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princ. orient. 2

noct. mill. 983

hor. delic. 07

Encontrei a indicação nos arquivos. Havia um delicado medalhão que logo abri, contendo um retrato em miniatura de uma princesa de rara beleza, que por um instante fez-me lembrar de todas as mil e uma noites, das histórias de minha juventude, dos sonhos e anseios daquele maravilhoso período em que, viajando para o Oriente à procura de Fátima, Tivera meu noviciado e tornara-me membro da Confraria. O medalhão estava envolvido em um lenço de seda cor-de-malva, magnificamente tecido, do qual emanava uma fragrância adocicada e muito antiga, que trazia reminiscências de princesas e do Oriente. Ao sentir aquele odor mágico, antigo e raro, dominou-me a sensação repentina da doce magia que me envolvera ao encetar a peregrinação ao Oriente, e sua dissipação devido a obstáculos traiçoeiros e até desconhecidos, e como a magia desaparecera pouco a pouco, deixando-me profundamente desesperado, tomado pela desolação e desencanto. Não pude suportar por mais tempo a visão do lenço e do retrato, tal a névoa que minhas lágrimas interpuseram em meus olhos. Ah, pensei, o retrato da princesa árabe não era suficiente para lançar seus encantos contra o mundo e o inferno, transformando-me em cavaleiro e cruzado; seriam agora necessários outros encantos. Contudo, como fora belo, inocente e bem-aventura-do aquele sonho que povoara minha juventude, que me transformara em escritor, músico e noviço, e me levara a Morbio!

Ouvi sons que me despertaram de minha meditação. Havia uma animosidade lúgubre em cada canto da imensidão da sala dos arquivos. Fui atingido por um novo pensamento, uma nova dor, que atravessou meu coração como um raio. Desejava, na minha inocência, escrever a história da Confraria, eu, que não era capaz de decifrar ou compreender a milésima parte daqueles mimares de escritos, livros, gravuras e referências contidos nos arquivos! Com um sentimento de humilhação, julgando-me tolo, ridículo, incapaz de compreender a mim mesmo, extremamente insignificante, vi-me ali no meio de todas aquelas coisas as quais tivera permissão para consultar, para que pudesse compreender com exatidão o que éramos eu e a Confraria.

Surgiram magistrados em todas as portas. Alguns pude ainda reconhecer através das lágrimas. Vi Jup, o mágico, Lindhorst, o arquivista, e Mozart vestido como Pablo. A eminente Assembléia ocupou as diversas fileiras de assentos, que se tornavam mais altas e estreitas ao fundo; sobre o trono, que formava o cume, havia um brilhante dossel dourado.

O Presidente da Assembléia deu um passo à frente e anunciou:

— A Confraria está pronta para dar início ao julgamento, através de seus membros, sobre o auto-acusado H., que se sentiu impelido a guardar silêncio a respeito dos segredos da Confraria, e agora percebe como foi estranha e blasfema sua intenção de escrever a história de uma viagem que ele não acompanhou até o final e o relato de uma Confraria em cuja existência não mais acreditava e à qual tornou-se infiel.

Voltou-se em minha direção e disse com sua voz clara e empestada:

— Auto-acusado H., reconhece a Corte de Justiça e concorda em submeter-se aos seus desígnios?

— Sim — respondi.

— Auto-acusado H. — prosseguiu ele — concorda em que esta Corte de Justiça o julgue sem a presença do Presidente, ou deseja que ele próprio dê seu veredicto?

— Concordo — disse eu — em ser julgados pêlos seus membros, com ou sem a presença do Presidente. O Presidente da Assembléia preparava-se para retrucar quando, do fundo da sala, ouviu-se uma voz suave dizer:

— O próprio Presidente está pronto para dar o veredicto.

O som daquela voz macia provocou-me um estremecimento. Das profundezas do recinto, do remoto horizonte dos arquivos, surgiu um homem. Tinha o andar leve e fácil, suas vestes cintilavam com reflexos dourados. Aproximou-se por entre o silêncio da Assembléia, e então reconheci o seu andar, seus movimentos, e finalmente sua face. Era Leo. Subiu as filas de assentos, com suas magníficas e vistosas roupas, e, como um Papa, chegou ao Alto Trono. Subia as escadas, com as vestes reluzindo como uma flor rara e esplendorosa. Todos se ergueram à sua passagem. Conduzia-se com a mesma humildade e zelo com que o fazem o santo Papa ou o patriarca.

Achava-me ansioso e comovido, à espera do julgamento que estava humildemente pronto a aceitar, fosse para punir-me ou favorecer-me. Perturbava-me também o fato de tratar-se de Leo, nosso antigo serviçal, o homem que ocupava o cargo máximo de toda a Confraria, prestes a julgar-me. Porém, a grande descoberta daquele dia deixava-me ainda mais atônito, surpreso e feliz: a Confraria estava mais poderosa e sólida do que nunca, e não fora esta nem Leo que me haviam abandonado e desiludido, e sim eu mesmo, que fora tão fraco e tolo a ponto de desvirtuar o sentido de minhas próprias experiências, de duvidar da Confraria, de considerar a Viagem ao Oriente um fracasso, e considerar-me o sobrevivente e narrador de uma história concluída e esquecida, quando não passava de um fugitivo, um traidor, um desertor. Estes pensamentos causavam-me júbilo e estupefação. Lá estava eu, de pé diante do Alto Trono, pelo qual fora outrora aceito como membro da Confraria, que dirigira a cerimônia de meu noviciado, do qual recebera o anel, sendo imediatamente enviado ao serviçal Leo para os preparativos da jornada. E em meio a tudo isto, descobria um novo pecado, lima falta inexplicável, uma nova vergonha: não mais possuía o anel da Confraria. Perdera-o, não sabia onde ou quando, e não dera pela sua falta até aquele dia!

Nesse ínterim, o Presidente Leo, envolto em suas vestes douradas, começou a falar com sua bela e delicada voz; suas palavras evocavam bondade e conforto, eram cálidas como o sol.

— O auto-acusado — disse do Alto Trono — teve oportunidade de redimir-se de alguns erros. Há muito que ser dito contra ele. Podemos julgar compreensível e até desculpável que tenha sido infiel à Confraria, que a reprovasse através de suas próprias falhas e fantasias, que duvidasse da continuidade de sua existência, que tivesse a estranha ambição de tornar-se seu historiador. Nenhuma dessas acusações pesa gravemente sobre ele. São, se o auto-acusado não se opõe ao termo, tolices de noviciado. Podem ser perdoadas com um sorriso.

Respirei profundamente, e todos os membros da ilustre Assembléia deixaram transparecer um leve sorriso nos lábios. Era para mim um enorme alívio ver que o mais grave de meus pecados, e mesmo minha ilusão de que a Confraria não mais existisse, e que era eu o único discípulo remanescente, eram considerados pelo Presidente como «tolices», coisas sem importância, e ao mesmo tempo que isto me levava de volta ao ponto de partida.

— Contudo — prosseguiu Leo, sua voz agora triste e grave -existem outras ofensas mais sérias atribuídas ao réu, e a mais grave é que ele não se coloca como auto-acusado por esses pecados, mas demonstra desconhecê-los. Lamenta profundamente haver traído a Confraria em pensamento; não pode perdoar-se por não haver reconhecido no serviçal Leo o Presidente Leo, e começa a compreender a extensão de sua infidelidade à Confraria. Mas, ao passo que atribui enorme gravidade a esses pensamentos faltosos, e acaba de perceber que podem .ser perdoados com um sorriso, esquece-se obstinadamente de suas verdadeiras ofensas, que são inumeráveis, cada uma delas grave o bastante para merecer um castigo severo.

Meu coração disparou. Leo voltou-se para mim.

— Réu H., mais tarde compreenderá a extensão de suas faltas e saberá também como evitá-las no futuro. No entanto, apenas para mostrar-lhe como ainda desconhece sua situação, pergunto-lhe: Recorda-se de sua caminhada pelas ruas da cidade em companhia do serviçal Leo, que, no papel de mensageiro, deveria trazê-lo perante o Alto Trono? Sim, você se lembra. Lembra-se também de havermos passado pela Municipalidade, pela Igreja de São Paulo e pela Catedral, quando o serviçal Leo entrou para ajoelhar-se e orar, e você não só recusou-se a entrar em sua companhia para cumprir suas devoções, de acordo com o quarto preceito do seu juramento à Confraria, como permaneceu do lado de fora, impaciente e aborrecido, esperando pelo fim da tediosa cerimônia que lhe parecia tão desnecessária, que para você não passava de um teste desagradável à sua impaciência egoísta? Sim, você se lembra. Pelo simples comportamento que demonstrou à porta da Catedral, já teria ferido os requisitos fundamentais e os costumes da Confraria. Negligenciou a religião, mostrou-se insolente com um irmão da Confraria, rejeitou com impaciência uma oportunidade e um convite para rezar e meditar. Seriam pecados imperdoáveis, não houvesse circunstâncias atenuantes especiais em seu caso. Agora ele chegara ao ponto crítico. Tudo seria dito; não havia mais assuntos secundários, nem tolices. Ele tinha razão. Atingira o ponto crucial da questão.