Ao chegar a casa acendi a luz, sentei-me à mesa de trabalho com as roupas molhadas, o chapéu sobre a cabeça, e escrevi uma carta. Preenchi dez, doze, vinte páginas de ressentimentos, remorso e súplicas endereçadas a Leo. Descrevi-lhe a necessidade que dele sentia, evoquei imagens de nossas experiências mútuas, de nossos então amigos comuns. Lamentei as extremas e infinitas dificuldades que obstaram minha bem intencionada iniciativa. Desvanecera-se o aborrecimento do momento; agitado, sentara-me e escrevera. Apesar das dificuldades, escrevi, suportaria tudo mas não divulgaria um único segredo da Confraria. A despeito de tudo, não deixaria de completar meu trabalho em memória da Viagem ao Oriente, para glorificação da Confraria. Com enrusiasmo febril, cobria páginas e páginas de palavras rapidamente escritas. As lamentações, queixas e auto-acusações jorravam como água de uma torneira quebrada, sem reflexão, sem fé, sem esperança de resposta, apenas com o desejo de desabafar-me. Enquanto era ainda noite, levei a longa e confusa carta à mais próxima caixa postal. Finalmente veio a madrugada. Desliguei as luzes, dirigi-me ao pequeno dormitório do sótão, que fica ao lado de minha sala de estar, e deitei-me. Adormeci imediatamente, caindo num sono profundo e reparador.
5
APÓS abrir os olhos e cochilar novamente por várias vezes, despertei no dia seguinte com uma forte dor de cabeça, porém sentindo-me descansado. Para minha extrema surpresa, prazer e embaraço, encontrei Leo na sala de estar. Estava sentado à beira de uma cadeira e parecia esperar há longo tempo.
— Leo — exclamei — você veio!
— Eles me enviaram em nome da Confraria — explicou. — O senhor endereçou-me uma carta referindo-se a ela. Mostrei-a aos magistrados. O senhor deverá apresentar-se perante o Alto Trono. Podemos ir?
Apressei-me, perturbado, a calçar meus sapatos. Minha mesa, desarrumada a noite anterior, apresentava ainda um aspecto de desordem e confusão. Naquele momento, mal recordava o que havia escrito ali sentado, tão cheio de angústia, algumas horas atrás. Contudo, não parecia ter sido em vão. Alguma coisa acontecera. Leo viera.
Repentinamente, pela primeira vez, percebi a importância de suas palavras. Então ainda existia aConfrana,da qual nada mais soubera, e que existira sem mini e não mais me considerava um de seus membros! Ainda existiam a Confraria e o Alto Trono! Havia os magistrados; e estes me chamavam! Senti um calafrio. Vivera tantos meses naquela cidade, dedicando-me aos apontamentos sobre a Confraria e nossa viagem, sem saber se a mesma ainda existia, onde se encontrava, ou se era eu talvez o seu último membro. Na verdade, para ser franco, em certas ocasiões duvidara até de que a Confraria e minha participação junto à mesma houvessem realmente ocorrido. E agora ali estava Leo, enviado por ela, com a incumbência de levar-me. Eu fora lembrado, intimado, eles desejavam ouvir-me, talvez julgar-me. Deus do céu! Estava pronto. Estava pronto a demonstrar que não os traíra. Estava pronto a obedecer. Quer os magistrados me punissem ou perdoassem, estava preparado de antemão para aceitar o que viesse, para concordar com seu julgamento e obedecê-los.
Partimos. Leo seguia na frente,e,novamente, como costumava fazer muitos anos atrás ao observar seu modo de andar, fui obrigado a admirá-lo como um servidor perfeito. Caminhava pelas ruas à minha frente, ágil e pacientemente, indicando o caminho: era o guia perfeito, o servidor ideal no cumprimento de sua tarefa, o magistrado sem falhas. Impunha um árduo teste para a minha paciência. A Confraria mandara-me chamar, o Alto Trono me aguardava, rudo que possuía estava em jogo: minha vida futura seria decidida, a vida passada iria agora conservar ou perder todo o seu sentido — estremeci de ansiedade, prazer, angústia e temor. O caminho que Leo tomara parecia-me, na minha impaciência, interminável, pois tive de seguir o meu guia por mais de duas horas, através dos mais estranhos e aparentemente caprichosos caminhos. Leo deixou-me por duas vezes a esperá-lo à porta de uma igreja na qual foi orar. Durante longo tempo, que para mim pareceu uma eternidade, permaneceu em meditação, absorto diante da velha Municipalidade, e contou-me da sua fundação, no século XV, por um famoso membro da Confraria. E embora a maneira como tivesse tomado aquele caminho parecesse tão cuidadosa e proposital, confundiam-me as voltas, desvios e ziguezagues através dos quais aproximávamo-nos de nosso destino. A caminhada, que custou-nos toda a manhã, poderia ter sido feita em um quarto de hora.
Finalmente, Leo guiou-me até urna rua sossegada e suburbana, chegando a um enorme prédio silencioso. A julgar pelo aspecto exterior, dir-se-ia que se tratava de uma ampla assembléia, ou um museu. A princípio não se via vivalma em parte alguma. Os corredores e escadas estavam desertos e faziam ecoar nossos passos. Leo começou a procurar entre os vestíbulos, escadas e antecâmaras. Abriu cautelosamente uma enorme porta, que nos revelou um abarrotado estúdio artístico; diante de um cavalete vimos o artista Klingsor em mangas de camisa — ah, quantos anos se haviam passado desde a última vez que vira aquele rosto amado! Contudo, não ousei cumprimentá-lo; não era oporruno, naquele momento. Eu era esperado. Fora convocado. Klingsor não nos prestou muita atenção. Cumprimentou Leo com um aceno de cabeça; não me vira ou não me reconhecera, e fez um gesto, amável embora decidido, para que nos retirássemos, não permitindo qualquer interrupção em seu trabalho.
Finalmente, no topo do imenso edifício, chegamos a uma água-furtada que cheirava a papel e cartolina, em cujos corredores, através de centenas de jardas, havia portas de armários, lombadas de livros e pilhas de documentos; um arquivo gigantesco, uma enorme chancelaria. Ninguém tomava conhecimento de nossa presença; estavam todos silenciosamente ocupados. Tive a impressão de que todo o planeta, até mesmo o firmamento era dali governado ou pelo menos observado e registrado. Esperamos durante longo tempo de pé naquele local; os encarregados dos arquivos e biblioteca moviam-se apressadamente à nossa volta, com sumários e números de catálogos nas mãos. Colocavam escadas e nelas subiam em diversos pontos da sala, os elevadores e pequenos vagonetes eram postos em movimento, cuidadosa e silenciosamente. Leo então pôs-se a cantar. Escutei-o comovido; em certa ocasião aquela música me fora muito conhecida. Era a melodia de uma das canções da nossa Confraria.
Ao som da música, houve um rebuliço geral. Os magistrados retiraram-se, a sala permaneceu em uma sombria solidão. Um grupo de pessoas ocupadas, minúsculas e irreais, trabalhavam próximas ao gigantesco arquivo, no fundo da sala. Sua parte fronteira, contudo, mostrava-se espaçosa e vazia. O recinto ganhara impressionantes dimensões. No centro, dispostos em ordem, estavam numerosos assentos, e, vindos do fundo da sala, e das inúmeras portas, surgiram diversos magistrados que se aproximaram lentamente dos assentos e os ocuparam um a um. Aos poucos foram preenchidas todas as fileiras de cadeiras. A carreira de assentos erguia-se gradativamente até culminar com um trono, que ainda não fora ocupado. O solene Sinédrio achava-se repleto até à alrura do trono. Leo lançou-me um olhar de advertência para que me mantivesse calmo, silencioso e contrito, desaparecendo em meio aos demais; de repente, ele se fora, e não pude mais vê-lo. Mas aqui e ali, por entre os magistrados que se reuniam em redor do Alto Trono, observei fisionomias familiares, quer graves, quer sorridentes. Vi Albertus Magnus, o barqueiro Vasudeva, o artista Klingsor, e muitos outros.