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— Não é nossa intenção enumerar todas as faltas do réu -prosseguiu o Presidente. — Ele não será julgado de acordo com nossos preceitos, e sabemos que seria necessária apenas a nossa advertência para despertar sua consciência e fazê-lo arrepender-se. Do mesmo modo, auto-acusado H., é preciso preveni-lo para que faça um exame de consciência a respeito de outros atos que praticou. Será preciso lembrá-lo da noite em que visitou o serviçal Leo e expressou o desejo de ser por ele reconhecido como um membro da Confraria, embora isso fosse impossíveL pois você se tornara irreconhecível como nosso irmão? Devo lembrá-lo da conversa que manteve com o serviçal Leo sobre a venda de seu violino? A vida estúpida, chocante, medíocre e suicida que levou durante tantos anos?

— Existe ainda um ponto, irmão H., sobre o qual não posso calar-me. É bem possível que o empregado Leo lhe tenha feito uma injustiça naquela noite. Vamos supor que sim. O serviçal Leo talvez tenha sido muito severo, muito racional; talvez não tenha demonstrado muita indulgência ou compreensão pela sua situação. Mas existem autoridades mais poderosas e juizes mais infalíveis do que o serviçal Leo. Como reagiu o animal? Lembra-se do cão Necker, de como o repeliu e condenou? Ele é incorruptível, não toma partido, não é um membro da Confraria.

Fez uma pausa. Sim, o cão policial Necker! Ele sem dúvida me repelira e condenara. Eu concordava. O cão policial e eu mesmo já havíamos feito o meu julgamento.

— Auto-acusado H. — recomeçou Leo, sua voz agora fria e cristalina por sob o brilho dourado do manto e do dossel, como a voz do comandante ao surgir à porta de Don Giovanni no último ato. — Auto-acusado H., você me ouviu e deu-me razão. Presumimos que terá dado seu próprio veredicto?

— Sim — respondi com a voz embargada, — ... sim.

— E presumimos que lhe seja um veredicto desfavorável?

— Sim — murmurei. Leo ergueu-se do trono e estendeu suavemente os braços.

— É a vocês, meus magistrados, que dirijo-me agora. Todos sabem o que ocorreu com nosso irmão da Confraria, H. O problema não lhes é desconhecido; muitos de vocês passaram pela mesma situação. O réu não estava ciente, ou não podia acreditar, que sua apostasia e infrações tratavam-se de um teste. Resistiu durante muitos anos, sem nada saber a respeito da Confraria, vivendo só, vendo tudo aquilo em que acreditava transformar-se em ruínas. Até que não mais pôde ocultar seus sentimentos. Sua agonia tornou-se forte demais, e sabemos que, quando sofremos intensamente, a ação se faz sentir. O irmão H. deixou-se levar pelo desespero em seu teste, e o desespero é o resultado de cada tentativa ansiosa que fazemos para compreender e justificar a vida. É o resultado das tentativas que fazemos de conduzir nossos atos com virtude, justiça e compreensão, e cumprir suas exigências. As crianças vivem em uma das margens do desespero; os lúcidos, em outra, O réu H. não é mais uma criança, e contudo não se encontra totalmente desperto. Vemo-lo ainda presa do desespero. Ele o vencerá e passará desse modo ao seu segundo noviciado. Será novamente recebido pêlos membros da Confraria, cujos segredos não mais deseja conhecer. Nós lhe devolveremos o anel perdido, que o serviçal Leo guardou para ele.

O Presidente da Assembléia trouxe o anel, beijou-me no rosto e colocou-o em meu dedo. Ao fitar a jóia, sentindo sua frieza metálica sobre o dedo, vieram-me à lembrança inúmeros atos de inconcebível negligência. Ocorreu-me principalmente que o anel era composto de quatro pedras separadas pela mesma distância, e que um preceito da Confraria mandava que se girasse o anel lentamente no dedo pelo menos uma vez durante o dia, e que cada uma das quatro pedras devia recordar-nos um dos quatro preceitos fundamentais do juramento. Eu não só perdera o anel e jamais dera pela sua falta, como também, no decorrer de todos aqueles anos terríveis, não voltara a repetir sequer um dos quatro preceitos fundamentais, ou mesmo os evocara. Tentei recitá-los para mini mesmo naquele momento. Tinha consciência de seu conteúdo, estavam ainda dentro de mim, pertenciam-me como um nome que seria lembrado em determinado momento, mas que naquele instante particular não conseguia recordar. Tampouco conseguia repetir as regras, elas ainda estavam mudas em minha mente, esquecera a fórmula. Desprezara os preceitos. Durante tantos anos não os observara e os reputara invioláveis — e ainda me considerara um membro leal da Confraria.

O Presidente da Assembléia tocou de leve em meu braço ao perceber minha surpresa e profunda vergonha. O Presidente tornou a falar:

— O réu e auto-acusado H. está absolvido, mas devo dizer-lhe que é dever de todo irmão absolvido em situação semelhante incorporar-se às fileiras de magistrados e ocupar um de seus lugares assim que passar por um teste de fé e obediência. Tem o direito de escolher esta prova. Agora, irmão H., responda às minhas perguntas:

— Está preparado para domar um cão feroz como prova de sua fé? Recuei, tomado pelo pavor. — Não, eu não poderia fazê-lo, gritei, dando um passo atrás.

— Está preparado e deseja queimar os arquivos da Confraria nesse instante, a uma ordem nossa, como o Presidente da Assembléia queima agora uma parte deles perante suas vistas?

Este último deu um passo à frente, mergulhou as mãos nas bem arrumadas gavetas do arquivo, tirou-as cheias de papéis, centenas deles, que, para meu horror, queimou sobre um tacho de carvão.

— Não — disse eu assustado — também não poderia fazê-lo.

Cave, frater— clamou o Presidente — tenha cuidado, irmão imperuoso! Comecei com as tarefas mais simples, que requerem a mais ínfima parcela de fé. As tarefas seguintes serão cada vez mais difíceis. Responda-me: está preparado e deseja consultar nossos arquivos a respeito de você mesmo?

Senti um calafrio e a respiração acelerar-se, mas compreendi. As propostas tornavam-se mais severas; não havia saída, a não ser para o pior. Respirei profundamente, levantei-me e disse que sim.

O Presidente da Assembléia conduziu-me até às mesas onde se encontravam as centenas de arquivos. Procurei e encontrei a letra H. Lá estava meu nome. Em primeiro plano, o do meu ancestral Eoban, que, quatrocentos anos atrás, também fora membro da Confraria.

Li a seguir o meu próprio nome, com os dizeres:

Chattorum r. gest. XC.

civ. Calv. infid. 49.

O papel tremia em minhas mãos. Enquanto isso, os magistrados ergueram-se um a um, estenderam-me a mão, fitaram-me diretamente nos olhos e se afastaram. O Alto Trono estava vazio, e, finalmente, o Presidente desceu, estendeu-me a mão, fitou-me nos olhos e sorriu com benevolência, deixando a sala. Ali permaneci inteiramente só, com a anotação nas mãos, para mais tarde buscar informações nos arquivos.

Não estava preparado para consultar, naquele momento, os dados a meu respeito. Fiquei de pé, no meio da sala vazia, vendo estender-se à minha volta caixas, armários, gavetas e arquivos, o conjunto de todos os conhecimentos valiosos aos quais tinha acesso. Contudo, mais por medo de ler o meu próprio registro do que pelo ardente desejo de saber, lancei-me a leirura de algo mais sobre assuntos que me eram importantes, e da minha narrativa sobre a Viagem ao Oriente. Para ser sincero, já sabia há muito tempo que esta fora condenada, e que jamais deveria concluí-la. Não obstante, estava curioso.