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Dois ou três anos depois, outra mulher aparecerá em sua vida. Eu vou descobrir — porque vi, ou porque alguém me contou -mas desta vez finjo que não sei. Gastei toda a minha energia lutando contra a amante anterior, não sobrou nada, é melhor aceitar a vida como ela é na realidade, e não como eu imaginava que fosse. Minha mãe tinha razão.

Ele continuará sendo gentil comigo, eu continuarei o meu trabalho na biblioteca, os meus sanduíches na praça do teatro, os meus livros que nunca consigo terminar de ler, os programas de televisão que continuarão sendo os mesmos daqui a dez, vinte, cinquenta anos.

Só que comerei os sanduíches com culpa, porque estou engordando; e não irei mais a bares, porque tenho um marido que me espera em casa para cuidar dos filhos.

A partir dai, é esperar os meninos crescerem, e ficar todo dia pensando no suicídio, sem coragem de comete-lo. Um belo dia, chego a conclusão que a vida é assim, não adianta, nada mudará. E me conformo.

Veronika encerrou seu monologo interior, e fez uma promessa a si mesmo: não sairia de Villete com vida. Era melhor acabar com tudo agora, enquanto ainda tinha coragem e saúde para morrer.

Dormiu e acordou várias vezes, notando o número de aparelhos a sua volta diminuia, o calor de seu corpo aumentava, e

as enfermeiras mudavam de rosto -mas sempre havia alguém ao lado dela. As cortinas verdes deixavam passar o som de alguém chorando, gemidos de dor, ou vozes que sussurravam coisas em tom calmo e técnico. De vez em quando um aparelho distante zumbia, e ela escutava passos apressados no corredor. Nestas horas, as vozes perdiam seu tom técnico e calmo, e passavam a ser tensas, dando ordens rápidas.

Num dos seus momentos de lucidez, uma enfermeira lhe perguntou:

— Você não quer saber o seu estado?

— Eu sei qual é — respondeu Veronika. — E não é o que você está vendo em meu corpo; é o que está acontecendo em minha alma.

A enfermeira ainda tentou conversar um pouco, mas Veronika fingiu que dormia.

Pela primeira vez, quando abriu os olhos, percebeu que havia mudado de lugar — estava no que parecia ser uma grande enfermaria. A agulha de um frasco de soro ainda continuava em seu braço — mas todos os outros fios e agulhas tinham sido retirados.

Um medico alto, com a tradicional roupa branca

contrastando com os cabelos e bigode artificialmente tingidos de negro, encontrava-se de pé, em frente a sua cama. A seu lado, um jovem estagiário segurava uma prancheta, e tomava notas.

— Há quanto tempo estou aqui? — perguntou, notando que falava com uma certa dificuldade, sem conseguir pronunciar direito as palavras.

— Duas semanas neste quarto, depois de 5 dias na Unidade de Emergência — respondeu o mais velho. — E dê graças a Deus por ainda estar aqui.

O mais jovem pareceu surpreso, como se esta última frase não combinasse exatamente com a realidade. Veronika, de imediato, notou sua reação, e seus instintos se aguçaram: tinha ficado mais tempo? Ainda estava correndo algum risco? Começou a prestar atenção em cada gesto, cada movimento dos dois; sabia que era inútil fazer perguntas, eles jamais diriam a verdade — mas, se fosse esperta, podia entender o que estava acontecendo.

— Diga seu nome, endereço, estado civil, e data do nascimento — continuou o mais velho.

Veronika sabia seu nome, seu estado civil, e sua data de nascimento, mas reparou que havia espaços em branco em sua memória: ela não conseguia lembrar direito o endereço.

O médico colocou uma lanterna em seus olhos, e examinou-os prolongadamente, em silencio. O mais jovem fez a mesma coisa. Os dois trocaram olhares, que não significavam absolutamente nada.

— Você disse para a enfermeira da noite que não sabíamos ver sua alma? — perguntou o mais moço.

Veronika não se lembrava. Tinha dificuldades em saber direito quem era, e o que estava fazendo ali.

— Você tem sido constantemente induzida ao sono através de calmantes, e isso pode afetar um pouco a sua memória. Por favor, tente responder tudo o que perguntarmos.

E os médicos começaram um questionário absurdo, querendo saber quais os jornais importantes em Lubljana,quem era o poeta cuja estátua está na praça principal (ah, aquilo ela não esqueceria nunca, todo esloveno traz a imagem de Preseren gravado na alma), a cor do cabelo de sua mãe, o nome dos amigos de trabalho, os livros mais retirados da biblioteca.

No começo, Veronika cogitou não responder — sua memória continuava confusa. Mas, a medida que o questionário avançava, ela ia reconstruindo o que havia esquecido. Em determinado momento, lembrou-se que agora que estava num hospício, e os loucos não tem nenhuma obrigação de serem coerentes; mas, para seu próprio bem, e para manter os médicos por perto, a fim de ver se conseguia descobrir algo mais a respeito do seu estado, ela começou a fazer um esforço mental. A medida em que citava os nomes e fatos, não recuperava apenas a memória — mas também sua personalidade, seus desejos, sua maneira de ver a vida. A ideia do suicídio, que naquela manhã parecia enterrada debaixo de várias camadas de sedativos, voltava novamente a tona.

— Está bem — disse o mais velho, no final do questionário.

— Quanto tempo ainda vou ficar aqui?

O mais moço abaixou os olhos, e ela sentiu que tudo ficara suspenso no ar, — como se, a partir da resposta para aquela pergunta, uma nova história de sua vida fosse escrita, e ninguém mais conseguisse modifica-la.

— Pode dizer — comentou o mais velho. — Muitos outros pacientes já ouviram os boatos, e ela vai terminar sabendo de qualquer jeito; é impossível ter segredos neste local.

— Bem, foi você quem determinou seu próprio destino -suspirou o moço, medindo cada palavra. — Então, saiba das consequências do seu ato: durante o coma provocado pelos narcóticos, seu coração foi irremediavelmente afetado. Houve uma necrose no ventriloquo...

— Seja mais simples — disse o mais velho. Vá direto ao que interessa.

— O seu coração foi irremediavelmente afetado. E vai deixar de bater em breve.

— O que significa isso? — perguntou, assustada.

— O fato do coração deixar de bater significa apenas uma coisa: morte fisica. Não sei quais são suas crenças religiosas, mas. . .

— Em quanto tempo meu coração vai parar? — interrompeu Veronika.

— Cinco dias, uma semana no máximo.

Veronika se deu conta que, por detrás da aparência e do comportamento profissional, por detrás do ar de preocupação, aquele rapaz estava tendo um imenso prazer no que dizia. Como se ela merecesse o castigo, e servisse de exemplo a todos os outros.

Durante toda a sua vida, Veronika percebera que um imenso grupo de pessoas que conhecia comentavam os horrores da vida alheia como se estivessem muito preocupados em ajudar — mas na verdade se compraziam com o sofrimento dos outros, porque isto os fazia crer que eram felizes, a vida tinha sido generosa com eles. Ela detestava este tipo de gente: não ia dar aquele rapaz

nenhuma chance de se aproveitar do seu estado, para ocultar as suas próprias frustrações.