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começaram a ficar iguais. Quando ficam iguais, passam mais rápido: mais dois ou três dias, e não seria necessário escovar os dentes ou pentear o cabelo. Veronika percebia o seu coração enfraquecendo rapidamente: perdia o fôlego com facilidade, sentia dores no peito, não tinha apetite, e ficava tonta cada vez que fazia qualquer esforço.

Depois do incidente com a Fraternidade, chegara a pensar algumas vezes: «se eu tivesse uma escolha, se tivesse compreendido antes que meus dias eram iguais porque eu assim os desejava, talvez...»

Mas a resposta era sempre a mesma: «não há talvez, porque não há escolha». E a paz interior voltava, porque tudo estava determinado.

Neste periodo, desenvolveu uma relação (não uma amizade, porque amizade exige uma longa convivência, e isso seria impossível) com Zedka. Jogavam baralho — o que ajuda o tempo a passar mais rápido — e as vezes caminhavam juntas, em silêncio, pelo jardim.

Na manhã daquele dia, logo depois do café, todos sairam para o «banho de sol» — conforme exigia o regulamento. Um enfermeiro, porém, pediu que Zedka voltasse a enfermaria, pois era o dia do «tratamento».

Veronika estava tomando café com ela, e escutou o comentário.

— O que é «tratamento»?

— É um processo antigo, da década dos sessenta, mas os médicos acham que pode acelerar a recuperação. Você quer ver?

— Você disse que tinha depressão. Não basta tomar o remédio para repor a tal substancia que falta?

— Você quer ver? — insistiu Zedka.

Ia sair da rotina, pensou Veronika. Ia descobrir novas coisas, quando não precisava aprender mais nada — apenas ter paciência. Mas sua curiosidade foi mais forte, e ela fez que sim com a cabeça.

— Isto não é uma exibição — reclamou o enfermeiro.

— Ela vai morrer. E não viveu nada. Deixa que venha conosco.

Veronika assistiu a mulher ser amarrada na cama, sempre com um sorriso nos lábios.

— Conta o que está acontecendo — disse Zedka para o enfermeiro. — Ou ela vai ficar assustada.

Ele virou-se e mostrou uma injeção. Parecia feliz de ser tratado como um médico, que explica aos estagiários os procedimentos corretos e os tratamentos adequados.

— Nesta seringa, está uma dose de insulina — disse, dando as suas palavras um tom grave e técnico. — É usada por diabéticos para combater as altas doses de açúcar. Entretanto, quando a dose é muito mais elevada que a habitual, a queda na taxa de açúcar provoca o estado de coma.

Ele bateu levemente na agulha, retirou o ar, e aplicou-o na veia do pé direito de Zedka.

— É isso que vai acontecer agora. Ela vai entrar num coma induzido. Não se assuste se seus olhos ficarem vidrados, e não espere que a reconheça enquanto estiver sob o efeito da medicação.

— Isso é horroroso, desumano. As pessoas lutam para sair, e não para entrar em coma.

— As pessoas lutam para viver, e não para cometerem suicídio — respondeu o enfermeiro, mas Veronika ignorou a provocação. — E o estado de coma deixa o organismo em repouso; suas funções são drasticamente reduzidas, a tensão existente desaparece.

Enquanto falava, injetava o liquido, e os olhos de Zedka iam perdendo o brilho.

— Fique tranquila — dizia Veronika para ela. — Você é absolutamente normal, a história que você me contou sobre o rei...

— Não perca seu tempo. Ela já não pode mais ouvi-la. A mulher deitada na cama, que minutos antes parecia

lúcida e cheia de vida, agora tinha os olhos fixos num ponto qualquer, e um liquido espumante saindo de sua boca.

— O que você fez? — gritou para o enfermeiro.

— Meu dever.

Veronika começou a chamar por Zedka, a gritar, a ameaçar com a policia, os jornais, os direitos humanos.

— Fique calma. Mesmo estando num sanatório, é preciso respeitar algumas regras.

Ela viu que o homem estava falando sério, e teve medo. Mas como não tinha mais nada a perder, continuou gritando.

De onde estava, Zedka podia ver a enfermaria com todos os leitos vazios — exceto um, onde repousava o seu corpo amarrado, com uma menina olhando espantada para ele. A menina não sabia que aquela pessoa na cama ainda tinha suas funções biológicas funcionando perfeitamente, mas sua alma estava no ar, quase tocando o teto, experimentando uma profunda paz.

Zedka estava fazendo uma viagem astral — algo que tinha sido uma surpresa durante o primeiro choque de insulina. Não tinha comentado com ninguém; estava ali apenas para curar uma depressão, e pretendia deixar aquele lugar para sempre, assim que suas condições permitissem.Se começasse a comentar que havia saido do corpo, pensariam que estava mais louca do que quando entrara para Villete. Entretanto, assim que voltara ao corpo, começara a ler sobre aqueles dois temas: o choque de insulina, e a estranha sensação de flutuar no espaço.

Não havia muita coisa sobre o tratamento: tinha sido aplicado pela primeira vez por volta de 1930, mas fora completamente banido de hospitais psiquiátricos, pela possibilidade der causar danos irreversíveis no paciente. Uma vez, durante uma sessão de choque, visitara em corpo astral o escritório do Dr. Igor, justamente no momento em que ele discutia o tema com alguns dos donos do asilo. «É um crime!» dizia ele. «Mas é mais barato e mais rápido!» respondera um dos acionistas. «Além disso, quem se interessa por direitos de louco? Ninguém vai reclamar nada!»

Mesmo assim, alguns médicos ainda o consideravam como uma forma rápida de tratar a depressão. Zedka procurara — e pedira emprestado — tudo quanto era tipo de texto que tratasse do choque insulinico, principalmente o relato de pacientes que já haviam passado por aquilo. A história era sempre a mesma: horrores e mais horrores, sem que nenhum deles tivesse experimentado qualquer coisa parecida com que ela vivia neste momento.

Concluiu — com toda razão — que não havia qualquer relação entre a insulina e a sensação de que sua consciência saia do corpo. Muito pelo contrário, a tendência daquele tipo de tratamento era diminuir a capacidade mental do paciente.

Começou a pesquisar sobre a existência da alma, passou por alguns livros de ocultismo, até que um dia terminou encontrando uma vasta literatura que descrevia exatamente o que ela estava experimentando: chamava-se «viagem astral», e muitas pessoas já haviam passado por isso. Algumas resolveram descrever o que haviam sentido, e outras chegaram mesmo a desenvolver técnicas [ara provocar a saida do corpo. Zedka agora conhecia estas técnicas de cor, e as utilizava todas as noites, para ir onde queria.

Os relatos das experiências e visões variaram, mas todos tinham alguns pontos em comum; o estranho e irritante ruido que precede a separação do corpo e do espirito, seguido do choque, de uma rápida perda de consciência, e logo a paz e a alegria de estar flutuando no ar, presa por um cordão prateado ao corpo — um cordão que podia se esticar indefinidamente, embora corressem lendas ( nos livros, é claro) de que a pessoa morreria se deixasse o tal fio de prata arrebentar.

Sua experiência, porém, mostrara que podia ir tão longe quanto quisesse, e o cordão não se rompia nunca. Mas, de uma maneira geral, os livros tinham sido muito úteis para ensina-la a aproveitar cada vez mais a viagem astral. Aprendera, por exemplo, que quando quisesse mudar de um lugar para o outro, tinha que desejar projetar-se no espaço, mentalizando onde queria chegar. Ao invés de fazer um percurso como os aviões — que saem de um lugar e percorrem determinada distancia até chegar a outro ponto — a viagem astral era feita por túneis misteriosos. Mentalizava-se um lugar, entrava-se no tal túnel a uma velocidade espantosa, e local desejado aparecia.

Fora também através dos livros que perdera o medo das criaturas que habitavam o espaço. Hoje não havia ninguém na enfermaria, mas a primeira vez que sairá do seu corpo encontrara muita gente olhando, divertindo-se com sua cara de surpresa.

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