— Mas sou, embora esteja sendo curada, porque o meu caso é simples: basta recolocar no organismo uma determinada substância quimica. Entretanto, espero que esta substancia resolva apenas o meu problema de depressão crónica; quero continuar louca, vivendo minha vida da maneira que sonho, e não da maneira que os outros desejam. Sabe o que existe lá fora, além dos muros de Villete?
— Gente que bebeu do mesmo poço.
— Exatamente — disse Zedka. — Acham que são normais, porque todos fazem a mesma coisa. Vou fingir que também bebi daquela água.
— Pois eu bebi, e é este, justamente, o meu problema. Nunca tive depressão, nem grandes alegrias, ou tristezas que durassem muito. Meus problemas são iguais aos de todo mundo.
Zedka ficou algum tempo em silencio.
— Você vai morrer, nos disseram.
Veronika hesitou um instante: podia confiar naquela estranha? Mas precisava arriscar.
— Só daqui há cinco, seis dias. Fico pensando se existe um meio de morrer antes. Se você, ou alguém aqui dentro conseguisse arranjar novos comprimidos, tenho certeza de que meu coração não aguentaria desta vez. Entenda o quanto estou sofrendo por ter que ficar esperando a morte, e me ajude.
Antes que Zedka pudesse responder, a enfermeira apareceu com uma injeção.
— Posso aplica-la eu mesma — disse. — Mas, dependendo de sua vontade, posso pedir aos guardas lá fora que me ajudem.
— Não gaste sua energia a toa — disse Zedka para Veronika. — Poupe suas forças, se quiser conseguir o que me pede.
Veronika levantou-se, voltou a sua cama, e deixou que a enfermeira cumprisse sua tarefa.
Foi seu primeiro dia normal num asilo de loucos. Saiu da enfermaria, tomou café no grande refeitório onde homens e mulheres comiam juntos. Reparou que, ao contrário do que mostravam nos filmes — escândalos, gritarias, pessoas fazendo gestos demenciais — tudo parecia envolto numa aura de silencio opressivo; parecia que ninguém desejava repartir seu mundo interior com estranhos.
Depois do café (razoável , não se podia culpar as refeições pela péssima fama de Villete) — sairam todos para um banho de sol. Na verdade, não havia sol algum — a temperatura estava abaixo de zero, e o jardim encontrava-se coberto de neve.
— Não estou aqui para conservar minha vida, mas para perde-la — disse Veronika a um dos enfermeiros.
— Mesmo assim, precisa sair para o banho de sol.
— Vocês é que são são loucos: não há sol!
— Mas há luz, e ela ajuda a acalmar os internos. Infelizmente nosso inverno dura muito; se não fosse assim, teríamos menos trabalho.
Era inútil discutir: saiu, caminhou um pouco, olhando tudo a sua volta, e procurando disfarçadamente uma maneira de fugir. O muro era alto, como exigiam os construtores de quartéis antigos, mas as guaritas para sentinelas estavam desertas. O jardim era contornado por prédios de aparência militar, que hoje abrigavam enfermarias masculinas, femininas, os escritórios de administração, e as dependências dos empregados. Ao final de uma primeira e rápida inspeção, notou que o único lugar realmente vigiado era o portão principal, onde todos que entravam e saiam tinham suas identidades verificadas por dois guardas.
Tudo parecia estar voltando ao lugar no seu cérebro. Para fazer um exercício de memória, começou a tentar lembrar-se de pequenas coisas — como o lugar onde deixava a chave do seu quarto, o disco que acabara de comprar, o mais recente pedido que lhe fizeram na biblioteca.
— Sou Zedka — disse uma mulher, se aproximando.
Na noite anterior, não pudera ver seu rosto — estivera agachada ao lado da cama todo o tempo da conversa. Ela devia ter aproximadamente 35 anos, e parecia absolutamente normal.
— Espero que a injeção não tenha causado muito problema. Com o tempo o organismo se acostuma, e os calmantes perdem o efeito.
— Estou bem.
— Aquela nossa conversa ontem a noite...o que você me pediu, lembra?
— Perfeitamente.
Zedka pegou-a por um braço, e começaram a caminhar juntas, por entre as muitas arvores sem folhas do pátio. Além dos muros, podia-se ver as montanhas desaparecendo nas nuvens.
— Está frio, mas é uma bonita manhã — disse Zedka. — É curioso, mas minha depressão nunca aparecia em dias como este, nublado, cinzento, frio. Quando o tempo estava assim, eu sentia que a natureza estava de acordo comigo, mostrava minha alma. Por outro lado, quando aparecia o sol, as crianças começavam a brincar nas ruas, e todos estavam contentes com a beleza do dia, eu me sentia péssima. Como se fosse injusto que toda aquela exuberância se mostrasse, e eu não pudesse participar.
Com delicadeza, Veronika soltou-se do braço da mulher. Não gostava de contatos fisicos.
— Você interrompeu sua frase. Você estava falando do meu pedido.
— Tem um grupo aqui dentro. São homens e mulheres que já podiam ter alta, estar em casa — mas não querem sair. As razões para isto são muitas: Villete não é tão mal como dizem, embora esteja longe de ser um hotel de cinco estrelas. Aqui dentro, todos podem dizer o que pensam, fazer o que desejam, sem ouvir qualquer tipo de critica: afinal de contas, estão em um hospício. Então, na hora das inspeções do governo, estes homens e mulheres comportam-se como se estivessem num grau de insanidade perigosa, já que alguns deles estão aqui às custas do Estado. Os médicos sabem disso, mas parece que existe uma ordem dos donos, deixando que esta situação permaneça como está — já que existem mais vagas do que doentes.
— Eles podem arranjar os comprimidos?
— Procure entrar em contacto com eles; chamam seu grupo de A Fraternidade.
Zedka apontou para uma mulher com cabelos brancos, que conversava animadamente com outras mulheres mais jovens.
— Seu nome é Mari, e ela é da Fraternidade. Pergunte a ela.
Veronika começou a andar na direção de Mari, mas Zedka a interrompeu:
— Agora não: ela está se divertindo. Não irá interromper o que lhe dá prazer, só para ser simpática com uma estranha.Se ela reagir mal, você nunca mais você terá uma chance de aproximar-se. Os loucos sempre acreditam na primeira impressão.
Veronika riu com a entonação que Zedka dera para a palavra loucos. Mas ficou inquieta, porque aquilo tudo estava parecendo normal, bom demais. Depois de tantos anos indo do trabalho para o bar, do bar para a cama de um namorado, da cama para o quarto, do quarto para a casa da mãe — agora ela estava vivendo uma experiência com a qual nunca sonhara: o asilo, a loucura, o hospício. Onde as pessoas não sentiam vergonha de confessar-se loucas. Onde ninguém interrompia o que gostava, só para ser simpático com os outros.
Começou a duvidar se Zedka estava falando sério, ou se era uma maneira que os doentes mentais adotam para fingir que vivem num mundo melhor que os outros. Mas que importância tinha isso? Estava vivendo algo interessante, diferente, jamais esperado: imagine um lugar onde as pessoas se fingem de loucas, para fazer exatamente o que querem?
Neste exato momento, o coração de Veronika deu uma pontada. A conversa com o médico voltou imediatamente ao seu pensamento, e ela se assustou.
— Quero andar sozinha — disse para Zedka. Afinal de contas, era também uma louca, e não precisava ficar querendo agradar ninguém.
A mulher se afastou, e Veronika ficou contemplando as montanhas além dos muros de Villete. Uma leve vontade de viver pareceu surgir, mas Veronika a afastou com determinação.
«Preciso arranjar logo os comprimidos».
Refletiu sobre sua situação ali; estava longe de ser a ideal. Mesmo que lhe dessem a possibilidade de viver todas as loucuras que tinha vontade, não saberia o que fazer.
Nunca tivera nenhuma loucura.
Depois de algum tempo no jardim, foram até o refeitório e almoçaram. Em seguida, os enfermeiros conduziram homens e mulheres até uma gigantesca sala de estar, com muitos ambientes -mesas, cadeiras, sofás, um piano, uma televisão, e amplas janelas de onde se podia ver o céu cinzento e as nuvens baixas. Nenhuma delas tinha grades, porque a sala dava para o jardim. As portas estavam fechadas por causa do frio, mas bastava girar a maçaneta, e poderia sair para caminhar de novo entre as árvores.