Hermann Hesse
Viagem ao Oriente
Título originaclass="underline" Die Morgenlandfahrt
Tradução: Lêda Maria Gonçalves Maia
Editora: Civilização Brasileira
Ano: 1970
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LANÇO-ME à tentativa de relatar uma extraordinária aventura da qual participei como membro da Confraria, uma viagem fantástica cujo encanto luziu com a rapidez de um meteoro, caindo depois no esquecimento e até mesmo na descrença. Tal aventura jamais fora tentada desde os tempos de Hugo e do louco Roland até nossos dias, ou seja, o período tão agitado e confuso, embora frutífero, que se seguiu à Grande Guerra.
Não me permiti ilusões quanto às dificuldades que esta tentativa acarretaria. Não apenas pelo aspecto subjetivo, embora este já fosse suficiente para fazer-me desanimar. Ocorre que não mais me acompanham as lembranças, documentos e diários relativos à jornada, ao mesmo tempo que, nos difíceis anos de doença, infortúnios e profunda aflição compreendidos nesse intervalo, desvaneceram-se inúmeras recordações. Minha memória e a confiança em lembranças antes tão nítidas debilitaram-se como resultado dos golpes do destino e de um contínuo desalento. Conrudo, mesmo esquecendo os aspectos estritamente pessoais, existe um obstáculo: o juramento que prestei como membro da Confraria. Embora não me seja proibido narrar minhas experiências pessoais, a Confraria não admite revelações sobre si própria. E apesar de não existirem provas concretas de sua existência, e eu jamais ter voltado a avistar-me com qualquer de seus membros, nenhuma ameaça ou armadilha far-me-iam quebrar o juramento. Se um dia defrontar-me com uma corte marcial e me for dado o direito de optar pela morte ou revelação do segredo da Confraria, selaria sem vacilar meu juramento com a morte.
Desde o diário de viagem do Conde Keyserling, surgiram diversos livros cujos autores, em parte inconsciente, porém um tanto deliberadamente, deram a impressão de fazerem parte da Confraria e haverem participado da Viagem ao Oriente. Até mesmo as narrativas da aventura de Ossendowski caem sob minhas justificadas suspeitas. Contudo, têm tanta relação com a Confraria e nossa Viagem quanto os ministros de uma insignificante seita fanática o têm com o Salvador, os Apóstolos e o Espírito Santo, a quem se referem por especial deferência e participação. Mesmo que o Conde Keyserling houvesse realmente dado a volta ao mundo sem dificuldades, e que Ossendowski tivesse de fato percorrido os países que descreveu, suas jornadas não teriam sido fantásticas nem teriam descoberto novos territórios, ao passo que, em determinadas etapas de nossa Viagem ao Oriente, apesar de não lançarmos mão dos corriqueiros recursos à disposição do viajante, como estradas de ferro, navios a vapor, telégrafo, automóveis, aviões, etc, penetramos no terreno da grandiosidade e da magia.
Logo após a Grande Guerra, as nações conquistadas encontravam-se num singular estado de irrealidade. Observava-se uma tendência a acreditar no fantástico, embora muito poucas barreiras houvessem sido ultrapassadas, e fossem poucos os progressos alcançados no domínio da psiquiatria. Nossa viagem, nessa mesma época, através do Oceano da
Lua em direção a Famagusta, sob a orientação de Alberto, o Grande, ou melhor, a descoberta da Ilha da Borboleta, doze léguas além de Zipangu, ou ainda a edificante cerimônia da Confraria junto ao túmulo de Rudiger — todos estes fatos constituíram-se em feitos e experiências permitidos uma única vez a quem viveu em nosso tempo e região.
Sinto aproximar-me cada vez mais de um dos maiores obstáculos que encerra minha narrativa. O ponto atingido pêlos nossos feitos, o plano espiritual da experiência a que se relacionam, deveriam tornar-se gradativamente mais claros ao leitor, se fosse possível esclarecer a essência do segredo da Confraria. No entanto, tudo ou quase rudo lhe parecerá inacreditável ou incompreensível. É preciso aceitar o próprio paradoxo de que devemos sempre tentar o aparentemente impossível. Concordo com Sidarta, nosso sábio amigo do Oriente, quando certa vez disse: «As palavras não conseguem expressar os pensamentos com precisão; de imediato as coisas se tornam diferentes, distorcidas, tolas. E mesmo assim agradam-me, e julgo que seja certo, que aquilo que para um homem parece válido e sábio, para outro caracteriza o absurdo». Os membros e historiadores de nossa Confraria, séculos atrás, reconheceram e enfrentaram com bravura essa dificuldade. Um dos mais ilustres expressou-a em uma estrofe imortaclass="underline"
Esta «inexperiência» fez com que nossa jornada, que em sua época levou milhares de pessoas a um estado de êxtase, fosse não só esquecida pelo público como também estabeleceu um verdadeiro tabu quanto à sua lembrança. A história é rica em exemplos semelhantes. Toda a história universal parece-me resumir-se em um livro de ilustrações que retrata o desejo mais ardente e absurdo da humanidade — o desejo de esquecer. Não vemos que cada geração, através, de repressões, disfarces e ridículos, destrói tudo aquilo que a anterior julgava mais importante? Nós mesmos não vimos uma longa, terrível e monstruosa guerra ser esquecida, desfigurada e repudiada por todas as nações? E agora, após um breve intervalo, não vemos as mesmas nações tentando rememorar, por meio de emocionantes romances sobre o tema, o que elas próprias provocaram e toleraram alguns anos atrás? Assim, do mesmo modo chegará o dia da redescoberta dos feitos e tribulações de nossa Confraria, que ainda permanecem esquecidos ou constituem motivo de troça em todo o mundo e, então, minhas palavras representarão uma pequena ajuda nesse sentido.
Nossa jornada ao Oriente caracterizou-se pelo fato de que, embora a Confraria tivesse objetivos definidos e elevados durante sua realização (não me é possível revelá-los, pois constituem assunto secreto), cada membro podia ter seus próprios objetivos pessoais. Aliás, quem não os tivesse seria excluído do grupo. Embora cada um de nós aparentasse partilhar os mesmos ideais e objetivos comuns, conservava no fundo do coração seu mais precioso sonho de infância, como fonte de coragem e consolo. O meu propósito ao empreender a jornada, sobre o qual interrogou-me o Presidente antes de minha admissão, era bastante simples, mas diversos membros da Confraria estabeleceram desígnios que, embora eu os respeitasse, não podia compreender totalmente. Um deles, por exemplo, buscava um tesouro, e seu único pensamento resumia-se em apossar-se do enorme tesouro por ele denominado «Tao». Um outro desejava capturar uma serpente chamada Kundalini, à qual atribuía poderes mágicos. Quanto a mim, sempre desejara avistar-me com a bela Princesa Fátima e, se possível, conquistar seu amor.
Ao incorporar-me à Confraria — ou seja, imediatamente após a Grande Guerra — nosso país achava-se coalhado de salvadores, profetas e discípulos; de pressentimentos sobre o fim do mundo, ou de esperanças na ascensão de um Terceiro Império. Abalado pela guerra, desesperado com as privações e a fome, desiludido com a evidente inutilidade de todos os sacrifícios de vidas humanas e propriedades, nosso povo se expunha a toda sorte de fantasias, mas houve, ao lado disso, um grande avanço espiritual. Criavam-se sociedades orgíacas dançantes e grupos anabatistas, as coisas ocorriam como se visassem um ponto fantástico e guiado pelo ocultismo. Verificou-se também, naquela época, uma tendência geral rumo aos mistérios e religiões da índia, da antiga Pérsia e de outros países orientais, o que fez com que muitos julgassem que nossa Confraria fosse mais um dentre tantos cultos recém-fundados, e que após alguns anos estaria quase esquecido, desprezado e desacreditado. O mais fiel de seus discípulos não o pode negar.