ver uma polemica nos jornais, com gente a favor e contra seu suicídio em honra da causa nacional. E ficou impressionada com a rapidez com que mudara de ideia, já que momentos antes pensara exatamente o oposto — o mundo e os problemas geográficos já não lhe diziam respeito.
Escreveu a carta. O momento de bom humor fez com que quase mudasse de ideia a respeito da morte, mas já havia tomado os comprimidos, era tarde demais para voltar.
De qualquer maneira, já tivera momentos de bom humor como esse, e não estava se matando porque era uma mulher triste, amarga, vivendo em constante depressão. Passara muitas tardes de sua vida caminhando, alegre, pelas ruas de Lubljana, ou olhando -da janela do seu quarto no convento — a neve que caia na pequena praça com a estatua do poeta. Certa vez ficara quase um mês flutuando nas nuvens, porque um homem desconhecido, no centro daquela mesma praça, lhe dera uma flor.
Acreditava ser uma pessoa absolutamente normal. Sua decisão de morrer devia-se a duas razoes muito simples, e tinha certeza que, se deixasse um bilhete explicando, muita gente ia concordar com ela.
A primeira razão: tudo em sua vida era igual, e — uma vez passada a juventude — a tendência era que tudo passasse a decair, a velhice começasse a deixar marcas irreversíveis, as doenças chegassem, os amigos partissem. Enfim, continuar vivendo não acrescentava nada; ao contrário, as possibilidades de sofrimento aumentavam muito.
A segunda razão era mais filosófica: Veronika lia jornais, assistia TV, e estava a par do que se passava no mundo. Tudo estava errado, e ela não tinha como consertar aquela situação
— o que lhe dava uma sensação de inutilidade total .
Daqui a pouco, porém, teria a última experiência de sua vida, e esta prometia ser muito diferente: a morte. Escreveu a tal carta para a revista, deixou o assunto de lado, concentrou-se em coisas mais importantes e mais próprias para o que estava vivendo — ou morrendo — naquele minuto.
Procurou imaginar como seria morrer, mas não conseguiu chegar a nenhum resultado.
De qualquer maneira, não precisava se importar com isso, pois saberia daqui a poucos minutos.
Quantos minutos?
Não tinha ideia. Mas deliciava-se com o fato de que ia conhecer a resposta para o que todos se perguntavam: Deus existe?
Ao contrário de muita gente, esta não fora a grande discussão interior de sua vida. No antigo regime comunista, a educação oficial dizia que a vida acabava com a morte, e ela terminou se acostumando com a ideia. Por outro lado, a geração dos seus pais e de seus avós, ainda frequentava a igreja, fazia orações e peregrinações, e tinha a mais absoluta convicção que Deus prestava atenção no que diziam.
Aos 2 4 anos, depois de ter vivido tudo que lhe fora permitido viver — e olha que não foi pouca coisa! — Veronika tinha quase certeza de que tudo acabava com a morte. Por isso escolhera o suicídio: liberdade, enfim. Esquecimento para sempre.
NO fundo do seu coração, porém, restava a dúvida: e se Deus existe? Milhares de anos de civilização faziam do suicídio um tabu, uma afronta a todos os códigos religiosos: o homem luta para sobreviver, e não para entregar-se. A raça humana deve procriar. A sociedade precisa de mão-de-obra. Um casal necessita uma razão para continuar junto, mesmo depois que o amor deixou de existir, e um pais precisa de soldados, políticos, e artistas.
«Se Deus existe, o que eu sinceramente não acredito, entenderá que há um limite para a compreensão humana. Foi Ele quem criou esta confusão, onde há miséria, injustiça, ganância, solidão. Sua intenção deve ter sido ótima, mas os resultados são nulos; se Deus existe, Ele será generoso com as criaturas que desejaram ir embora mais cedo desta Terra, e pode até mesmo pedir desculpas por nos ter obrigado a passar por aqui.»
Que se danassem os tabus e superstições. Sua religiosa mãe dizia: Deus sabe o passado, o presente e o futuro. Neste caso, já lhe havia colocado neste mundo com plena consciência de que ela terminaria por se matar, e não iria ficar chocado com seu gesto.
Veronika começou a sentir um leve enjoo, que foi crescendo rapidamente.
Em poucos minutos, já não podia mais concentrar-se na praça do lado de fora de sua janela. Sabia que era inverno, devia ser em torno de quatro horas da tarde, e o sol estava se pondo rápido. Sabia que outras pessoas continuariam vivendo; neste momento um rapaz passava diante de sua janela, e a viu, sem entretanto ter a menor ideia de que ela estava prestes a morrer. Um grupo de músicos bolivianos (onde é a Bolivia? Por que os artigos de revistas não perguntam isso?) tocava diante da estátua de France Preseren, o grande poeta esloveno, que marcara profundamente a alma do seu povo.
Será que conseguiria escutar até o fim a música que vinha da praça? Seria uma bela recordação desta vida: o entardecer, a melodia que contava os sonhos do outro lado do mundo, o quarto aquecido e aconchegante, o rapaz bonito e cheio de vida que passava, resolvera parar, e agora a encarava. Como percebia que o remédio já estava fazendo efeito, era a última pessoa que a estava vendo.
Ele sorriu. Ela retribuiu o sorriso — não tinha nada a perder. Ele acenou; ela resolveu fingir que estava olhando outra coisa, afinal o rapaz estava querendo ir longe demais. Desconcertado, ele continuou seu caminho, esquecendo para sempre aquele rosto na janela.
Mas Veronika ficou contente de, mais uma vez, ter sido desejada. Não era por ausência de amor que estava se matando. Não era por falta de carinho de sua familia, nem problemas financeiros, nem uma doença incurável.
Veronika decidira naquela tarde bonita de Lubljana, com músicos bolivianos tocando na praça, com um jovem passando diante da sua janela, e estava contente com o que os seus olhos viam e seus ouvidos escutavam. Mais contente ainda estava, por não ter que ficar vendo aquelas mesmas coisas por mais trinta, quarenta, ou cinquenta anos — pois iam perder toda a sua originalidade, e se transformar na tragédia de uma vida onde tudo se repete, e o dia anterior é sempre igual ao seguinte.
O estômago, agora, começava a dar voltas, e ela sentia-se muito mal. «Engraçado, pensei que uma dose excessiva de calmantes me faria dormir imediatamente». Mas o que estava acontecendo era um estranho zumbido nos ouvidos, e a sensação de vomito.
«Se vomitar, não morro».
Decidiu esquecer as cólicas, procurando concentrar-se na noite que caia com rapidez, nos bolivianos, nas pessoas que começavam a fechar suas lojas e sair. O barulho no ouvido tornava-se cada vez mais agudo, e — pela primeira vez desde que tomara os comprimidos, Veronika sentiu medo, um medo terrível do desconhecido.
Mas foi rápido. Logo perdeu a consciência.
Quando abriu os olhos, Veronika não pensou: «isso deve ser o céu». O céu jamais utilizaria uma lâmpada fluorescente para iluminar o ambiente, e a dor — que apareceu uma fração de segundo depois — era tipica da Terra. Ah, esta dor da Terra — ela é única, não pode ser confundida com nada.
Quis mexer-se, e a dor aumentou. Uma série de pontos luminosos apareceram, e mesmo assim Veronika continuou entendendo que aqueles pontos não eram estrelas do Paraiso, mas consequências do seu intenso sofrimento.